«Naquela manhã, ao acordar, Jim Sams, esperto, mas algo leviano, depois de uma noite cheia de sonhos perturbadores, viu-se transformado numa criatura gigantesca.» (p. 11)
No início de A Barata, de Ian McEwan, publicado pela Gradiva, com tradução de Maria do Carmo Figueira, é possível reconhecer o início de A Metamorfose, de Kafka. Um texto breve, quase uma novela, que parece responder aos mais recentes acontecimentos de um Reino Unido que decidiu apartar-se da União Europeia. E, para que não restem dúvidas, Jim Sams, o nome do protagonista, faz eco do de Gregor Sams. Mas se a obra de Kafka se caracteriza pela alegoria que faz uso do fantástico, em A Barata impera uma sátira em que tudo é inversão, numa espécie de parábola que pretende ilustrar como o mundo está de pernas para o ar – um pouco como Jim Sams se sente quando acorda, deitado de costas durante um bom tempo, enquanto contempla horrorizado os únicos quatro membros que lhe restam e sente saudades das suas perninhas castanhas. Conforme se vai familiarizando com a sua nova e repugnante aparência humana, sempre a partir da sua perspectiva de barata (capaz de lembrar ainda o gosto das moscas varejeiras), Jim Sams vai recordando fragmentos daquela que é a causa, a missão, que o trouxe do mundo dos insectos e, além dele, outros mais, com que o primeiro-ministro se vai cruzando e que consegue reconhecer de forma algo instintiva.
«Foi durante esses segundos, enquanto fitava o olhar brando de Trevor Gott, o chanceler do ducado de Lancaster, depois o ministro da Administração Interna, o procurador-geral, o líder da bancada, o ministro dos Transportes, o ministro sem pasta, que, num momento surpreendente de reconhecimento instantâneo, uma alegria inusitada, transformadora, transcendente, percorreu todo o seu corpo, passando pelo coração e descendo pela espinha. (…) Praticamente todos os membros do seu Conselho de Ministros partilhavam as suas convicções. Mas, muito mais importante do que isso, e só nesse momento o soubera, partilhavam as suas origens.» (p. 30)
O que estes insectos recentemente convertidos em políticos, de modo a cumprir uma missão em nome do povo, procuram decidir não é o Brexit, mas sim o florescimento de uma economia regressista e que deve ser implementada já no dia 25 de Dezembro, dia em que o comércio está fechado. O autor detém-se com algum cuidado na teoria do regressismo (a ideia não é totalmente nova), procurando explicá-la desde as suas origens, sendo que este consiste na inversão do fluxo do dinheiro. Em suma, a economia será estimulada com o cunho de mais moeda para que as lojas possam pagar aos seus clientes, e os clientes possam pagar pelos seus empregos, da mesma forma que os funcionários pagam um salário para que lhes seja permitido trabalhar, e quanto mais investirem em formação melhor, pois permitir-lhe-á encontrar um trabalho mais dispendioso, pelo que mais compras terá de fazer para o pagar. A lei passa portanto a proibir a acumulação de poupanças, pois o dinheiro parado vence elevadas taxas de juro negativas, o que o reduzirá a nada, obrigando portanto as pessoas a investirem o seu tempo em lojas onde são generosamente compensadas por todos os artigos que conseguirem levar a preço de retalho.
A certa altura a chanceler alemã – que tal como o presidente francês (Sylvan Larousse) ou o presidente americano (Archie Tupper) também passa por esta sátira – pergunta a James Sams «Warum?» (Porquê?), ao que a única resposta possível é «porque sim» (p. 97).
Na narrativa de Ian McEwan esta tese de inversão do que é a ordem natural das coisas afigura-se como a verdadeira crítica a um país que está empenhado em se destruir, vogando contra a corrente mas determinado a servir o seu povo. O livro parece perder um pouco da sua irreverência e ímpeto iniciais, mas a ironia cáustica de Ian McEwan permanece incisiva numa história que se quer com final feliz: «Agora, a Grã-Bretanha estava entregue a si própria. O povo tinha falado. A genialidade do líder do nosso partido permitira o cumprimento do desejo do povo. O destino do povo estava nas mãos do povo. O regressismo tinha sido cumprido! Sem mais hesitações nem demoras! A Grã-Bretanha estava sozinha!» (p. 106) Ver artigo
Na linha de A Civilização do Espetáculo, a Quetzal Editores publica um novo livro de não-ficção do autor peruano, Mario Vargas Llosa, que foi condecorado com o Nobel de Literatura em 2010, em que se alerta para os perigos da submissão intelectual, da negação da racionalidade e da importância da liberdade de pensar e questionar.
Mario Vargas Llosa esclarece que, não parecendo, este é um livro autobiográfico, pois nos 7 ensaios biográficos que constituem O Apelo da Tribo – sobre filósofos e pensadores como Adam Smith, José Ortega y Gasset, Friedrich Hayek, Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin e Jean-François Revel – o autor descreve simultaneamente a sua história intelectual e política: «o percurso que me foi levando, desde a minha juventude impregnada de marxismo e de existencialismo sartriano ao liberalismo da minha maturidade, passando pela revalorização da democracia, para a qual me ajudaram as leituras de escritores como Albert Camus, George Orwell e Arthur Koestler» (p. 10). Depois, num processo intelectual que levou vários anos, o autor converte-se ao liberalismo, devido a «certas experiências políticas» e, sobretudo, às ideias dos 7 autores apresentados neste livro.
No contexto de um continente imerso em revoluções e conturbações, o autor descobriu a política logo aos 12 anos, com um golpe militar no Peru. Terminado o liceu, rejeita a Universidade Católica em detrimento de uma universidade pública e popular, insubmissa à ditadura militar, para poder filiar-se no Partido Comunista. Estuda marxismo em grupos clandestinos, mantém-se socialista, vive a Revolução Cubana, visita a URSS, até que ao mudar-se para Inglaterra depois dos finais dos anos sessenta, e viver de perto os 11 anos do governo de Margaret Thatcher, uma conservadora guiada por convicções profundamente liberais, Mario Vargas Llosa opta pelo liberalismo.
Nestes ensaios biográficos, de leitura acessível e aprazível, o autor aborda a obra destes pensadores, analisando os seus principais aspectos, pesando os prós e contras da sua filosofia, filtrando o pensamento destes com o seu cunho pessoal. Este é um livro essencial para o controverso cenário político que agora se vive, pois subjacente a esta obra está sobretudo o apelo de um liberalista (fazendo suas as palavras de Ortega Y Gasset) que invoca à necessidade de praticarmos a liberdade de pensamento e de livre escolha, num mundo que empurra, cada vez mais, o cidadão enquanto indivíduo para uma massa anódina: «o indivíduo tende cada vez mais a ser absorvido por conjuntos gregários aos quais cabe agora o protagonismo da vida pública, um fenómeno em que ele vê um retorno do primitivismo (o «apelo da tribo») e de certas formas de barbárie disfarçadas sob as vestes de modernidade.» (p. 74)
O autor traça aqui o risco avassalador de o leitor se deixar absorver por uma massa cuja acção é determinada pela influência da televisão, mas sobretudo da internet e das redes sociais, e que implicará a sua anulação e um retrocesso histórico para a civilização democrática, como acontece actualmente, por exemplo, com os nacionalismos emergentes na Europa: «O apelo da tribo, a atração daquela forma de existência em que o indivíduo, escravizando-se a uma religião, doutrina ou caudilho que assume a responsabilidade de dar resposta por ele a todos os problemas, evita o compromisso árduo da liberdade e a sua soberania de ser racional, toca, claramente, cordas íntimas do coração humano.» (p. 165) Ver artigo
Este pequeno belo romance inscreve-se na senda de obras como Siddhartha, de Herman Hesse, ou de outras mais recentes, como As Oito Montanhas, de Paolo Cognetti, ou O Amigo do Deserto, de Pablo d’Ors, enquanto apologia do despojamento, da solidão, da natureza como caminho da serenidade e do encontro com a verdade. Uma narrativa sóbria, contida, quase como uma sinfonia em monotom, onde se conta a vida de Andreas Egger, uma existência inteira que, sem ruído nem brilho, atravessa um século.
«Em criança, Andreas Egger nunca tinha gritado nem dado vivas. Aliás, só começara a falar propriamente dito quando entrara para a escola. A custo, arrecadara um punhado de palavras que, em ocasiões raras, recitava aleatoriamente. Falar significava chamar a atenção, o que nunca era uma boa coisa. Chegara à aldeia muito novinho, numa carruagem puxada por cavalos, no verão de 1902, vindo de uma povoação distante, para lá das montanhas. Quando o tiraram da carruagem, ficou parado, mudo, de olhos arregalados, observando, estupefacto, os cintilantes cumos brancos. Devia ter cerca de quatro anos, na altura» (p. 13)
Criado por um familiar distante, um agricultor que apenas acolhe a criança pela bolsa de notas que traz ao pescoço e o agride a despropósito com uma vara de avelaneira, Andreas tudo suporta de forma estóica, quase bovina, numa espécie de mutismo animal, sem nunca se queixar, sem nunca gritar, mesmo quando fica fisicamente marcado pelas sovas que sofre, que o deixam com uma perna torta e coxo. A resiliência de Egger, aliada à sua força física, permitem-lhe sobreviver à perda da única mulher que amou por breves e fugazes instantes, à guerra, à fúria das avalanches das montanhas alpinas, à chegada do progresso quando o vale é devassado por maquinaria para a construção de um teleférico.
Após o seu passeio de quase um século pela vida, Egger converter-se-á em guia da montanha: «Em vez de falar, preferia ouvir as pessoas, cujas conversas ofegantes lhe revelavam os segredos de outros destinos e opiniões. As pessoas iam às montanhas claramente em busca de algo que acreditavam ter perdido havia muito tempo. Ele nunca conseguiu perceber ao certo o que era, mas, ao longo dos anos, foi-se convencendo de que os turistas avançavam pela montanha fora, não tanto atrás dele, mas atrás de um qualquer anseio obscuro e insaciável.» (p. 92)
Publicado pela Porto Editora, Uma Vida Inteira, de Robert Seethaler, foi Livro do Ano em 2014 na Alemanha onde vendeu mais de um milhão de exemplares, foi finalista do Man Booker International em 2016 e do International Dublin Award em 2017. Ver artigo
Se o disseres na montanha foi o romance de estreia de James Baldwin, publicado em 1953 e só agora traduzido por Isabel Lucas e publicado entre nós pela Alfaguara. O autor nasceu em 1924 em Nova Iorque, cresceu no bairro de Harlem, e viajou para Paris em busca de liberdade para se poder encontrar como homem negro e homossexual.
A narrativa centra-se no dia do décimo quarto aniversário de John Grimes, dia em que se cumpre também o vaticínio de que John um dia quando crescesse seria pregador tal como o seu pai (na verdade, o padrasto), que lhe diz ser feio, o mais baixo da turma, o rapaz que não tem amigos.
«A John, que se destacava na escola – mas não em matemática nem em basquetebol, como Elisha -, foi dito que teria um grande futuro. Que poderia tornar-se o Grande Líder do Povo de Deus. John não estava assim tão interessado no seu povo e menos ainda em liderá-lo no que quer que fosse, mas a frase tantas vezes repetida surgiu na sua mente como um grande portão de ferro que se abre para ele e dá para um mundo onde as pessoas não viviam na escuridão do pai (…)» (p. 22)
Na manhã de um sábado de Março, em 1935, John reflecte na admoestação pública que o seu amigo Elisha e Ella Mae receberam num sermão de domingo, acusados de corporizarem o pecado entre a congregação. No momento dessa denúncia pública termina a possibilidade de estes dois jovens continuarem a encontrar-se, ainda que de forma inocente, a não ser um dia mais tarde ao abrigo do casamento, para terem filhos e educá-los na igreja. E é também nesse domingo, dias antes do seu aniversário, que «John percebeu que aquela era a vida que o esperava – que teve realmente consciência de alguma coisa não muito distante, mas iminente, a aproximar-se de dia para dia» (p. 20).
Inspirada na sua própria vida, esta história retrata a luta interior de um jovem que teme e odeia o padrasto, ele próprio um homem imperfeito e violento, enquanto simultaneamente o encara como um modelo a seguir. Aliado a esse dilema, persiste ainda outra clivagem maior, um segredo ainda inominável mas que é já perceptível ao longo deste romance, mas que apenas irrompe numa outra obra do autor, que será publicada ainda neste ano de 2020 pela Alfaguara – O Quarto de Giovanni. Nunca é expresso de forma absoluta e incontornável, mas ao longo deste livro, especialmente na primeira parte, mais centrada na perspectiva de John, os indícios homoeróticos na relação entre John e Elisha são vários. John pensa em Elisha «que era alto e belo, que jogava basquetebol e que aos onze anos tinha sido salvo das impensáveis plantações do Sul» (p. 20). John assume que pecou. «Apesar dos santos, do pai e da mãe, dos avisos que ouviu desde o princípio dos seus dias. Pecara com as suas mãos um pecado difícil de perdoar. Na casa de banho da escola, a pensar em rapazes, mais velhos, maiores, valentes, que faziam apostas uns com os outros sobre quem conseguia o maior arco de urina, e viu acontecer em si uma transformação de que não se atrevia a falar.» (p. 21) Porém, a par da consciência de John do pecado que o marca, e que o diminui aos olhos dos outros, em particular do padrasto, reside também em si a percepção de que se demarca dos outros por motivos diferentes, como aconteceu um dia quando aos 5 anos a directora da escola vê a sua caligrafia no quadro e lhe diz «És um rapaz muito esperto, John Grimes» (p. 23)
Um rapaz esperto num mundo de brancos, em que para combater a injustiça, como a falsa acusação que recai sobre Richard, o verdadeiro pai de John, Elizabeth, a sua mãe, mantinha «a cabeça levantada, o olhar em frente e sentia a pele assentar sobre os ossos como se usasse uma máscara» (p. 189).
«Olhou para as ruas calmas e soalheiras e, pela primeira vez na vida, odiou aquilo tudo – a cidade branca, o mundo branco. Naquele dia, não foi capaz de pensar numa única pessoa decente no mundo inteiro. Sentou-se ali e esperou que um dia Deus, através de torturas inconcebíveis, os levasse à humilhação total e lhes fizesse saber que os rapazes negros e as raparigas negras, que tratavam com tanta condescendência, tanto desdém, e tão bom humor, tinham corações como os seres humanos, corações mais humanos do que os deles.» (p. 193)
Um mundo fechado, em que um homem não pode fugir ao isolamento e à diferença que a cor da sua pele lhe impõe, John carrega ainda essa outra cruz, a de amar o seu semelhante.
Go tell it on the mountain é o nome de uma música gospel, sobre o nascimento de Cristo, aqui possivelmente associada à conversão de John, ao seu renascimento em Cristo. E como é próprio de um sermão, como o Sermão da Montanha que disserta sobre os valores e princípios de uma vida cristã, a prosa de James Baldwin entretece simbolismo e lirismo. E, neste caso, a fúria sexual de um jovem a desabrochar é temperada pelo erotismo da sublimação do desejo. Ver artigo
Voar no Quarto Escuro parece ter começado como um livro de contos. Conta a história de Eduarda, uma viúva que se casa segunda vez como forma de refazer a vida, a sua e a da filha de 11 anos. Alice, que prepara o funeral da mãe e procura esconder desejos que há muito se tornaram óbvios. Celeste, que gosta de ser admirada, por homens e por mulheres, mas prefere manter-se à distância. Catarina, que coloca no afã da limpeza e do desvelo pelo senhor Antero um chamamento de amor não-correspondido. Adelaide, a médica que recorre ao prostituto de vinte anos para encontrar a intimidade que o marido lhe nega. Ema, a mulher de poder que gera uma criança morta, prenúncio de um casamento em ruína. Beatriz, dilacerada entre o não-sentir dos antidepressivos e a necessidade de sentir demasiado para poder escrever. Célia, a ama e testemunha de um casamento de revista entre duas vidas desencontradas. Cada trecho narrativo corresponde a uma personagem feminina. Cada texto designado pelo nome da personagem central. Mas Voar no Quarto Escuro, romance de estreia de Márcia Balsas, publicado pela Minotauro, não é um livro de contos. Assim o acusa o encadeamento temporal entre as micronarrativas que se complementam e iluminam reciprocamente, refractando a realidade destas mulheres a partir de várias perspectivas; os nomes que começam a transitar de capítulo para capítulo; a forma como gradualmente na narrativa de uma das personagens se faz ouvir a voz de outra das oito mulheres, como se a narrativa começasse a oscilar entre a multitude de personagens e admitisse a impossibilidade de continuar a prender cada história num espaço estanque. Um romance que tem muito pouco de romântico, pois as relações interpessoais entre mulheres e homens são sempre desencontradas, áridas, impessoais. Até a relação meramente transaccional de Adelaide, talvez a personagem mais central de todas as oito, chega ao fim quando o jovem prostituto parece envolver-se amorosamente com o marido de outra das personagens. E quando há espaço para um canto de amor, este subsume-se a uma breve passagem quando Celeste sente que pode vir a apaixonar-se por Alice: «talvez prefira as mulheres, é maior a cumplicidade partilhada, os carinhos são mais compensadores, há uma meiguice que o corpo do homem não consegue dar» (p. 68).
A unir estas mulheres atravessa-se uma vida de solidão, de dor psicológica e física, de silente desespero, em que o final enigmático do primeiro capítulo sobre Eduarda pode simbolizar o catalisador que desencadeia uma reacção em cadeia na vida de todas estas mulheres, cujas vidas se tocam sem elas sequer o sentirem. Entre o clarão de um relâmpago e o disparo de uma bala, a morte de Eduarda, vítima de violência doméstica, e do seu agressor, no que se afigura um acto divino, pode revelar-se o fim de uma era de submissão e de convencionalismos mudos e simbolizar o sacrifício salvífico das vidas destas mulheres que restam para contar aquela que é também a sua história. Talvez nem todas as oito mulheres, Eduarda inclusive, consigam alcançar a salvação. Muitas vezes sentindo-se invisíveis, outras vezes transparentes, como uma «mulher-vidro» (p. 21), cada uma destas mães, filhas, amigas, colegas, amantes, profissionais, carrega a sua própria cruz e o seu segredo. Contudo, cada história é única e por isso não há aqui lugar nem sequer para o conforto de uma irmandade partilhada: «Poderá haver paralelismos nas suas vidas, pensa Adelaide, mas nenhuma se sente melhor por o ter percebido (…). Não há utilidade nessa informação, mais uma coincidência escusada. Noutras alturas, seria uma bandeira a perseguir, a amizade que teria de nascer, apenas por acreditar nessas inevitabilidades. Agora, inevitabilidade é outra coisa, para ela. É deixar correr, como o tempo» (p. 135).
Márcia Balsas nasceu em Coimbra em 1977, autora do blogue literário Planeta Márcia, e venceu o Prémio Novos Talentos Fnac em 2018 com o conto «Ponto de Fuga». Ver artigo
Quando acabámos de ver o filme Yvone Kane, os meus alunos saíram com a sensação de que o filme de facto é baseado numa história verídica. Penso que é sempre assim, por muito avisados que estejamos de que aquele é o domínio do faz-de-conta, há sempre uma réstia de esperança de que a ficção explique a vida. Reforço a ideia de que é um óptimo filme e que, depois do poderoso A Costa dos Murmúrios, baseado claro no livro de Lídia Jorge, esta é outra história poderosa sobre África – Moçambique não é nomeado e o filme foi filmado em diversos locais – em que 3 mulheres se cruzam em tempos e histórias distintas. Não é tão claro assim que Rita (fabulosa Beatriz Batarda com aquela dor no olhar) tenha perdido a filha, mas é óbvio que procura uma parte de si, a sua identidade, ao querer remexer no passado.
É especialmente forte aquilo que Margarida Cardoso consegue fazer no filme – e que só resulta no cinema – que é a forma como a imagem, geralmente através do reflexo, está sempre presente, simbolizando a busca do eu. Muitas vezes vemos o reflexo da personagem ainda antes de a vermos a ela. Os reflexos no espelho estão muitas vezes presentes, no canto do ecrã, as imagens através da janela, a televisão ligada, os reflexos no vidro de uma montra, na água, etc., além das imagens das fotografias de arquivo, dos documentários,…
Mas há tanto a dizer: a presença dos brancos, muitas vezes indesejada; a confusão de línguas e pronúncias a marcar um território de povos diversos; mães que perdem filhos e mães que adoptam filhos perdidos por outras; o papel das mulheres como guerrilheiras na independência das ex-colónias.
A cena dos homens a atirar garrafas à piscina num acto estúpido de violência gratuita lembra o disparar dos dois militares sobre os flamingos em A Costa dos Murmúrios.
E, no fim, o acto de enterrar a piscina marca claramente o enterrar dos mortos e o enterrar do passado. Quem sabe, o fecho de um ciclo na obra da realizadora. Ver artigo
«Chamo-me Sofia. Tenho onze anos e meio, e quando for grande quero ser inútil.»
Esta frase supostamente inocente valeu a esta jovem uma risada geral da turma, a fúria da professora e um encontro com a Directora da escola e os pais na semana seguinte, além de um sermão do pai. Nesse intervalo de tempo, Sofia resolve pôr por palavras escritas o porquê de semelhante desejo. Esta é a história de como o ingénuo desejo de uma criança inocente pode parecer ofensivo aos adultos e de como estes precisam somente de colocar a sua vida em perspectiva através dos olhos e da chamada de atenção de uma criança. Escrito em frases curtas, como convém a uma criança, profundas, cheias de sabedoria e maravilhamento (note-se o nome da personagem, que vem do grego para «sabedoria»), o diário de Sofia conta-nos como a sua vida mudou quando os pais se mudam da cidade para uma pequena aldeia junto do mar, no fim do Sol-posto. Mas esta decisão não trouxe afinal nenhuma da tranquilidade prometida, pois o pai apesar de trabalhar a partir de casa, como profissional liberal, vive sob pressão e impõe essa lógica a uma criança que ganhou os céus infinitos e a praia. Por isso, o pai não lhe perdoa o seu desinteresse pela matemática, e ao gosto de Sofia pela arte contrapõe a necessidade de escolher uma profissão utilitarista num mundo regido pelo consumismo e o imediatismo: «O Papá ouviu a palavra Kandinsky e suspirou. Ouviu guitarra e suspirou. Ouviu minhocas e suspirou ainda mais. Os suspiros não eram os de um poeta diante de uma paisagem, eram de cansaço. Entendi que tinha sido convidada para um monólogo e não para um diálogo.» (p. 33)
As cativantes personagens com que Sofia e os amigos se deparam na praia, como o homem que reúne paus, uma bióloga que estuda estrelas-do-mar, os violinistas celtas, a velhinha que segue a luz nos seus quadros, são «boa gente, mas não servem para esta sociedade em que te calhou viver» (p. 69). E assim esta menina, com um olhar avisado onde a inocência e a ironia se conjugam, vai ensinar aos pais a redescobrirem como são as coisas inúteis que mais sentido fazem.
Este livrinho delicioso, da autoria de Alex Nogués, nascido em Barcelona em 1976, com ilustrações de Bea Enriquez e tradução de Maria João Moreno, é um dos primeiros títulos da colecção AKINARRA, da editora AKIARA, uma colecção de breves romances ilustrados, com capa dura, para meninos e meninas a partir dos 9 anos. Com sede em Barcelona, esta editora foi criada por Inês Castel-Branco, portuguesa que vive em Espanha há quase 20 anos, e voltaremos ainda a esta editora numa próxima semana. Ver artigo
Jonathan Coe nasceu em Birmingham, em 1961. Em 2004, foi nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras de França. O Coração de Inglaterra, agora publicado pela Porto Editora, regressa ao díptico Rotter’s Club (2001) e O Círculo Fechado (2004), onde, curiosamente, já se prenunciavam alguns dos temas aqui explorados, 18 a 15 anos antes, naquele que é considerado o primeiro romance pós-Brexit (a par de A Barata, de Ian McEwan, que apresentarei em breve). Iniciado em 2016, logo após o referendo que conduziu à retirada do Reino Unido da União Europeia, este livro é uma inteligente sátira, onde não falta humor, que não se aparta muito da realidade – apenas a disseca aos olhos de múltiplas personagens de diferentes gerações. Começa com o funeral da mãe de Benjamim, o que simboliza em si a morte de uma velha Inglaterra – não é mera coincidência que a música que Benjamim ouve nessa noite tenha por mote «Adeus, antiga Inglaterra». De entre as várias personagens do romance, destacar-se-á Benjamim, um escritor de meia-idade, cuja geração é a do autor, e que tal como ele é um escritor, embora o seu romance seja um projecto inacabado de há décadas e com uma envergadura intimidante…
A expressão que dá origem ao título original do romance, Middle England, é referida várias vezes. Primeiramente, como alusão à Terra Média de Tolkien, como se a Inglaterra do livro fosse uma realidade alternativa, quando está, afinal, muito próxima da realidade, explorando de forma irónica e acutilante diversos temas que ajudam a reconhecer a complexa trama social e política que resultou no Brexit: «- As pessoas da Inglaterra Média (…) votaram em David Cameron por não terem verdadeira escolha. A alternativa era impensável.» (p. 230) Em segundo lugar, a expressão Inglaterra Média designa as pessoas da classe média que tendem ao conservadorismo e vivem fora de Londres – um pouco como Benjamim que vive num moinho junto ao rio, um verdadeiro cenário idílico campestre –, ou seja os eleitores que, supõe-se, terão votado a favor do Brexit, pois constatou-se que em Londres a maioria votou contra.
O romance analisa, de forma audaz, a nova Inglaterra, politicamente correcta, onde a caçada à raposa é agora proibida, não tanto pela violência deste “desporto” mas por uma questão de luta de classes, e centra-se num país multicultural – ainda que personagens como Sohan e Aneeha sejam secundárias – onde até na literatura se reflecte como «o tempo do grande escritor britânico branco e de meia-idade acabou finalmente» (sim, Coe também cabe nesta categoria), pois agora há «mais mulheres, mais escritores negros, asiáticos e de outras minorias étnicas» (p. 237). Ver artigo
Começou de forma muito suave e com qualquer coisa de Hillary Clinton, quando o adultério do marido, figura pública, é notícia. Desde então ao longo de 7 temporadas, e numa luta constante de avanços e retrocessos, onde também perdeu muito, Alicia Florrick torna-se numa excelente advogada, quando antes era uma dona de casa que abdicou do seu trabalho e dos seus sonhos logo no início em nome da carreira ascendente do marido e dos dois filhos. No último episódio transmitido a série está de regresso em força, depois de claramente se ter arrastado num passo mais lento e sem tantos cliffhangers como nas temporadas anteriores. Apesar de constantes jogos verbais e diálogos e discussões que mais parecem o Falstaff com várias vozes em ponto e contraponto, uma das coisas mais fascinantes em The Good Wife é a forma como a essência reside no não dito. Como acontece em especial com Alicia. Muitas vezes sentimo-la como um autómato, uma mulher a lutar pela vida e por uma carreira e por uma família – pois nunca abandona o emplastro do marido que depois irá concorrer às presidenciais -, mas imbuída de um forte código de moral que não a torna disposta a tudo para ser bem sucedida. E é tão simplesmente pelo olhar que tentamos perceber o que se passa realmente naquela cabeça. Neste último episódio, onde o passado regressa em força de várias formas, a personagem finalmente rebenta em lágrimas – penso que pela primeira vez, depois de tudo o que lhe tem acontecido, nomeadamente a reputação do marido e a sua vida como tema de telejornal até ter perdido o amante numa das mortes mais inesperadas dos últimos anos de séries televisivas – pois isto não é propriamente o Game of Thrones onde morre sempre alguém a cada final de temporada. Aqui o jogo de cadeiras é outro e sempre bem conseguido com casos jurídicos que retratam bem os dilemas da América e que perspectivam claramente opiniões em conflito mas que são muitas vezes igualmente válidas. Finalmente também sentimos como Alicia Florrick se volta a aproximar de Agos e Lockhart, pois até agora o malabarismo para tentar conseguir juntar estas duas histórias paralelas tem sido cada vez menos bem sucedido. E depois de nos últimos episódios se ter comportado como uma adolescente amuada, com o facto de a perda que sofreu se ter agravado por uma revelação inesperada e que coloca tudo em causa, há um segundo beijo (e um terceiro), porque afinal Alicia também é uma mulher, não tão autómata ou perfeita como as Stepford Wives, ou a Bree de Desperate Housewives, que continua a procurar uma segunda oportunidade no amor. Esta será pelos vistos a última temporada de uma série que sabe não arrastar – ainda que ultimamente tenha andado a pé coxinho – mas parece que se avizinha um final em grande onde tudo encaixará no seu devido lugar. Ver artigo
Fecha-se hoje para mim o círculo iniciado em 2014 com a estreia da série The Affair.
Cheio de pistas sobre a sua própria trama, como o facto de o seu romance de maior sucesso se designar The Descent, esta série narra a história da ruína de um homem, um escritor já aclamado que se debate com o seu próximo romance, quando se envolve com uma empregada de mesa. Esse caso adúltero porá fim ao seu casamento do qual resultaram 4 filhos. No início da série, esta demarcou-se pela forma como explorava a mesma situação vista por perspectivas diferentes, a dele e a dela, mas depressa começou a evoluír para muito mais do que isso, explorando como dois casais diferentes, agora divididos em 4 individualidades, refazem as suas vidas: a emocional e as outras. A última temporada incorre mesmo num ousado salto – depois da morte de uma das protagonistas no final da temporada anterior – e aborda como a vivência de um trauma pode sobreviver nas gerações seguintes, e retratando, subtilmente, um mundo ele próprio em ruína, assim como uma história de amor que sobrevive às mais variadas peripécias, desde o affair à prisão de uma das personagens, num derradeiro sacrifício de amor, ao querer proteger a ex-mulher.
Este final de uma das minhas séries favoritas – e um dos finais mais bem conseguidos de sempre – consegue, num episódio tão extenso e completo quanto um filme, a proeza de juntar todas as pontas soltas, sem deixar nada por fechar. Maura Tierney tem uma interpretação fabulosa, assim como Ruth Wilson. A série venceu 3 Globos de Ouro, de Melhor Série e Melhores Interpretações. Ver artigo
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