Três Anéis: Uma História de Exílio, Narrativa e Destino, de Daniel Mendelsohn, foi publicado em Setembro de 2022 pela Elsinore. Com tradução de Frederico Pedreira, este é um ensaio premiado e essencial que cruza os géneros da filosofia e do ensaio, da história com as ciências sociais. Ver artigo
Elogio da Literatura, com o subtítulo A Imaginação Cultivada, de Northrop Frye, foi publicado pelas Edições 70. Ver artigo
K como Kolónia — Kafka e a descolonização do imaginário, de Marie-José Mondzain, com tradução de Luís Lima, com a chancela da Orfeu Negro. Particularmente relevante para os estudiosos de literatura, filosofia ou cultura, este é outro daqueles preciosos ensaios que esta editora tem vindo a publicar entre nós, como Pode a subalterna tomar a palavra? ou Questões de Género. Ver artigo
Um Diário de Leituras – Treze Livros para Treze Meses, de Alberto Manguel, é o mais recente livro do autor cuja obra tem vindo a ser publicada pelas Edições Tinta-da-china. Esta edição, traduzida para português por Rita Almeida Simões, inclui um capítulo exclusivo (dedicado à literatura portuguesa, aqui representada por Viagens na Minha Terra) escrito pelo autor a partir de Lisboa: “Uma vez que, agora, o meu país é Portugal, acrescentei um capítulo correspondente à minha experiência de leitura em Setembro de 2021.” (p. 13) Ver artigo
Walter Benjamin: Melancolia e Revolução, ensaio publicado pela Editora Exclamação, recentemente distinguido com o Prémio PEN Ensaio 2020 (ex-aequo com João Barrento), resulta da tese de doutoramento de Maria João Cantinho, onde a autora torna claro, numa linguagem límpida e em subtil crescendo – não isenta da «perplexidade» que por vezes o pensamento de Walter Benjamin lhe provoca –, o percurso das «ideias iniciais que constituem o fermento messiânico do pensamento benjaminiano» que conhecem um inopinado desenvolvimento através do contacto com as leituras do materialismo dialéctico e que conduzem ao seu «pessimismo», que «consiste num olhar advertido contra todos os “falsos optimismos” da história (…) que se inspiram na ilusão do progresso».
«Visionário, o jovem Benjamin esteve sempre na dianteira da sua época, diagnosticando o mal-estar generalizado que crescia lentamente e se insinuava no coração de uma Europa atingida pela catástrofe» (p. 91)
As teses do pensamento benjaminiano, como a autora demonstra logo a partir das suas obras iniciais, são desenvolvidas num contexto político e social onde já se pressente o terror que se avizinha, com a chegada da II Guerra Mundial (que empurra este intelectual na direcção de Portugal em fuga ao nazismo) pelo que este pensamento messiânico é também uma última esperança no futuro da Humanidade, ou um «último gesto que nos salve ainda da catástrofe» (p. 225), a começar pelos estudos em que procura definir uma teoria da linguagem «cuja essência proporcione o ponto de abertura para uma experiência superior, messiânica» (p. 221). O conceito de messianismo não remete, ressalve-se, para a figura de um Messias-Salvador, mas sobretudo de um tempo (não o fim dos tempos, mas o tempo do fim), que respeita ao «acontecimento histórico» e à «interrupção».
A filosofia de Walter Benjamim, como a autora lembra bem, é ainda hoje «um quadro teórico incontornável» (p. 24), inclusivamente nas artes como fotografia e cinema, âmbito aliás em que é mais abordada nas faculdades portuguesas.
Apresentei aqui, no ano passado, uma recensão sobre o romance biográfico A Travessia de Benjamin, de Jay Parini, publicada pela Elsinore, que narra os últimos dias da vida deste alemão de origem judaica, que se fazia acompanhar de uma mala onde transporta a sua obra, um manuscrito com cerca de 100 páginas e outros textos.
«Visionário, o jovem Benjamin esteve sempre na dianteira da sua época, diagnosticando o mal-estar generalizado que crescia lentamente e se insinuava no coração de uma Europa atingida pela catástrofe» (p. 91)
As teses do pensamento benjaminiano, como a autora demonstra logo a partir das suas obras iniciais, são desenvolvidas num contexto político e social onde já se pressente o terror que se avizinha, com a chegada da II Guerra Mundial (que empurra este intelectual na direcção de Portugal em fuga ao nazismo) pelo que este pensamento messiânico é também uma última esperança no futuro da Humanidade, ou um «último gesto que nos salve ainda da catástrofe» (p. 225), a começar pelos estudos em que procura definir uma teoria da linguagem «cuja essência proporcione o ponto de abertura para uma experiência superior, messiânica» (p. 221). O conceito de messianismo não remete, ressalve-se, para a figura de um Messias-Salvador, mas sobretudo de um tempo (não o fim dos tempos, mas o tempo do fim), que respeita ao «acontecimento histórico» e à «interrupção».
A filosofia de Walter Benjamim, como a autora lembra bem, é ainda hoje «um quadro teórico incontornável» (p. 24), inclusivamente nas artes como fotografia e cinema, âmbito aliás em que é mais abordada nas faculdades portuguesas.
Apresentei aqui, no ano passado, uma recensão sobre o romance biográfico A Travessia de Benjamin, de Jay Parini, publicada pela Elsinore, que narra os últimos dias da vida deste alemão de origem judaica, que se fazia acompanhar de uma mala onde transporta a sua obra, um manuscrito com cerca de 100 páginas e outros textos.
Alberto Manguel, nascido em Buenos Aires em 1948, é sobejamente conhecido como ensaísta, desde o seu Uma História da Leitura – que já merecia uma nova edição, entretanto confirmada pela editora para sair ainda este ano, até porque é uma Bíblia para estudantes de literatura e para todos aqueles que apreciam o livro como objecto). Quase toda a sua obra de ensaio tem vindo a ser publicada pela Tinta-da-China, desde 2013, que aliás incluiu na edição portuguesa do livro um posfácio inédito, até porque o autor prepara-se para vir para Lisboa. Graças a Bárbara Bulhosa, sua editora portuguesa, surgiu da parte da Câmara de Lisboa a possibilidade do autor voltar a desembalar a sua biblioteca pois, ao contrário de Borges (que tinha em casa uns cantinhos discretos com livros e uma boa parte da sua biblioteca memorizada), Manguel tem cerca de 40 mil títulos que serão recebidos na capital portuguesa, num novo espaço municipal a funcionar como biblioteca e Centro de Estudos sobre a História da Leitura.
Com Borges, traduzido por Rita Almeida Simões, pequena pérola com 82 páginas e perfeito para caber no bolso, revisita uma figura tutelar de Alberto Manguel, Jorge Luis Borges, que é também a influência de muitos outros escritores, desde Gabriel García Márquez a Umberto Eco – que cria uma personagem de O Nome da Rosa como homenagem a Borges.
Quando, em 1964, um escritor cego convida um livreiro de 16 anos para lhe ler em voz alta, o rapaz não tem em grande conta a excepcionalidade do encontro, pois Manguel já amava livros e havia, em Buenos Aires, um vasto conjunto de pessoas que serviram como leitores ao director da Biblioteca Nacional quando Borges cegou, por volta dos 60 anos (condição congénita e previsível).
Neste livro de memória afectiva, Manguel resume o decurso desses serões ao longo de 4 anos, mas ao rememorar está também a narrar – e pela primeira vez nos seus ensaios tem mesmo breves trechos de efabulação, ou não fosse o acto de recordar e recontar uma ficção em si – a partilha de breves momentos domésticos, que recorda com suspeita nitidez. Mas este é também um livro que explora a obra do autor, destacando alguns dos seus contos e temáticas, para (re)ler em constelação com obras recentemente publicadas pela Quetzal – Na Patagónia, de Bruce Chatwin, a nova edição de Ficções ou a antologia de ensaios Outras Inquirições.
Com Borges, traduzido por Rita Almeida Simões, pequena pérola com 82 páginas e perfeito para caber no bolso, revisita uma figura tutelar de Alberto Manguel, Jorge Luis Borges, que é também a influência de muitos outros escritores, desde Gabriel García Márquez a Umberto Eco – que cria uma personagem de O Nome da Rosa como homenagem a Borges.
Quando, em 1964, um escritor cego convida um livreiro de 16 anos para lhe ler em voz alta, o rapaz não tem em grande conta a excepcionalidade do encontro, pois Manguel já amava livros e havia, em Buenos Aires, um vasto conjunto de pessoas que serviram como leitores ao director da Biblioteca Nacional quando Borges cegou, por volta dos 60 anos (condição congénita e previsível).
Neste livro de memória afectiva, Manguel resume o decurso desses serões ao longo de 4 anos, mas ao rememorar está também a narrar – e pela primeira vez nos seus ensaios tem mesmo breves trechos de efabulação, ou não fosse o acto de recordar e recontar uma ficção em si – a partilha de breves momentos domésticos, que recorda com suspeita nitidez. Mas este é também um livro que explora a obra do autor, destacando alguns dos seus contos e temáticas, para (re)ler em constelação com obras recentemente publicadas pela Quetzal – Na Patagónia, de Bruce Chatwin, a nova edição de Ficções ou a antologia de ensaios Outras Inquirições.
Escreve Anabela Mendes no posfácio que a escrita de Steiner «não é intrincada nem obscura» mas diz também mais perto do fim que para «ler Steiner como ele merece, temos de tirar férias da vida» (p. 136). Steiner não é, efectivamente, leitura a tentar no meio de uma praia familiar onde as pessoas têm tendência para deitar a toalha mesmo ao nosso lado. É preciso silêncio e recolhimento, pois nestes 6 ensaios (de datas tão díspares como 1981 ou 2004) do autor recolhidos nesta edição de Fevereiro de 2017 da Relógio d’Água, graças à iniciativa de Ricardo Gil Soeiro, organizador e tradutor, a quem Steiner cedeu prontamente autorização dos direitos de reprodução dos seus ensaios, a linguagem pode tornar-se complexa, dada a profusão de referências nomeadamente nos dois primeiros ensaios, que se debruçam sobre os estudos literários. Ricardo Gil Soeiro, um estudioso do autor (quero ler a obra, penso que organizada por si, O pensamento tornado dança) oferece-nos ainda um prefácio bastante esclarecedor, feito ensaio a ensaio, que nos preparam para as próximas cerca de 130 páginas: «Narciso e Eco», sendo aqui a crítica esse eco em torno da narrativa narcísica que vive por si e para si, e o eco a vida que o leitor lhe dá a cada nova leitura; «Uma leitura bem feita» sobre o que deve ser uma boa leitura; um estudo sobre a tragédia; uma análise do Holocausto, que o autor prefere designar por Shoah, e de como a linguagem se tornou insuficiente para descrever ou narrar o mundo uma vez ultrapassado o limite do inimaginável na história humana; «O Crepúsculo das Humanidades?» onde o autor começa por definir o conceito de crise para depois pôr em causa até que ponto as Humanidades estarão realmente em declínio. Steiner reconhece que o «académico e o professor das Letras foram economicamente marginalizados», numa era em que a imagem impera sobre a palavra e o pensamento, mas também parece considerar como motivo para o declínio das Humanidades a polémica noção de que a arte afinal contribuiu pouco para elevar o homem e os valores humanos: «Hoje sabemos – e depois de um tal conhecimento, qual o perdão? – que este postulado, na sua roupagem milenar e clássica, está errado. Sabemos que as conquistas proeminentes da educação, os elevados níveis de uma literacia pública não inibiram a tortura, os assassínios em massa e os massacres colectivos», pois pode-se «tocar Schubert ou ler Virgílio no seu lar e depois continuar o seu trabalho diário nas câmaras de tortura e nos campos de extermínio» (p. 116). Por fim, o autor deixa-nos uma fantástica elegia à singularidade de Fernando Pessoa no panorama da literatura mundial: «É raro um país e uma língua ganharem num só dia quatro poetas maiores» (p. 125), onde não faltam considerações sobre a melancolia e espiritualidade lisboeta, várias citações e uma análise sucinta mas brilhante de como Pessoa se estilhaçou para se tornar mais inteiro, aconselhando ainda, no final, a leitura de «um dos maiores romances da literatura europeia recente»: O ano da morte de Ricardo Reis.
Neste breve ensaio, publicado pela Gradiva, George Steiner, professor de Literatura Comparada na Universidade de Genebra e depois em Oxford, começa por discutir a importância da literatura face à oralidade, numa sociedade cujos textos fundacionais são, como se sabe, obras que nasceram justamente da lírica, como a Odisseia ou a Ilíada. Daí parte para a falta de tempo para a leitura como uma das principais ameaças à sobrevivência das letras mas, ainda mais do que isso, a importância do silêncio, como um bem tão difícil de se obter nos tempos modernos (é inevitável lembrar-me de Proust fechado no seu quarto forrado a corticite a escrever Em busca do tempo perdido na cama) e que é fundamental à leitura, como já acontecia nos mosteiros da Idade Média, onde os monges se recolhiam nas suas bibliotecas e, apesar da questão da autoria na altura não se colocar como hoje, muitas vezes criavam um segundo texto a partir dos seus comentários ao texto original. Pondera depois sobre o desinteresse das crianças e jovens pelos livros, a partir do exemplo da personagem-criança alter ego de Proust que deveria ser visto como a anormalidade, apesar de ele na altura conseguir escapar às convenções sociais refugiando-se na leitura sem risco de ser repreendido – isto lembra-me também a estranheza com que muitas vezes as pessoas me olhavam por me verem sempre agarrado a um livro sempre que chego a algum lado (como hoje se agarra um telefone), ou o eco das palavras da minha avó que me anunciava cegueira ou loucura como resultado de tanto ler. Até considerar, em jeito de conclusão, a possibilidade de se estar a aproximar a era do fim da literatura, ao jeito de Umberto Eco em Não contem com o fim dos livros, na sua recentíssima conversa com Jean-Claude Carrière, livro também publicado pela Gradiva. No final do livro, inclui-se ainda outro breve texto, intitulado «Esse vício ainda impune», que constitui a resposta de Michel Crépu a George Steiner.
Partilhamos o texto de apresentação enquanto não recenseamos a obra:
O Que Faria Eu se Estivesse no Meu Lugar? – 10 Conversas de vida com António Lobo Antunes, de Celso Filipe, publicado pela Planeta, é «Uma visão intimista de um dos maiores escritores da actualidade: o que pensa hoje António Lobo Antunes sobre o amor, a amizade, a infância e a família, o ofício de escritor, a fama, os prémios, a posteridade. À bolina e sem fronteiras pelo pensamento de um dos maiores escritores contemporâneos – a escrita e a posteridade vistas do lugar de uma amizade conversável. Para memória futura. «Este não é um livro do António Lobo Antunes nem um livro sobre o António Lobo Antunes. É uma mistura de ambos, construído a partir de 10 conversas que tiveram lugar entre Abril e Agosto de 2016. Quando o escritor me desafiou a fazermos um livro juntos, a tentação subsequente foi a de estabelecer um plano, cada conversa com um tempo, por exemplo, a linguagem, a família, o amor, os amigos.»
O Que Faria Eu se Estivesse no Meu Lugar? – 10 Conversas de vida com António Lobo Antunes, de Celso Filipe, publicado pela Planeta, é «Uma visão intimista de um dos maiores escritores da actualidade: o que pensa hoje António Lobo Antunes sobre o amor, a amizade, a infância e a família, o ofício de escritor, a fama, os prémios, a posteridade. À bolina e sem fronteiras pelo pensamento de um dos maiores escritores contemporâneos – a escrita e a posteridade vistas do lugar de uma amizade conversável. Para memória futura. «Este não é um livro do António Lobo Antunes nem um livro sobre o António Lobo Antunes. É uma mistura de ambos, construído a partir de 10 conversas que tiveram lugar entre Abril e Agosto de 2016. Quando o escritor me desafiou a fazermos um livro juntos, a tentação subsequente foi a de estabelecer um plano, cada conversa com um tempo, por exemplo, a linguagem, a família, o amor, os amigos.»
O livro-ensaio «A flor amarela – ímpeto e melancolia em Machado de Assis», de Anabela Mota Ribeiro, publicado pela Quetzal, é uma óptima desculpa para se (re)ler uma das grandes obras da literatura de língua portuguesa, Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, que é considerado o maior escritor brasileiro de sempre.
Um ensaio, como a própria autora esclarece em jeito de conclusão, é sobretudo uma interrogação, um tactear caminho, onde não se procura o encerrar definitivo em concha da obra em análise mas sim o ressoar da obra, como um búzio, uma caixa de ressonância onde outras obras e outros autores encontram ou despertam ecos.
Por isso mesmo ainda que partindo de uma ideia em torno da imagem da flor amarela, que simboliza a melancolia da personagem de Brás Cubas, e do seu reverso que é o ímpeto cesariano, «um ímpeto conquistador mais ligado ao fazer social», isto é, deixar algo que perdure para lá da vida, a autora deste ensaio vai lançando pistas e deixando pontas soltas para depois as voltar a atar, ou não. Porque a literatura se mantém viva enquanto aberta a várias leituras, a autora opta por se ir questionando para depois aventar respostas possíveis, sempre com base no texto em análise, que segue de forma mais ou menos sequencial ao início, mas do qual depois acaba por se descolar, conforme as questões que o texto lança se tornam cada vez mais complexas. A melancolia, essa «miséria», «relação não-quite com a vida», que Brás Cubas tenta suprir ao querer deixar um legado que lhe dê nomeada lembra a apatia ou o diletantismo que encontraremos num dos seus seguidores ou confessos admiradores, Eça de Queirós, mais precisamente na personagem de Carlos da Maia.
Em linguagem escorreita e concisa, e frases breves, o livro é composto por 45 capítulos/fragmentos, por vezes de duas páginas apenas, à semelhança dos capítulos breves de Memórias Póstumas de Brás Cubas, todos eles igualmente intitulados de forma sugestiva, para no final, e mais uma vez tal como em Machado de Assis, interpelar directamente o leitor.
Se Brás Cubas, esse narrador que nos fala do sepulcro, segue um fio cronológico, procurando não deixar pontas soltas na obra, ainda que deixe por resolver algumas linhas melódicas que depois retoma apenas para concluir (não há personagem introduzida que não seja posteriormente recuperada), Anabela Mota Ribeiro sem procurar responder a tudo aquilo a que se propõe, nem procurar impôr uma interpretação única, vai conduzindo o leitor pela obra, em certos avanços e recuos, à medida que tenta comprovar a sua tese e enquanto vai desvendando a forma como certos acontecimentos narrados se encadeiam. Pelo caminho, mostra-nos ainda como Machado de Assis foi lido por outros (Harold Bloom e Susan Sontag, por exemplo), quais as ideias que dele retiveram, e conduz-nos ao terreno puro da filosofia de Schopenhauer – de quem bebe o pessimismo –, Nietzsche, Freud… E a partir da metade do ensaio, principalmente quando se desvela esse substrato filosófico que assiste à obra de Machado de Assis, a autora ganha mais ímpeto e este ensaio sobre uma obra literária torna-se, tal como a boa literatura, um texto sobre a vida, o sentido da vida e de como a escrita pode ser o «ímpeto cesariano» que tira sentido da vida, que lhe confere sentido, que transcende a vida:
«entretecidas com fio pessimista, há uma respiração afirmativa, motivada, a nosso ver, pelo ato da escrita. Brás Cubas, ao decidir narrar as suas memórias, e numa cirscunstância post mortem, nega desse modo a morte e a contingência inelutável do humano. Escrever transforma-se num exercício de superação.» (pág. 134).
Este ensaio é um óptimo guia de redescoberta de uma obra prima da literatura em português, onde se exploram influências, imagens recorrentes – como a da flor, metáfora de sentidos vários –, símbolos e presságios, num texto que a certa altura quase se institui como narrativa autónoma e que de forma circular, como a obra que o inspirou, deixa em aberto várias portas de entrada, insinuando que numa leitura não há fim que não remeta para o princípio (o que está magistralmente ilustrado nas Memórias), que ler um livro puxa outras leituras e é no acto da leitura que reside a continuidade da obra.
Um ensaio, como a própria autora esclarece em jeito de conclusão, é sobretudo uma interrogação, um tactear caminho, onde não se procura o encerrar definitivo em concha da obra em análise mas sim o ressoar da obra, como um búzio, uma caixa de ressonância onde outras obras e outros autores encontram ou despertam ecos.
Por isso mesmo ainda que partindo de uma ideia em torno da imagem da flor amarela, que simboliza a melancolia da personagem de Brás Cubas, e do seu reverso que é o ímpeto cesariano, «um ímpeto conquistador mais ligado ao fazer social», isto é, deixar algo que perdure para lá da vida, a autora deste ensaio vai lançando pistas e deixando pontas soltas para depois as voltar a atar, ou não. Porque a literatura se mantém viva enquanto aberta a várias leituras, a autora opta por se ir questionando para depois aventar respostas possíveis, sempre com base no texto em análise, que segue de forma mais ou menos sequencial ao início, mas do qual depois acaba por se descolar, conforme as questões que o texto lança se tornam cada vez mais complexas. A melancolia, essa «miséria», «relação não-quite com a vida», que Brás Cubas tenta suprir ao querer deixar um legado que lhe dê nomeada lembra a apatia ou o diletantismo que encontraremos num dos seus seguidores ou confessos admiradores, Eça de Queirós, mais precisamente na personagem de Carlos da Maia.
Em linguagem escorreita e concisa, e frases breves, o livro é composto por 45 capítulos/fragmentos, por vezes de duas páginas apenas, à semelhança dos capítulos breves de Memórias Póstumas de Brás Cubas, todos eles igualmente intitulados de forma sugestiva, para no final, e mais uma vez tal como em Machado de Assis, interpelar directamente o leitor.
Se Brás Cubas, esse narrador que nos fala do sepulcro, segue um fio cronológico, procurando não deixar pontas soltas na obra, ainda que deixe por resolver algumas linhas melódicas que depois retoma apenas para concluir (não há personagem introduzida que não seja posteriormente recuperada), Anabela Mota Ribeiro sem procurar responder a tudo aquilo a que se propõe, nem procurar impôr uma interpretação única, vai conduzindo o leitor pela obra, em certos avanços e recuos, à medida que tenta comprovar a sua tese e enquanto vai desvendando a forma como certos acontecimentos narrados se encadeiam. Pelo caminho, mostra-nos ainda como Machado de Assis foi lido por outros (Harold Bloom e Susan Sontag, por exemplo), quais as ideias que dele retiveram, e conduz-nos ao terreno puro da filosofia de Schopenhauer – de quem bebe o pessimismo –, Nietzsche, Freud… E a partir da metade do ensaio, principalmente quando se desvela esse substrato filosófico que assiste à obra de Machado de Assis, a autora ganha mais ímpeto e este ensaio sobre uma obra literária torna-se, tal como a boa literatura, um texto sobre a vida, o sentido da vida e de como a escrita pode ser o «ímpeto cesariano» que tira sentido da vida, que lhe confere sentido, que transcende a vida:
«entretecidas com fio pessimista, há uma respiração afirmativa, motivada, a nosso ver, pelo ato da escrita. Brás Cubas, ao decidir narrar as suas memórias, e numa cirscunstância post mortem, nega desse modo a morte e a contingência inelutável do humano. Escrever transforma-se num exercício de superação.» (pág. 134).
Este ensaio é um óptimo guia de redescoberta de uma obra prima da literatura em português, onde se exploram influências, imagens recorrentes – como a da flor, metáfora de sentidos vários –, símbolos e presságios, num texto que a certa altura quase se institui como narrativa autónoma e que de forma circular, como a obra que o inspirou, deixa em aberto várias portas de entrada, insinuando que numa leitura não há fim que não remeta para o princípio (o que está magistralmente ilustrado nas Memórias), que ler um livro puxa outras leituras e é no acto da leitura que reside a continuidade da obra.
Sobre a autora:
«Anabela Mota Ribeiro nasceu no mesmo dia de Brás Cubas, 20 de outubro, em 1971 (a personagem de Machado de Assis nasceu em 1805). É licenciada e mestre em Filosofia,pela Universidade Nova de Lisboa. Jornalista freelance, colaborou com diversos jornais e revistas. Atualmente, e desde 2008, escreve para o Público. O género a que mais se tem dedicado é a entrevista. Trabalhou em rádio e em televisão, como autora e apresentadora. Organiza e modera
debates sobre livros. É curadora da Folia (do Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos). Publicou os livros O Sonho de Um Curioso (2003), com 14 entrevistas, Este Ser e não Ser – Cinco Conversas com Maria de Sousa (maio de 2016), Paula Rego por Paula Rego (novembro de 2016). Desde 2013 que disponibiliza o seu arquivo, com centenas de artigos, no blog http://anabelamotaribeiro.pt.»
Pesquisar:
Subscrição
Artigos recentes
Categorias
- Álbum fotográfico
- Álbum ilustrado
- Banda Desenhada
- Biografia
- Ciência
- Cinema
- Contos
- Crítica
- Desenvolvimento Pessoal
- Ensaio
- Espiritualidade
- Fantasia
- História
- Leitura
- Literatura de Viagens
- Literatura Estrangeira
- Literatura Infantil
- Literatura Juvenil
- Literatura Lusófona
- Literatura Portuguesa
- Música
- Não ficção
- Nobel
- Policial
- Romance histórico
- Sem categoria
- Séries
- Thriller
Arquivo
- Março 2023
- Fevereiro 2023
- Janeiro 2023
- Dezembro 2022
- Novembro 2022
- Outubro 2022
- Setembro 2022
- Agosto 2022
- Julho 2022
- Junho 2022
- Maio 2022
- Abril 2022
- Março 2022
- Fevereiro 2022
- Janeiro 2022
- Dezembro 2021
- Novembro 2021
- Outubro 2021
- Setembro 2021
- Agosto 2021
- Julho 2021
- Junho 2021
- Maio 2021
- Abril 2021
- Março 2021
- Fevereiro 2021
- Janeiro 2021
- Dezembro 2020
- Novembro 2020
- Outubro 2020
- Setembro 2020
- Agosto 2020
- Julho 2020
- Junho 2020
- Maio 2020
- Abril 2020
- Março 2020
- Fevereiro 2020
- Janeiro 2020
- Dezembro 2019
- Novembro 2019
- Outubro 2019
- Setembro 2019
- Agosto 2019
- Julho 2019
- Junho 2019
- Maio 2019
- Abril 2019
- Março 2019
- Fevereiro 2019
- Janeiro 2019
- Dezembro 2018
- Novembro 2018
- Outubro 2018
- Setembro 2018
- Agosto 2018
- Julho 2018
- Junho 2018
- Maio 2018
- Abril 2018
- Março 2018
- Fevereiro 2018
- Janeiro 2018
- Dezembro 2017
- Novembro 2017
- Outubro 2017
- Setembro 2017
- Agosto 2017
- Julho 2017
- Junho 2017
- Maio 2017
- Abril 2017
- Março 2017
- Fevereiro 2017
- Janeiro 2017
- Dezembro 2016
- Novembro 2016
- Outubro 2016
Etiquetas
Akiara
Alfaguara
Ana Teresa Pereira
Antígona
ASA
Bertrand
Bertrand Editora
Booker Prize
casa das Letras
Cavalo de Ferro
Companhia das Letras
Dom Quixote
Editorial Presença
Edições Tinta-da-china
Elena Ferrante
Elsinore
Fábula
Gradiva
Hélia Correia
Isabel Allende
José Saramago
João de Melo
Juliet Marillier
Leya
Livros do Brasil
Lídia Jorge
Margaret Atwood
Minotauro
New York Times
Objectiva
Patrícia Reis
Pergaminho
Planeta
Porto Editora
Publicações Dom Quixote
Quetzal
Relógio d'Água
Relógio d’Água
Série
Temas e Debates
Teorema
The New York Times
Thomas Mann
Trilogia
Tânia Ganho