Tornado, de Teresa Noronha, foi publicado pela Editora Exclamação em Março de 2021. Vencedor da 1.ª edição do Prémio Literário Maria Velho da Costa, criado pela Sociedade Portuguesa de Autores, e incluído no Plano Nacional de Leitura, o promissor romance de estreia da autora foi novamente distinguido em Portugal, há semanas, com o Prémio PEN. Ver artigo
Maremoto, de Djaimilia Pereira de Almeida, autora publicada pela Relógio d’Água, que relançou inclusivamente o seu primeiro romance, Esse Cabelo (anteriormente publicado pela Teorema), é um pequeno livro, de capítulos em geral curtos, com cerca de 3 páginas cada, de prosa vigorosa, numa voz original despida de pretensões a desfiar uma história cujo impacto e irresolução perdurará no leitor. Num registo predominantemente na primeira pessoa, o leitor partilha do fluxo nem sempre ordenado dos pensamentos do protagonista, ficando a conhecer a vida de um mendigo, nas suas angústias e pequenas alegrias. Boa Morte da Silva é um arrumador de carros, ex-combatente colonial, mais ou menos efetivado na rua António Maria Cardoso, em Lisboa, que escreve para a filha Aurora – note-se o contraste simbólico entre o nome do pai e o da filha. Os papéis que (nos) escreve, e que procura conservar com todo o cuidado (são aliás o seu único bem), as palavras jogadas ao vento, oscilam entre a certeza de querer passar o seu testemunho de vida à filha que nunca viu, e que ora anseia por reencontrar, numa expectativa que o mantém vivo, ora admite poder nunca voltar a ver: «no fundo sei que falo sozinho. É só porque teu nome, tua ideia, é minha respiração. És a minha vírgula, filha.» (p. 66) Ver artigo
A Escola de Topeka, de Ben Lerner, publicado pela Relógio d’Água no final do ano passado, com tradução de Alda Rodrigues. Considerado como um dos grandes autores contemporâneos, este livro foi finalista do Prémio Pulitzer, vencedor do Los Angeles Times Book Prize e considerado como um dos 10 Melhores Livros do Ano para o New York Times, a revista Time e o Washington Post. Sendo este o seu terceiro romance, Ben Lerner sofre no entanto, entre nós, da desvantagem da sua obra estar traduzida de forma dispersa e talvez por isso quase passar despercebida. O seu romance de estreia Leaving the Atocha Station continua por publicar entre nós. A Teorema publicou 10:04, o seu segundo romance, em 2015, e a Elsinore publicou o ensaio Ódio à Poesia (a poesia é curiosamente ominipresente na obra do autor, na sua prosa poética, bem como nas constantes citações implícitas de poemas). Ver artigo
Não podia terminar o ano sem um livro que fui adiando de propósito para esta altura. Primeiro porque seria um reencontro, pois li há anos o Sobre a Leitura, de Marcel Proust, numa edição da Teorema intitulada O Prazer da Leitura, e um prazer redescoberto, pois agora surge novinho publicado pela Relógio d’Água com uma nova tradução (e também pela Antígona, numa edição lançada em simultâneo). E o sentimento mantém-se. Tal como o autor nos diz logo na abertura deste ensaio: «Talvez não haja dias da nossa infância que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que cremos ter deixado sem os viver, aqueles que passámos com um livro preferido.» (p. 7)
Seja na infância, seja na adolescência, ou no caso de alguns leitores inveterados, no resto dos seus dias, consigo recordar certos períodos da minha vida mediante uma memória associativa do livro que estava a ler então, assim como do sítio em que o lia, não sentado na poltrona com um manto de rosas brancas de croché como Proust mas usualmente sobre a cama (e ainda hoje a minha zona lombar se ressente das longas horas de leitura deitado de barriga para baixo). A vantagem do leitor perante um Proust infante é óbvia, pois não se corre o risco de ter de interromper a leitura ao ser chamado para o «demorado» almoço (p. 10) ou ter de esperar pela autorização dos pais ou de acender uma vela durante a noite para incorrer numa insónia. Mas independentemente do livro em que estejamos imersos, e de quão profundo o mergulho, é também a «imagem dos lugares e dos dias» (p. 19) em que fizemos tais leituras que perdura, como o autor comprova ao dissertar durante 20 páginas sobre tudo o que o rodeia, e o emoldura, e não propriamente a leitura ou o livro aberto. A sensação que temos ao ler este ensaio, de início, é aliás como estar novamente imerso na leitura de Do Lado de Swann, primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido (nessa belíssima tradução musicada de Pedro Tamen, também publicada pela Relógio d’Água), quando o narrador nos reconduz pela memória da sua infância. E também não falta a estas páginas uma certa sinestesia proustiana, quando ao som dos sinos associa o odor dos bolos açúcarados. Conforme afirma o autor, ao querer falar delas, as leituras, «falei de coisa completamente diferente dos livros porque não foi deles que elas me falaram. Mas talvez as recordações que me trouxeram uma atrás da outra tenham elas mesmas despertado no leitor e o tenham pouco a pouco levado , enquanto se demorava nesses caminhos floridos e cheios de rodeios, a recriar no seu espírito o ato psicológico original chamado Leitura» (p. 21). A partir daqui, naquela que é a segunda metade do ensaio, quebra-se um pouco a magia do poder evocativo da leitura em paralelo com a revivificação da memória conforme o autor decide alinhavar as suas «poucas reflexões» que lhe restam. Entre Ruskin e Racine, passando por outros autores e também pintores – porque estes nos ensinam «à maneira dos poetas» (p. 26) –, Proust destila os seus pensamentos sobre «o papel ao mesmo tempo essencial e limitado que a leitura pode desempenhar na nossa vida espiritual» (p. 26), ao mesmo tempo que alerta certos leitores mais vorazes (não vou dizer nomes…) para os perigos da leitura, quando esta ao invés de despertar o espírito, a inteligência, tende a substituir a vida.
Seja na infância, seja na adolescência, ou no caso de alguns leitores inveterados, no resto dos seus dias, consigo recordar certos períodos da minha vida mediante uma memória associativa do livro que estava a ler então, assim como do sítio em que o lia, não sentado na poltrona com um manto de rosas brancas de croché como Proust mas usualmente sobre a cama (e ainda hoje a minha zona lombar se ressente das longas horas de leitura deitado de barriga para baixo). A vantagem do leitor perante um Proust infante é óbvia, pois não se corre o risco de ter de interromper a leitura ao ser chamado para o «demorado» almoço (p. 10) ou ter de esperar pela autorização dos pais ou de acender uma vela durante a noite para incorrer numa insónia. Mas independentemente do livro em que estejamos imersos, e de quão profundo o mergulho, é também a «imagem dos lugares e dos dias» (p. 19) em que fizemos tais leituras que perdura, como o autor comprova ao dissertar durante 20 páginas sobre tudo o que o rodeia, e o emoldura, e não propriamente a leitura ou o livro aberto. A sensação que temos ao ler este ensaio, de início, é aliás como estar novamente imerso na leitura de Do Lado de Swann, primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido (nessa belíssima tradução musicada de Pedro Tamen, também publicada pela Relógio d’Água), quando o narrador nos reconduz pela memória da sua infância. E também não falta a estas páginas uma certa sinestesia proustiana, quando ao som dos sinos associa o odor dos bolos açúcarados. Conforme afirma o autor, ao querer falar delas, as leituras, «falei de coisa completamente diferente dos livros porque não foi deles que elas me falaram. Mas talvez as recordações que me trouxeram uma atrás da outra tenham elas mesmas despertado no leitor e o tenham pouco a pouco levado , enquanto se demorava nesses caminhos floridos e cheios de rodeios, a recriar no seu espírito o ato psicológico original chamado Leitura» (p. 21). A partir daqui, naquela que é a segunda metade do ensaio, quebra-se um pouco a magia do poder evocativo da leitura em paralelo com a revivificação da memória conforme o autor decide alinhavar as suas «poucas reflexões» que lhe restam. Entre Ruskin e Racine, passando por outros autores e também pintores – porque estes nos ensinam «à maneira dos poetas» (p. 26) –, Proust destila os seus pensamentos sobre «o papel ao mesmo tempo essencial e limitado que a leitura pode desempenhar na nossa vida espiritual» (p. 26), ao mesmo tempo que alerta certos leitores mais vorazes (não vou dizer nomes…) para os perigos da leitura, quando esta ao invés de despertar o espírito, a inteligência, tende a substituir a vida.
Depois de ter apresentado A Mulher, cuja adaptação cinematográfica estreou recentemente nas salas de cinema portuguesas, foi agora publicado pela Teorema outro livro da autora o seu mais recente livro. A Persuasão Feminina foi publicado no original ainda este ano.
Greer Kadetsky é uma promissora aluna que namora com o seu vizinho da frente Cory Pinto, filho de imigrantes portugueses, e é aceite na universidade de Yale com uma bolsa de estudo. Contudo, vê a sua entrada vedada pela incapacidade dos seus pais hippies e ganzados em preencherem devidamente um formulário, da mesma forma que nunca se deram ao trabalho de fazer uma refeição para a filha que desde cedo aprendeu a orientar-se sozinha.
Quando termina o curso numa faculdade mediana do Sul do Connectitut, mas onde recebeu também uma bolsa de estudos completa, Greer começa a pensar em encontrar um emprego e enquanto imagina ser escritora, recorda o seu encontro marcante com Faith Frank, oradora convidada no Ryland College em 2006, figura icónica e carismática do feminismo americano, não isenta de polémica, e autora do livro A Persuasão Feminina.
Esta é a história de como Greer dá largas à sua ambição e se vê a trabalhar numa associação humanitária com Faith Frank, uma mulher que apaixona todos em seu redor, enquanto Cory ingressa no mundo da alta finança, mesmo que isso implique ir viver para Manila, nas Filipinas, mas subitamente sofre uma tragédia que o faz repensar as suas prioridades…
Meg Wolitzer é o que se pode considerar uma autora feminista, procurando analisar nos seus romances qual o papel da mulher no mundo actual e denunciar injustiças que ainda persistem, especialmente num momento da História em que a «misoginia tinha apanhado o mundo num ataque total e indisfarçado» (p. 461). Mas Wolitzer atenta também na forma como o próprio homem pode ser um feminista, ainda que não tenha essa consciência, como acontece quando Cory abdica de tudo em prol da família. Este é também um romance sobre a perda da inocência, focando-se sobretudo no que significa tornar-se adulto, o que aliás já acontecera um pouco em Os Interessantes, mas é aqui analisado e ficcionado em maior profundidade.
Greer Kadetsky é uma promissora aluna que namora com o seu vizinho da frente Cory Pinto, filho de imigrantes portugueses, e é aceite na universidade de Yale com uma bolsa de estudo. Contudo, vê a sua entrada vedada pela incapacidade dos seus pais hippies e ganzados em preencherem devidamente um formulário, da mesma forma que nunca se deram ao trabalho de fazer uma refeição para a filha que desde cedo aprendeu a orientar-se sozinha.
Quando termina o curso numa faculdade mediana do Sul do Connectitut, mas onde recebeu também uma bolsa de estudos completa, Greer começa a pensar em encontrar um emprego e enquanto imagina ser escritora, recorda o seu encontro marcante com Faith Frank, oradora convidada no Ryland College em 2006, figura icónica e carismática do feminismo americano, não isenta de polémica, e autora do livro A Persuasão Feminina.
Esta é a história de como Greer dá largas à sua ambição e se vê a trabalhar numa associação humanitária com Faith Frank, uma mulher que apaixona todos em seu redor, enquanto Cory ingressa no mundo da alta finança, mesmo que isso implique ir viver para Manila, nas Filipinas, mas subitamente sofre uma tragédia que o faz repensar as suas prioridades…
Meg Wolitzer é o que se pode considerar uma autora feminista, procurando analisar nos seus romances qual o papel da mulher no mundo actual e denunciar injustiças que ainda persistem, especialmente num momento da História em que a «misoginia tinha apanhado o mundo num ataque total e indisfarçado» (p. 461). Mas Wolitzer atenta também na forma como o próprio homem pode ser um feminista, ainda que não tenha essa consciência, como acontece quando Cory abdica de tudo em prol da família. Este é também um romance sobre a perda da inocência, focando-se sobretudo no que significa tornar-se adulto, o que aliás já acontecera um pouco em Os Interessantes, mas é aqui analisado e ficcionado em maior profundidade.
Depois de Os Interessantes, que virou um filme da Amazon, a Teorema publicou A Mulher, que estreia esta semana nas salas de cinema portuguesas no que promete ser mais uma grande interpretação de Glenn Close. Foi ainda publicado recentemente pela Dom Quixote outro livro da autora, Persuasão Feminina.
A leitura é extremamente aprazível devido ao humor e à ironia da autora, capaz de arrancar um sorriso mordaz enquanto vamos virando as páginas num ápice, completamente envolvidos na história. Joan Castleman está a trinta e cinco mil pés de altitude a acompanhar o marido que se prepara para receber o Prémio de Helsínquia – uma clara alusão ao Nobel – quando decide finalmente divorciar-se do marido. Num jogo de alternância entre esse momento decisivo em que Joe se prepara para receber o prémio que é o culminar da sua carreira de escritor e o passado do que foi a sua vida em comum, desde o momento em que Joan o conheceu nas aulas de escrita criativa, em 1956, a autora tece um retrato de um casal que vive com um segredo – as pistas estão lá desde o início, pelo menos eu sempre senti que havia algo sob a superfície –, em que uma mulher, como tantas outras na História da Humanidade ou, melhor dizendo, da Mulher, se anula em prol do marido, de forma a lhe garantir o conforto e até mesmo o sustento para que ele se possa lançar na sua almejada carreira de escritor:
«Ela nada sabia acerca desta subcultura de mulheres que ficavam, de mulheres que não eram capazes de apresentar uma explicação lógica para as suas lealdades, que se aguentavam porque isso era o mais confortável, a coisa de que realmente gostavam. Ela não compreendia o luxo do familiar, do conhecido (…). O marido. Uma figura rumo à qual nunca avançávamos, nunca nos entusiasmávamos, mas ao lado da qual simplesmente vivíamos, estação após estação, que começava a acumular-se como tijolos grossos, unidos por uma argamassa desleixada. O muro do casamento erguia-se entre nós, uma cama conjugal, na qual nos deitávamos com gratidão.» (pág. 106).
É particularmente interessante a análise que a autora faz da impossibilidade de uma mulher escritora vingar por si mesma no mundo literário, sem ser abafada num mundo dominado por homens – isto durante a segunda metade do século XX – e é igualmente intrigante o retrato que a autora faz dos escritores como figuras tantas vezes mesquinhas, muitas vezes apáticas para com as famílias, como em dois retratos de colegas escritores de Joe em que quase sentimos reconhecer alguns escritores como Roth ou Le Carré.
A leitura é extremamente aprazível devido ao humor e à ironia da autora, capaz de arrancar um sorriso mordaz enquanto vamos virando as páginas num ápice, completamente envolvidos na história. Joan Castleman está a trinta e cinco mil pés de altitude a acompanhar o marido que se prepara para receber o Prémio de Helsínquia – uma clara alusão ao Nobel – quando decide finalmente divorciar-se do marido. Num jogo de alternância entre esse momento decisivo em que Joe se prepara para receber o prémio que é o culminar da sua carreira de escritor e o passado do que foi a sua vida em comum, desde o momento em que Joan o conheceu nas aulas de escrita criativa, em 1956, a autora tece um retrato de um casal que vive com um segredo – as pistas estão lá desde o início, pelo menos eu sempre senti que havia algo sob a superfície –, em que uma mulher, como tantas outras na História da Humanidade ou, melhor dizendo, da Mulher, se anula em prol do marido, de forma a lhe garantir o conforto e até mesmo o sustento para que ele se possa lançar na sua almejada carreira de escritor:
«Ela nada sabia acerca desta subcultura de mulheres que ficavam, de mulheres que não eram capazes de apresentar uma explicação lógica para as suas lealdades, que se aguentavam porque isso era o mais confortável, a coisa de que realmente gostavam. Ela não compreendia o luxo do familiar, do conhecido (…). O marido. Uma figura rumo à qual nunca avançávamos, nunca nos entusiasmávamos, mas ao lado da qual simplesmente vivíamos, estação após estação, que começava a acumular-se como tijolos grossos, unidos por uma argamassa desleixada. O muro do casamento erguia-se entre nós, uma cama conjugal, na qual nos deitávamos com gratidão.» (pág. 106).
É particularmente interessante a análise que a autora faz da impossibilidade de uma mulher escritora vingar por si mesma no mundo literário, sem ser abafada num mundo dominado por homens – isto durante a segunda metade do século XX – e é igualmente intrigante o retrato que a autora faz dos escritores como figuras tantas vezes mesquinhas, muitas vezes apáticas para com as famílias, como em dois retratos de colegas escritores de Joe em que quase sentimos reconhecer alguns escritores como Roth ou Le Carré.
A Casa das Tias, publicado pela Teorema, é o romance de estreia de Cristina Almeida Serôdio. A autora nasceu em 1958 no Porto e é mestre em Literatura Portuguesa Moderna pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde foi professora convidada entre 1991 e 2006. Professora de Português e de Literatura Portuguesa no ensino secundário, investigadora do Centro de Estudos do Teatro, publicou trabalhos sobre literatura, teatro e sobre a educação literária dos jovens. É ainda co-autora do Programa de Literatura Portuguesa do 10.º e do 11.º anos.
A Casa das Tias é uma promissora estreia literária, pela elegância e poesia da escrita em que a autora apresenta uma história de família de modo fragmentado e recortado, como um enigma ou um álbum de família composto por fotos em tons sépia, como na capa, ou mais geralmente em fotos de cores vivas que retratam o percurso das duas tias e dos irmãos, bem como dos que se sucederam na família: «A casa dali era a casa das tias, assim o dizíamos nós e a nossa mãe, no tempo em que o mundo parava nos eternos dias de Setembro da nossa infância feliz, cheia de mimos.» (p. 181)
O livro é narrado numa sucessão de episódios, muitas vezes breves, constituíndo capítulos curtos, intitulados de forma sugestiva e em jeito cúmplice com o leitor, como no primeiro capítulo: «Eram duas as tias».
A herança
A história começa naturalmente pelo fim, isto é, num tempo presente mais próximo ao leitor em que M., a herdeira, recebe a casa na aldeia em Constantim onde as tias Teresinha e Francisca sempre viveram: «Ficaram ali para sempre. Os irmãos saíram cedo de casa. Os mais velhos para trabalhar em Lisboa, os mais novos para estudar no liceu e se formarem depois.» (p. 6). Apesar de as tias serem solteiras e sem filhos conseguem manter este legado da família que teria cabido a todos os irmãos por igual, e aos seus descendentes, se não fosse um estranho revés do destino: «A casa com cem anos que ficou para M. de modo inesperado era a casa das tias, a dos pais do seu avô materno, onde elas viveram a vida toda. Era a casa de um lavrador rico com nove filhos, melhor, oito, com a morte de uma menina muito nova que não conheceu, nem de fotografia.» (p. 5). Ao herdar a casa, M. herda ainda os sussurros da memória, os objectos perdidos, meio trastes, meio relíquias, e as fotografias, e, como se pode deduzir da passagem anterior, mesmo quando não há registo ou instantâneos que o comprovem, M. reúne ainda as histórias de família que foram passadas de boca em boca. Existem ainda agendas, cartas (pelo menos até à década de 50, até serem substituídas pelo telefone), cadernetas do liceu… Mas as histórias são muitas vezes apenas rumores e deduções e não encerram todo o passado ou toda a verdade: «Nunca se casaram. Talvez por não haver na aldeia noivos da mesma condição dos irmãos. Conta-se que a mais velha teria gostado de um rapaz dali, que a ela se chegara, mas tinha interrompido a voz do coração e feito com a irmã um acordo para a vida. Prometeram as duas ficar sós e amparadas uma à outra, a gastar os dias naquele lugar parado e seco, com pouco mundo para além da gestão do azeite e das uvas, dos bordados e das missas.» (p. 6). Desta passagem, destaque-se o advérbio Talvez ou a forma verbal Conta-se que são palavras recorrentes na narrativa e que ilustram como se tenta narrar uma história a partir de suposições e, ao jeito de qualquer narrativa que se preze, do divagar e do fazer de conta. Oscilamos entre o facto e o rumor, o imaginado e o vivido, o afirmativo e o negativo ou a certeza e a dúvida, mas no fim é como nos diz a voz narratorial: «De que mais precisa um escritor senão de assunto?» (p. 196).
Recuperar o fio da história
Em quase todos os capítulos, em jeito de conclusão, existe um depoimento de M. que nos é transcrito ou transmitido pela narradora – nem mesmo no fim saberemos se é de facto uma narradora, apesar de se referir que foram colegas do colégio, mas preferimos acreditar que sim…
A narradora está sempre presente no livro, como uma cúmplice de M., e é a ela que cabe, mais do que ouvir e reunir os fragmentos das memórias da amiga, reinventar e reencaixar as peças de um passado fragmentado e incompleto: «Fala-me dos tios em pequenas histórias, algumas já conhecidas, porque as contava nos dias do colégio para nos entreter. São momentos de maledicência benigna, caricaturas de figuras da casa com qualquer coisa embaraçosa e ridícula, fixada por repetidos recontos.» (p. 196). Ainda que lhe tenha delegado expressamente essa tarefa de cronista, M. por vezes exaspera-se com a amiga e narradora e prefere rasurar as releituras que esta faz, não sabemos se num assomo de pudor da verdade ou de manter o bom nome da família: «M. não quer que continue, não percebe o interesse desta história, diz que é melhor ficar o que está como está.» (p. 75); «M. acha cruel o que escrevo. Que não devo escrever tudo o que conta.» (p. 30); «M. acha que são de folhetim estes bocados, que me desvio da verdade, invento muito.» (p. 95). A narradora chega aliás mesmo a narrar em alguns momentos como episódio verídico aquilo que não passa de congeminações como no final declara.
Incestos e convenções
A Casa das Tias é também uma viagem através do século XX, a um tempo de convenções e etiqueta romântica, com pontuais referências históricas ou a figuras como a de Salazar, muito parecido com um dos irmãos. Contudo é curiosamente o tempo presente que impera na narrativa, como se apesar do desalinho da casa que é preciso reorganizar, o passado fosse visto como um instantâneo fotográfico que se projecta como um filme na tela a decorrer aqui e agora: «Afonso é o mais bonito dos filhos rapazes, com grandes olhos cor de mel, expectantes. Tem um nariz forte, o cabelo liso e vigoroso, a boca larga desenhada no rosto claro.» (p. 32).
Ainda que vivessem na aldeia a verdade é que nem por isso as vidas das tias eram completamente secas ou paradas, uma vez que iam por vezes passar longas temporadas a Lisboa, ficando hospedadas na casa do irmão Afonso que lhes dava todos os mimos que se podem prestar a uma amada. Reina, novamente no campo da dúvida e da suposição, a ideia de que há algo de levemente incestuoso no sentimento das duas irmãs pelos seus manos solteiros que por vezes também vêm à aldeia «passar muitos dias, em busca de mimos.» (p. 125). As suas vidas não são aliás realmente vazias, como ficamos a saber por exemplo na passagem em que Teresinha terá salvo um rapaz do Outeiro de uma perna com gangrena, «livrando-o de uma amputação certa, já marcada» (p. 126).
Teresinha, porque reconhece que «terá chegado o momento em que as duas ficarão solteiras para sempre, declaradamente tias, espera que elas possam conquistar o direito aos diplomas de Professoras de Corte e de Contramestras de Costura, que lhes servirão, tanto de ornamento como de instrumento de trabalho, caso precisem.» (p. 127). Não sabe ela que os irmãos se conluiam entretanto para salvaguardar os seus direitos apesar de as irmãs serem membros marginais na família, na medida em que não darão frutos, em detrimento inclusive do irmão Afonso, que recebe um duro golpe capaz de dividir a família quando sabe da alteração ao testamento. O que é facto indiscutível é que a certa altura as tias passam por uma transformação quando se tornam inegavelmente avarentas. Talvez por saberem que no seu mundo não há espaço a mulheres independentes, até porque estas estão aquém?
«A crosta do pão recente estala-lhe nos dedos e nem fala, admirada com o que o irmão Afonso conta ao pai sobre as suas funções, a justiça, o país, o mundo vibrante que escuta, ávido, na telefonia e lê nos jornais. Os homens discutem as notícias, sabem o nome de países, capitais, tratados, e tudo parece natural e fluido como as conversas de todos os dias.» (p. 149).
Apesar de apaixonada por Joaquim, Francisca recusa a possibilidade de um amor com um rapaz de aldeia, porque este poderia nunca estar à altura dos seus, da casa, de si…
«De novo, no escuro, a dúvida antiga, corrosiva. E se quisesse dela só o que ela tinha, ou teria um dia? Se o desejo fosse só desejo de uma vida rica?» (p. 151).
Respira-se no texto, pela densidade da memória circular ou fragmentada e nem sempre linear, pela respiração da casa como entidade viva, uma narrativa tecida com esmero com passagens belíssimas remanescente de feminismos, como quando se fala na toilette pensada e anotada como entrada de diário, na costura, no anseio por uns braços que nos cinjam na noite.
A Casa das Tias é uma promissora estreia literária, pela elegância e poesia da escrita em que a autora apresenta uma história de família de modo fragmentado e recortado, como um enigma ou um álbum de família composto por fotos em tons sépia, como na capa, ou mais geralmente em fotos de cores vivas que retratam o percurso das duas tias e dos irmãos, bem como dos que se sucederam na família: «A casa dali era a casa das tias, assim o dizíamos nós e a nossa mãe, no tempo em que o mundo parava nos eternos dias de Setembro da nossa infância feliz, cheia de mimos.» (p. 181)
O livro é narrado numa sucessão de episódios, muitas vezes breves, constituíndo capítulos curtos, intitulados de forma sugestiva e em jeito cúmplice com o leitor, como no primeiro capítulo: «Eram duas as tias».
A herança
A história começa naturalmente pelo fim, isto é, num tempo presente mais próximo ao leitor em que M., a herdeira, recebe a casa na aldeia em Constantim onde as tias Teresinha e Francisca sempre viveram: «Ficaram ali para sempre. Os irmãos saíram cedo de casa. Os mais velhos para trabalhar em Lisboa, os mais novos para estudar no liceu e se formarem depois.» (p. 6). Apesar de as tias serem solteiras e sem filhos conseguem manter este legado da família que teria cabido a todos os irmãos por igual, e aos seus descendentes, se não fosse um estranho revés do destino: «A casa com cem anos que ficou para M. de modo inesperado era a casa das tias, a dos pais do seu avô materno, onde elas viveram a vida toda. Era a casa de um lavrador rico com nove filhos, melhor, oito, com a morte de uma menina muito nova que não conheceu, nem de fotografia.» (p. 5). Ao herdar a casa, M. herda ainda os sussurros da memória, os objectos perdidos, meio trastes, meio relíquias, e as fotografias, e, como se pode deduzir da passagem anterior, mesmo quando não há registo ou instantâneos que o comprovem, M. reúne ainda as histórias de família que foram passadas de boca em boca. Existem ainda agendas, cartas (pelo menos até à década de 50, até serem substituídas pelo telefone), cadernetas do liceu… Mas as histórias são muitas vezes apenas rumores e deduções e não encerram todo o passado ou toda a verdade: «Nunca se casaram. Talvez por não haver na aldeia noivos da mesma condição dos irmãos. Conta-se que a mais velha teria gostado de um rapaz dali, que a ela se chegara, mas tinha interrompido a voz do coração e feito com a irmã um acordo para a vida. Prometeram as duas ficar sós e amparadas uma à outra, a gastar os dias naquele lugar parado e seco, com pouco mundo para além da gestão do azeite e das uvas, dos bordados e das missas.» (p. 6). Desta passagem, destaque-se o advérbio Talvez ou a forma verbal Conta-se que são palavras recorrentes na narrativa e que ilustram como se tenta narrar uma história a partir de suposições e, ao jeito de qualquer narrativa que se preze, do divagar e do fazer de conta. Oscilamos entre o facto e o rumor, o imaginado e o vivido, o afirmativo e o negativo ou a certeza e a dúvida, mas no fim é como nos diz a voz narratorial: «De que mais precisa um escritor senão de assunto?» (p. 196).
Recuperar o fio da história
Em quase todos os capítulos, em jeito de conclusão, existe um depoimento de M. que nos é transcrito ou transmitido pela narradora – nem mesmo no fim saberemos se é de facto uma narradora, apesar de se referir que foram colegas do colégio, mas preferimos acreditar que sim…
A narradora está sempre presente no livro, como uma cúmplice de M., e é a ela que cabe, mais do que ouvir e reunir os fragmentos das memórias da amiga, reinventar e reencaixar as peças de um passado fragmentado e incompleto: «Fala-me dos tios em pequenas histórias, algumas já conhecidas, porque as contava nos dias do colégio para nos entreter. São momentos de maledicência benigna, caricaturas de figuras da casa com qualquer coisa embaraçosa e ridícula, fixada por repetidos recontos.» (p. 196). Ainda que lhe tenha delegado expressamente essa tarefa de cronista, M. por vezes exaspera-se com a amiga e narradora e prefere rasurar as releituras que esta faz, não sabemos se num assomo de pudor da verdade ou de manter o bom nome da família: «M. não quer que continue, não percebe o interesse desta história, diz que é melhor ficar o que está como está.» (p. 75); «M. acha cruel o que escrevo. Que não devo escrever tudo o que conta.» (p. 30); «M. acha que são de folhetim estes bocados, que me desvio da verdade, invento muito.» (p. 95). A narradora chega aliás mesmo a narrar em alguns momentos como episódio verídico aquilo que não passa de congeminações como no final declara.
Incestos e convenções
A Casa das Tias é também uma viagem através do século XX, a um tempo de convenções e etiqueta romântica, com pontuais referências históricas ou a figuras como a de Salazar, muito parecido com um dos irmãos. Contudo é curiosamente o tempo presente que impera na narrativa, como se apesar do desalinho da casa que é preciso reorganizar, o passado fosse visto como um instantâneo fotográfico que se projecta como um filme na tela a decorrer aqui e agora: «Afonso é o mais bonito dos filhos rapazes, com grandes olhos cor de mel, expectantes. Tem um nariz forte, o cabelo liso e vigoroso, a boca larga desenhada no rosto claro.» (p. 32).
Ainda que vivessem na aldeia a verdade é que nem por isso as vidas das tias eram completamente secas ou paradas, uma vez que iam por vezes passar longas temporadas a Lisboa, ficando hospedadas na casa do irmão Afonso que lhes dava todos os mimos que se podem prestar a uma amada. Reina, novamente no campo da dúvida e da suposição, a ideia de que há algo de levemente incestuoso no sentimento das duas irmãs pelos seus manos solteiros que por vezes também vêm à aldeia «passar muitos dias, em busca de mimos.» (p. 125). As suas vidas não são aliás realmente vazias, como ficamos a saber por exemplo na passagem em que Teresinha terá salvo um rapaz do Outeiro de uma perna com gangrena, «livrando-o de uma amputação certa, já marcada» (p. 126).
Teresinha, porque reconhece que «terá chegado o momento em que as duas ficarão solteiras para sempre, declaradamente tias, espera que elas possam conquistar o direito aos diplomas de Professoras de Corte e de Contramestras de Costura, que lhes servirão, tanto de ornamento como de instrumento de trabalho, caso precisem.» (p. 127). Não sabe ela que os irmãos se conluiam entretanto para salvaguardar os seus direitos apesar de as irmãs serem membros marginais na família, na medida em que não darão frutos, em detrimento inclusive do irmão Afonso, que recebe um duro golpe capaz de dividir a família quando sabe da alteração ao testamento. O que é facto indiscutível é que a certa altura as tias passam por uma transformação quando se tornam inegavelmente avarentas. Talvez por saberem que no seu mundo não há espaço a mulheres independentes, até porque estas estão aquém?
«A crosta do pão recente estala-lhe nos dedos e nem fala, admirada com o que o irmão Afonso conta ao pai sobre as suas funções, a justiça, o país, o mundo vibrante que escuta, ávido, na telefonia e lê nos jornais. Os homens discutem as notícias, sabem o nome de países, capitais, tratados, e tudo parece natural e fluido como as conversas de todos os dias.» (p. 149).
Apesar de apaixonada por Joaquim, Francisca recusa a possibilidade de um amor com um rapaz de aldeia, porque este poderia nunca estar à altura dos seus, da casa, de si…
«De novo, no escuro, a dúvida antiga, corrosiva. E se quisesse dela só o que ela tinha, ou teria um dia? Se o desejo fosse só desejo de uma vida rica?» (p. 151).
Respira-se no texto, pela densidade da memória circular ou fragmentada e nem sempre linear, pela respiração da casa como entidade viva, uma narrativa tecida com esmero com passagens belíssimas remanescente de feminismos, como quando se fala na toilette pensada e anotada como entrada de diário, na costura, no anseio por uns braços que nos cinjam na noite.
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