Não podia terminar o ano sem um livro que fui adiando de propósito para esta altura. Primeiro porque seria um reencontro, pois li há anos o Sobre a Leitura, de Marcel Proust, numa edição da Teorema intitulada O Prazer da Leitura, e um prazer redescoberto, pois agora surge novinho publicado pela Relógio d’Água com uma nova tradução (e também pela Antígona, numa edição lançada em simultâneo). E o sentimento mantém-se. Tal como o autor nos diz logo na abertura deste ensaio: «Talvez não haja dias da nossa infância que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que cremos ter deixado sem os viver, aqueles que passámos com um livro preferido.» (p. 7)
Seja na infância, seja na adolescência, ou no caso de alguns leitores inveterados, no resto dos seus dias, consigo recordar certos períodos da minha vida mediante uma memória associativa do livro que estava a ler então, assim como do sítio em que o lia, não sentado na poltrona com um manto de rosas brancas de croché como Proust mas usualmente sobre a cama (e ainda hoje a minha zona lombar se ressente das longas horas de leitura deitado de barriga para baixo). A vantagem do leitor perante um Proust infante é óbvia, pois não se corre o risco de ter de interromper a leitura ao ser chamado para o «demorado» almoço (p. 10) ou ter de esperar pela autorização dos pais ou de acender uma vela durante a noite para incorrer numa insónia. Mas independentemente do livro em que estejamos imersos, e de quão profundo o mergulho, é também a «imagem dos lugares e dos dias» (p. 19) em que fizemos tais leituras que perdura, como o autor comprova ao dissertar durante 20 páginas sobre tudo o que o rodeia, e o emoldura, e não propriamente a leitura ou o livro aberto. A sensação que temos ao ler este ensaio, de início, é aliás como estar novamente imerso na leitura de Do Lado de Swann, primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido (nessa belíssima tradução musicada de Pedro Tamen, também publicada pela Relógio d’Água), quando o narrador nos reconduz pela memória da sua infância. E também não falta a estas páginas uma certa sinestesia proustiana, quando ao som dos sinos associa o odor dos bolos açúcarados. Conforme afirma o autor, ao querer falar delas, as leituras, «falei de coisa completamente diferente dos livros porque não foi deles que elas me falaram. Mas talvez as recordações que me trouxeram uma atrás da outra tenham elas mesmas despertado no leitor e o tenham pouco a pouco levado , enquanto se demorava nesses caminhos floridos e cheios de rodeios, a recriar no seu espírito o ato psicológico original chamado Leitura» (p. 21). A partir daqui, naquela que é a segunda metade do ensaio, quebra-se um pouco a magia do poder evocativo da leitura em paralelo com a revivificação da memória conforme o autor decide alinhavar as suas «poucas reflexões» que lhe restam. Entre Ruskin e Racine, passando por outros autores e também pintores – porque estes nos ensinam «à maneira dos poetas» (p. 26) –, Proust destila os seus pensamentos sobre «o papel ao mesmo tempo essencial e limitado que a leitura pode desempenhar na nossa vida espiritual» (p. 26), ao mesmo tempo que alerta certos leitores mais vorazes (não vou dizer nomes…) para os perigos da leitura, quando esta ao invés de despertar o espírito, a inteligência, tende a substituir a vida. Ver artigo
A Cultura Moderna, uma obra polémica de Roger Scruton, publicada pelas Edições 70, representa uma defesa da alta cultura contra os ataques do desconstrutivismo e outras correntes dos Estudos Culturais (desautorizando figuras como Derrida). Mas é, sobretudo, um livro em que o autor «pretende explicar o que a cultura é, e por que motivo ela é importante» (p. 11), demonstrando, especialmente, que «a cultura tem uma raiz religiosa e um sentido religioso» (p. 13).
O autor, um dos mais controversos pensadores da nossa época, começa por discernir entre a alta cultura e a cultura comum, e procura desvelar como a alta cultura se tornou no substituto da fé no mundo descrente produzido pelo Iluminismo: «Desde o Iluminismo, os filósofos têm-se debruçado sobre o valor da alta cultura (nem sempre utilizando esse termo para a designar): o que é que aprendemos, em rigor, quando estudamos arte, literatura, história e música?» (p. 33)
Scruton distingue três tipos de saber: saber que, saber como e saber o que, argumentando que a cultura comum nos diz como sentir e o que sentir, enquanto que a alta cultura, tal como a religião antes, «trata a questão que a ciência deixa sem resposta: a questão de o que sentir» (p. 35).
Scruton está ciente da controvérsia que os seus argumentos irão gerar, de que o acharão absurdo e que a sua visão é muito pouco pós-moderna. O autor considera até as críticas tecidas à primeira edição do livro, por fazer pouca menção à fotografia, cinema e televisão (áreas fortes da cultura popular moderna), e responde com humor que fez a devida pesquisa, descobrindo o que dizer sobre televisão, sendo agora capaz de «discorrer com erudição sobre comida de plástico, bonés de basebol e Cadillacs platinados» (p. 11). E sempre com humor, e não poupando críticas à cultura moderna, em particular à música pop, Scruton ajuda-nos a enxergar como a «nossa existência é transfigurada pela arte» (p. 62) e como a (alta) cultura nos ensina a ética de viver «como se as nossas vidas importassem para a eternidade»: «Devemos ser inteiramente humanos e, ao mesmo tempo, respirar o ar dos anjos; naturais e, simultaneamente, sobrenaturais.» (p. 31)
Passo a passo, o autor tenta não deixar nenhuma ponta solta, e cada uma das suas ideias se encadeará perfeitamente num raciocínio lúcido e transparente, não deixando de focar questões bem prementes no ensino hoje, em particular na área dos estudos literários (até porque é especialmente sobre a literatura que o autor se debruça). O exemplo paradigmático de como alta cultura e religião se entrelaçam reside sobretudo na literatura, havendo lugar a uma apologia do cânone: «Se é esperado que os estudantes leiam e analisem textos literários, certamente deverá existir algum acordo que defina quais os textos que devem ser estudados. Se qualquer texto servir, nenhum texto servirá. (…) Porém, quando os jovens crescem sem um texto sagrado, têm dificuldade em compreender que o segredo da vida se possa encontrar numa coisa inanimada, como um livro; sobretudo, se for um livro escrito há milhares de anos e numa língua que já não se fala.» (p. 38)
Roger Scruton é filósofo e escritor. Foi Professor de Estética no Birkbeck College, Londres, e Professor Visitante no Boston College, nos EUA. Ver artigo
Depois de ler com tanto prazer e fascínio Tyll, publicado pela Bertrand Editora, e já aqui apresentado, além de ter descoberto que em 2020 estreou mais um filme baseado numa obra sua, Devias ter-te ido embora, igualmente publicada pela Bertrand, que conta com interpretação de Kevin Bacon, tive de procurar o seu anterior A Medida do Mundo. Bestseller internacional traduzido para mais de quarenta línguas, adaptado ao cinema (alemão), foi traduzido e publicado pela Editorial Presença em 2007. Existe ainda outra obra publicada pelo autor pela Editorial Presença que espero conseguir ler em breve: Fama – Romance em nove histórias.
A Medida do Mundo é um delirante romance (ao jeito de Kehlmann) que pode ser lido, de rajada, como uma fábula do Século das Luzes. Alternando entre os percursos de dois gigantes do Iluminismo alemão, Alexander von Humboldt e Carl Friedrich Gauss, a narração começa quando os dois eminentes sábios se encontram em Berlim, no ano de 1828. Na verdade, a narrativa centra-se mais em Humboldt, aristocrata e asceta, um dos fundadores da moderna geografia graças às suas incansáveis explorações pelo mundo:
«No caminho para Espanha, Humboldt mediu todas as colinas. Subiu a todas as montanhas. (…) Pessoas da terra, que o observaram a fixar o sol através da ocular do sextante, pensaram que ele era um pagão que adorava os astros e apedrejaram-no, de tal modo que foram obrigados a saltar para os cavalos e partir a galope.
(…) Uma colina cuja altitude não era conhecida deixava-o perturbado e inquieto. Uma pessoa não podia seguir sem determinar sempre a própria posição. Não se devia deixar ficar pelo caminho um enigma, por mais pequeno que fosse.» (p. 32-33)
Para Humboldt, cujas indagações o levam até aos confins da América do Sul e pela Rússia quase até à China, tudo no mundo tem de ser compulsivamente medido. A certa altura, o seu colaborador pergunta-lhe mesmo se ele tinha de «ser sempre tão alemão?» (p. 59)
Gauss, o Príncipe das Matemáticas, um génio desde criança, prefere ficar sentado a fazer cálculos. Apesar das diferenças que os separam, têm em comum o anseio de compreender o mundo através de fórmulas verificáveis pela Razão: «Sonda-se o universo com telescópios, conhece-se a formação da Terra, o seu peso e a sua órbita, a velocidade da luz já foi calculada, já se conhecem as correntes do oceano e as condições da vida (…) Já se divisa o fim do caminho, a medição do mundo está quase concluída.» (p. 173)
Uma deliciosa narrativa que com ironia e humor reflecte sobre a fugacidade da vida e o pouco que a ciência pode fazer para a dominar: «A árvore era gigantesca e contava vários séculos de idade. Já ali se encontrava antes dos espanhóis e dos povos antigos. Era anterior a Cristo e a Buda, a Platão e a Tamerlão. Humboldt aproximou o relógio do ouvido e escutou. Da mesma forma que este, com o seu tiquetaque, continha o tempo dentro de si, aquela árvore repelia o tempo: um recife contra o qual se quebrava este fluxo.» (p. 37) Humboldt, aliás, refere mesmo, a certa altura, que escrever um romance «parecia-lhe um caminho magnífico para agarrar a fugacidade do presente.» (p. 23)
Este romance pouco típico e nada convencional liderou durante um ano as tabelas de vendas na Alemanha, destronando Harry Potter e O Código Da Vinci. Traduzido em 34 países, Daniel Kehlmann – um autor jovem, nascido em 1975 – é considerado um renovador da literatura de ficção em língua alemã. Estudou Filosofia e Estudos Alemães, e hoje vive entre Nova Iorque, Berlim e Viena. Ver artigo
Em vésperas de Natal, perguntei à Clarinha qual era o livro que queria ler (um sonho meu de longa data). Ela escolheu Como o Grinch roubou o Natal, de Dr. Seuss, publicado pela booksmile. Um belíssimo livro de capa dura, onde, rima após rima, como um poema cantado, se desfia a história de como Grinch, com «um coração bem mais pequeno do que o normal», odiava o Natal. Com ilustrações a preto e branco, apenas o vermelho natalício – a condizer com o fato de Pai Natal do Grinch – se vai destacando, ao longo das 64 páginas deste livro, enquanto a Clarinha tapava a boca com horror conforme ouvia a história de como o malvado Grinch, e o seu pobre cão Max, decidiu roubar embrulhos, prendas, fitas, o peru e até a árvore de Natal. Apenas, para descobrir, que talvez o Natal «seja mais do que uma prenda». Ver artigo
Depois da tetralogia encerrada em O Labirinto dos Espíritos, Carlos Ruiz Zafón tinha ainda a intenção de reunir num único volume contos dispersos por diversos formatos, como publicações periódicas ou separatas que acompanhavam as edições especiais dos seus romances. Com a doença do autor, a edição foi adiada, pelo que a sua publicação (pela Planeta Editora) após a morte do autor este ano, deve ser entendida como justa homenagem (e numa bela edição de capa dura com sobrecapa). O autor morreu aos 55 anos de cancro, na Califórnia.
Não só regressamos nestes contos à ambiência misteriosa própria das narrativas de Zafón (o vapor, a condizer com o nevoeiro, são presenças recorrentes), como reingressamos por várias portas de entradas no labirinto do Cemitério dos Livros Esquecidos, enquanto o autor distende um pouco mais o seu universo ficcional. Seja com a história (nunca acontecida?) de como o David Martín (O Jogo do Anjo) contou as suas primeiras histórias a uma menina chamada Blanca («Blanca e o Adeus»), com a lenda do que será provavelmente o plano arquitectónico desse grandioso labirinto que conhecemos primeiro em A Sombra do Vento, seja pelos vários Sempere, impressores antepassados de Daniel, que nos piores tempos da Inquisição salvaram livros da fogueira escondendo-os em caixões que enterraram (p. 128).
E o cenário sempre vivo que pulsa sob todas estas histórias, talvez verdadeiramente a principal personagem, é a cidade de Barcelona, no cuidado das descrições ora realistas ora fantasiadas. O livro é, aliás, enriquecido com uma série de fotografias, e não faltam cenários emblemáticos e personagens como Gaudí.
Fazendo nossas as palavras do autor, «se quisermos dar crédito à lenda e aceitar como boa a moeda da fantasia e da ilusão» (p. 129) no universo zafoniano tudo conflui, pelo que tão depressa lemos sobre homens cuja ambição os transforma em dragões devoradores de cidades («Rosa de Fogo»), como se reconstituem episódios menos conhecidos da vida de Miguel de Cervantes («O Príncipe do Parnaso»), quando quase vende a alma a Andreas Corelli (o mesmo de O Jogo do Anjo) para conseguir imortalizar o seu nome com a terceira e última parte (nunca escrita) de Dom Quixote.
O conto que encerra o presente volume é acertadamente simbólico, a marcar a despedida que este último livro do autor representa. Ver artigo
Publicado muito recentemente, há alguns dias, pela Relógio d’Água, Os Perseguidores, de Ana Teresa Pereira, reúne três breves narrativas aparentemente díspares. A uni-las, entre outros temas que trataremos adiante, temos a imagem do pássaro, animal quase sempre imbuído de algo sinistro.
A primeira história, «A Firefly Hour», conheceu duas versões anteriores publicadas em As Velas da Noite e A Cidade Fantasma.
A protagonista é uma jovem de 22 anos, que escreve histórias policiais, contos para revistas pulp, e em tempos publicou um romance que não vendeu muito mas adorado pela crítica.
«Para mim, era só mais um homem a destacarse do fundo prateado. Aceitei o bilhete azul e rasgueio em dois. Não olhei para o rosto dele; nunca olho para os rostos deles. Fato cinzento, camisa cinzenta. Camisa limpa.» (p. 11)
Assim inicia a história que, em espelho, reflecte as narrativas da autora, e simultaneamente executa uma mise en scène da sua prosa:
«Sentei-me na cama. Ele ajoelhou-se à minha frente.
És tão bonita. Como a rapariga das minhas histórias.
É sempre a mesma?
Tem sempre o mesmo nome.» (p. 19)
«A Lagoa», a segunda narrativa, conta a história de um triângulo amoroso, Tom, April e a narradora. April e ela eram «as meninas da velha casa» (p. 61), quase iguais. A primeira diferença que as pessoas notavam era o cabelo, mas a verdadeira diferença estava «nos olhos: os meus de um azul límpido, os de April mais escuros, quase cinzentos. E nas mãos: as minhas são bonitas e macias, as de April magras e arranhadas, como garras.» (p. 52)
Depois de desaparecida durante 7 anos, na véspera do seu casamento, quando tinha 19 anos, April regressa de súbito e ameaça usurpar o lugar da jovem que se parece com ela. Ver artigo
Publicado em Janeiro de 2020, pela Relógio d’Água (à semelhança da restante obra da autora), O Atelier de Noite reúne dois contos (ou breves novelas), a acrescentar ao universo muito próprio que tem vindo a construir ao longo das suas intrigantes narrativas.
«Talvez seja o que distingue as boas histórias: começam uma e outra vez, mesmo depois de já termos ido embora.» (p. 14)
O Atelier de Noite e Sete Rosas Vermelhas são as duas histórias que compõem o presente volume e que se interligam subtilmente. A de O Atelier de Noite é narrada por uma protagonista feminina um pouco diferente das vozes usuais, pois gradualmente perceberemos que nos é desvendado o que terá acontecido a Agatha durante os 11 dias em que terá permanecido desaparecida (situação factual). Espalha-se até o rumor de que teria sido assassinada, ou de que teria montado o cenário para que pensassem isso, e quando Agatha reaparece a melhor história a adoptar é a de que terá tido amnésia.
«Eu sonhava ser actriz, pianista profissional. Não escritora (…). E então surgiu a ideia de escrever um romance policial. E aquele horrível homenzinho entrou na minha vida.» (p. 25)
É mais ou menos neste passo da narrativa que o leitor confirma que Agatha é (pode ser?), afinal, a escritora de policiais Agatha Christie, até porque a narrativa por vezes oscila entre a primeira e a terceira pessoa. E da mesma forma que em tempos se tornou (dir-se-ia que involuntariamente) autora de Poirot, Agatha deseja agora recriar-se numa nova personagem: Teresa – ironicamente (ou não) o segundo nome da autora.
Sete Rosas Vermelhas, a segunda história, mais breve, traz ainda ecos da primeira narrativa. Uma jovem, que se casara com um professor mais velho, acalenta também, desde sempre, «o desejo de ir embora, de desaparecer» (p. 79) – e as duas histórias interligam-se de diversas outras formas, a começar pelas várias referências à autora tornada personagem da primeira história.
«Tinha vinte e poucos anos. Vivia num estúdio num sótão. Ia à faculdade de vez em quando. Embora tivesse desistido de ser dançarina, ainda praticava todos os dias.» (p. 70)
Quando começa a receber uns pacotes que a relembram da sua vida anterior, quando ainda pintava. Um livro, um CD, um quadro seu, fotos a preto-e-branco que revelam «um atelier de um pintor de noite» (p. 79), a jovem rende-se ao desejo e desaparece na noite. A vida convencional, sem cor, desta jovem mulher, uma escritora dispersa, que em tempos respondera pelo nome de Dylan, abre-se para um novo mundo: «sentia-se cada vez mais longe do mundo em que vivia, já nem vivia lá, era omo um outro estado de consciência» (p. 79).
Entre um conto e outro, há frases que parecem emitir um lampejo fugaz sobre a prosa da própria autora: «Era isso que queria fazer. Encontrar ligações. Escrever contos que se pareciam com ovos, fechados em si mesmo, que nem ela mesma compreendia.» (p. 90) Ver artigo
Manhã e Noite, de Jon Fosse, publicado pela Cavalo de Ferro, com tradução de Manuel Alberto Vieira, é um pequeno livro, ao jeito de um poema, em que o autor modela a linguagem poética ao sabor do fluxo da consciência, muitas vezes num ritmo binário, feito de dicotomias, como a própria estrutura do título indica.
A velha parteira Anna prepara-se para dar à luz uma criança, o segundo filho de Olai e Marta, depois de vários anos sem ela ter engravidado. Estavam já conformados com a ideia de que não voltariam a ter filhos e gratos pela bênção do nascimento de Magda, que os poupou a uma vida triste e solitária na ilha de Holmen onde vivem, na casa que o próprio Olai construiu.
Enquanto Anna tenta enxotar Olai, pois da mesma forma que o barco não é lugar para mulheres, a presença de um homem num parto traz má sorte, este diz à parteira que será um menino, desta vez, e chamar-se-á Johannes como o avô e será pescador como o pai…
«e agora ele virá, enquanto Marta a mãe grita de dor, ele virá ao mundo frio e aí ficará só, separado de Marta, separado de todos, aí ficará só sempre só e mais tarde, quando tudo terminar, quando a hora dele chegar , desvanecer-se-á e tornará a ser nada e regressará ao lugar de onde veio, do nada para o nada, é esse o trajecto da vida, das pessoas, dos animais, das aves, dos peixes, das casas, dos barcos, de tudo quanto existe, é, pensa Olai» (p. 14)
Manhã e Noite é um tratado sobre a fugacidade da vida humana, pois conforme Olai está apreensivo com o nascimento do filho, não evita, simultaneamente, a percepção de como o ciclo natural da vida é efémero, pontuado sobretudo por momentos próximos do divino, como o nascimento, na manhã da vida, e a morte, na noite do dia. Tanto que já na segunda parte do livro, logo na página 27, encontramos um Johannes, agora idoso e viúvo, que nos dá conta da sua vida em retrospectiva. E o leitor, mais depressa do que Johannes, conforme se sucedem alguns episódios surreais, aperceber-se-á de que o seu mundo quotidiano tem algo de diferente: «pensa em como de certo modo tudo mudou, como as coisas, a casa, parecem de certo modo diferentes, mais pesadas e mais leves, como se houvesse mais de terra e mais de céu nas casas» (p. 40)
Jon Fosse, autor multipremiado, com destaque para o Prémio Internacional Ibsen, o Prémio Europeu de Literatura e o Prémio de Literatura do Conselho Nórdico, é um dos mais importantes e celebrados autores vivos. Nasceu em 1959, em Strandebarm, no Oeste da Noruega, e vive atualmente numa residência honorária situada nas propriedades do Palácio Real de Oslo. A sua extensa obra, traduzida em mais de quarenta línguas, inclui romance, teatro, poesia, livros para crianças e ensaio. Ver artigo
A Dança da Água, publicado pela Cultura Editora, é o muito aguardado romance de estreia de Ta-Nehisi Coates, autor sobejamente conhecido, todavia, pelo seu Entre mim e o mundo, publicado em 2016 pela Editora Ítaca (com tradução de Isabel Castro Silva) e vencedor do National Book Award.
A Dança da Água é um romance excepcional, publicado no original o ano passado, mas estranhamente parece ter passado despercebido
Hiram Walker (Hi) nasceu escravo, numa plantação de tabaco na Virgínia. Mas o jovem Hi não é igual aos outros escravos negros, a começar pelo facto de ele não ser negro mas sim mestiço, filho de pai branco, que é também o seu dono. Quando a mãe de Hi foi vendida, porque inevitavelmente todos os negros serão vendidos e separados da sua família, Hiram perde qualquer memória dela. Contudo, paradoxalmente, Hi revela uma memória prodigiosa, dom que se revelará uma fonte de entretenimento para os brancos. Será depois educado pelo mesmo perceptor que o seu meio-irmão branco, Maynard, a quem o pai reconhece não ter as mesmas capacidades de Hiram, pelo que cedo compreende que deve prepará-lo para ser o mordomo (ou na verdade um mentor) de Maynard. E, num certo dia, é-lhe revelado um misterioso poder que lhe salva a vida ao quase afogar-se num rio. Esse encontro com a morte desperta-lhe ainda a vontade urgente de fugir e libertar-se da escravidão. Porque esse poder é, afinal, inseparável do desejo de liberdade: a condução das almas. Os seus dotes aliados ao conhecimento das letras que entretanto adquire, entre o perceptor e a biblioteca do pai, revelar-se-ão essenciais ao seu trabalho como condutor daqueles que desejam fugir e viverem como homens livres no Norte, onde a escravidão era já condenada. Entretanto, ao longo da narrativa, a terra de abundância que era o Sul vai perdendo, curiosamente, o fulgor da terra vermelha. Explorada e seca, até se tornar árida, as plantações da Virgínia vão morrendo e os patrões terão de ir vendendo os seus escravos, a única fonte de riqueza que lhes resta.
Um dos livros mais aclamados sobre o racismo e a luta pela liberdade de um autor reputado, que aborda uma temática já tocada por Colson Whitehead em A Estrada Subterrânea – onde se materializava a metáfora do Underground imaginando linhas férreas subterrâneas –, que vai ainda mais longe, numa narrativa prodigiosa e original a que não falta magia – magia essa que não nos compete desvelar antes que leia este belíssimo livro. Ver artigo
Os Tempos do Ódio, de Rosa Montero, publicado pela Porto Editora, é o último volume de uma trilogia (Lágrimas na Chuva e O Peso no Coração). É um romance intenso e certamente corajoso, no mínimo desconcertante para quem conhece Rosa Montero por A Louca da Casa em que a autora cria um futuro possível para o mundo em que vivemos. Trata-se de uma narrativa que ingressa nas potencialidades da ficção científica, e não o faz recorrendo a fantasia ou a indefinição acrónica, mas sim com base em todo um universo cuidadosamente imaginado pela autora, e que de alguma forma já tem sido premonitório de eventos entretanto ocorridos – após publicação dos primeiros 2 volumes da trilogia, conforme a própria autora nos explica na sua nota final: «Digo sempre que os romances de Bruna Husky são os mais realistas que já escrevi. De facto, são de um realismo um pouco inquietante, porque às vezes sinto que a atualidade vai confirmando as minhas invenções.» (p. 310)
Bruna Husky é uma rep tecno-humana de combate, isto é, uma andróide, um ser orgânico, mas hipermanipulado por engenheiros genéticos. Quase humana, são clones que amadurecem aceleradamente e que em 14 meses atingem os 25 anos de idade, mas com um prazo de validade curto, pois vivem apenas por 10 anos ao que depois “morrem” em agonia durante 2 semanas. Bruna Husky é independente, individualista, destemida, e tem uma intuição que raia o sobrenatural – uma espécie de sexto sentido hiperhumano. Contudo tem também um grande coração, ainda que o tente dissimular – e conforme nos embrenhamos na narrativa a nossa heroína híbrida tornar-se-á cada vez mais humana, capaz de experienciar ódio, ciúme e amor. Ou não fosse Bruna Husky proveniente do material genético de uma escritora e jornalista de há cem anos, chamada Rosa Montero…
O livro tanto lança uma ponte para um futuro possível, daqui a cem anos, como recupera factos históricos de um passado mais remoto, cheio de dados reais, das trivialidades à antiga paixão do homem pela criação de autómatos, passando pela Ordem de Rosa-Cruz.
Os Tempos do Ódio pode desencorajar aqueles que não apreciem particularmente ficção científica, mas este livro é também um thriller policial, num mundo em crise, à beira de uma guerra mundial interplanetária, onde tudo depende da tecnologia. É uma leitura intensa e emocionante (devorei-o num único dia), onde não deixam de estar presentes os principais temas da escrita de Rosa Montero: a efemeridade da vida, a passagem do tempo, a paixão como superação da morte, o amor ao próximo como caminho para uma vida plena, a luta contra o poder e a injustiça social.
A autora nasceu em Madrid, em 1951. Como jornalista, colabora em exclusivo com o jornal El País, tendo obtido, em 1980, o Prémio Nacional de Jornalismo e, em 2005, o Prémio da Associação da Imprensa de Madrid, por toda a sua vida profissional. Com A Louca da Casa recebeu o Prémio Grinzane Cavour de Literatura Estrangeira e o Prémio Qué Leer para o melhor livro espanhol, distinção que também foi atribuída, em 2006, a História do Rei Transparente. Recebeu, em 2017, o Prémio Nacional das Letras Espanholas pelo conjunto da sua obra. Ver artigo
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