Os Olhos Grandes da Menina Pequenina, com texto de Ondjaki e ilustrações de Carla Dias, foi recentemente publicado pela Caminho. Este novo livro infantil de Ondjaki representa ainda um encontro entre dois autores da lusofonia, cruzando o texto do autor angolano com as belíssimas ilustrações da moçambicana Carla Dias. Ver artigo
Álbum ilustrado, Literatura Infantil, Literatura Juvenil, Literatura Lusófona, Literatura Portuguesa
Os Olhos Grandes da Menina Pequenina, de Ondjaki
Roteiros Provinciais, do escritor e historiador moçambicano João Paulo Borges Coelho, é um conjunto de quatro novelas, publicado pela Caminho. Ver artigo
O Gato Que Chora Como Pessoa, de Geremias Mendoso, foi publicado pela Caminho e agraciado com o Prémio Branquinho da Fonseca Expresso/Gulbenkian 2019, na sua 10.ª edição, na Modalidade Juvenil. Esta cuidada edição de capa dura conta ainda com belíssimas ilustrações de Samuel (Arão) Djive, artista plástico já com relevo. Ver artigo
O Mapeador de Ausências é o mais recente romance de Mia Couto, publicado no final de 2020 pela Caminho. Ver artigo
Mumtazz, de Alexandra Lucas Coelho (agraciada com o Grande Prémio de Literatura de Viagens da APE por Cinco Voltas na Bahia e um Beijo para Caetano Veloso), foi publicado pela Caminho. A autora-jornalista-repórter-editora-cronista é convidada por Mumtazz a ver «a sua primeira grande exposição, talvez escrever sobre ela». Ficou para «outra vez» que não chegou em vida… Mumtazz morrerá pouco depois, aos 49, com um cancro no colo do útero, e é cremada em Lisboa, «coberta de flores, entre próximos e poemas». A primeira versão do texto deste livro será escrito para um «encontro-performance», a convite do curador da exposição, num tributo a Mumtazz, mulher com nome de lenda e vida de estória que «escolheu ser quem queria». Ambas nasceram em Dezembro com 3 anos de diferença. Conheciam-se há mais de 20 anos.
E da mesma forma que o Taj Mahal é o túmulo da Mumtaz Mahal persa, este livro-tributo eterniza Mumtazz, artista portuguesa «quase secreta», «grande construtora de chapéus» que, ao jeito pós-moderno, começa a sua arte recriando-se a si mesma, como quando muda de nome: «Como as colagens, essa espécie de cinema, montagem, edição: magia a operar, surf num material passado». Este livro, na senda da homenageada Mumtazz, é «arte do movimento, desenho-escrita-mão», como acontece com um itinerário num mapa que, esbatendo fronteiras e continentes, se torna uma linha traçada a vermelho (que figurará na capa): «E no branco que tudo recomeça, onde terras e mares já são só a memória de um vinco no papel, galoparíamos enfim, livres.»
Essa Rota da Seda, hoje cheia de senhores da guerra, de «desertos milenares metidos em sacos» para proteger milhares de militares americanos. Território que a América pretende dominar, apesar de o Afeganistão a anteceder em 5 séculos. Porque este é também um livro sobre doenças globais, como a poluição que ameaça as fundações do Taj Mahal e o mármore que escurece das chuvas ácidas. Sobre as mil e uma noites da «violência de género contínua», onde as raparigas engravidam mal saem da infância.
E da mesma forma que o Taj Mahal é o túmulo da Mumtaz Mahal persa, este livro-tributo eterniza Mumtazz, artista portuguesa «quase secreta», «grande construtora de chapéus» que, ao jeito pós-moderno, começa a sua arte recriando-se a si mesma, como quando muda de nome: «Como as colagens, essa espécie de cinema, montagem, edição: magia a operar, surf num material passado». Este livro, na senda da homenageada Mumtazz, é «arte do movimento, desenho-escrita-mão», como acontece com um itinerário num mapa que, esbatendo fronteiras e continentes, se torna uma linha traçada a vermelho (que figurará na capa): «E no branco que tudo recomeça, onde terras e mares já são só a memória de um vinco no papel, galoparíamos enfim, livres.»
Essa Rota da Seda, hoje cheia de senhores da guerra, de «desertos milenares metidos em sacos» para proteger milhares de militares americanos. Território que a América pretende dominar, apesar de o Afeganistão a anteceder em 5 séculos. Porque este é também um livro sobre doenças globais, como a poluição que ameaça as fundações do Taj Mahal e o mármore que escurece das chuvas ácidas. Sobre as mil e uma noites da «violência de género contínua», onde as raparigas engravidam mal saem da infância.
Ponta Gea é o mais recente livro de João Paulo Borges Coelho e provavelmente o mais corajoso, assumindo não somente uma narrativa feita na primeira pessoa como também uma perspectiva em que os acontecimentos narrados são filtrados a partir do espaço-memória de infância. O autor, muitas vezes enquanto criança, rememora os lugares que persistem, muitas vezes, apenas na memória e na imaginação de uma cidade inventada.
Não posso deixar de assumir eu próprio esta recensão como um levantamento topográfico feito na primeira pessoa, uma vez que quando a Caminho publicou esta obra e gentilmente ma enviou como oferta, estava longe de imaginar que uns meses depois eu próprio estaria a viver ao lado da Ponta Gea, na cidade da Beira, local que ainda recentemente foi notícia, pelas piores razões.
O título do livro tem origem no nome de um bairro da cidade da Beira, «com centro nas coordenadas 19º50’47.14”S e 34º50’25.91’E.
Composto por quinze textos que se interseccionam, e que podem ser lidos numa sequência cronológica, ou isoladamente, como se se tratassem de crónicas, as memórias do autor correm aqui o risco de ressurgir ficcionadas. Escreve o autor no «Preâmbulo»:
«A infância não é um lugar, nem tão-pouco um tempo. O que é ela, afinal?
Se tomássemos a imagem das ilhas, estaríamos neste livro face a um arquipélago de episódios em que o núcleo de cada um me fosse imposto com insistente nitidez, mas em que as margens, mais incertas, exigissem um esforço contrário ao de evocar – o esforço da partida.» (p. 11)
Para o autor, pelo menos assim se refere no livro, Ponta Gea não se trata de um livro de memórias da infância, mas de um exercício de ficção, de como o mundo era visto a partir dessa idade em que, como escreveu Proust, «se acredita que criamos aquilo que nomeamos». Na linha de autores que João Paulo Borges Coelho admira, como Thomas Bernhard ou W. G. Sebald, o deambular parece associado ao rememorar, e o recontar associado a um relembrar que se reinventa, mesmo que o autor nos apresente recortes de jornais e fotografias que procuram cristalizar essa memória fidedigna.
«Se evocar for trazer para a idade adulta, então talvez a infância seja, no seu sentido mais puro, aquilo de misterioso que se nos escapa por entre os dedos quando evocamos, a viagem que nunca chegou a ser feita e por isso resiste incólume à passagem do tempo. A potência daquilo que imaginamos poder ainda vir a ser.» (p. 12)
Não posso deixar de assumir eu próprio esta recensão como um levantamento topográfico feito na primeira pessoa, uma vez que quando a Caminho publicou esta obra e gentilmente ma enviou como oferta, estava longe de imaginar que uns meses depois eu próprio estaria a viver ao lado da Ponta Gea, na cidade da Beira, local que ainda recentemente foi notícia, pelas piores razões.
O título do livro tem origem no nome de um bairro da cidade da Beira, «com centro nas coordenadas 19º50’47.14”S e 34º50’25.91’E.
Composto por quinze textos que se interseccionam, e que podem ser lidos numa sequência cronológica, ou isoladamente, como se se tratassem de crónicas, as memórias do autor correm aqui o risco de ressurgir ficcionadas. Escreve o autor no «Preâmbulo»:
«A infância não é um lugar, nem tão-pouco um tempo. O que é ela, afinal?
Se tomássemos a imagem das ilhas, estaríamos neste livro face a um arquipélago de episódios em que o núcleo de cada um me fosse imposto com insistente nitidez, mas em que as margens, mais incertas, exigissem um esforço contrário ao de evocar – o esforço da partida.» (p. 11)
Para o autor, pelo menos assim se refere no livro, Ponta Gea não se trata de um livro de memórias da infância, mas de um exercício de ficção, de como o mundo era visto a partir dessa idade em que, como escreveu Proust, «se acredita que criamos aquilo que nomeamos». Na linha de autores que João Paulo Borges Coelho admira, como Thomas Bernhard ou W. G. Sebald, o deambular parece associado ao rememorar, e o recontar associado a um relembrar que se reinventa, mesmo que o autor nos apresente recortes de jornais e fotografias que procuram cristalizar essa memória fidedigna.
«Se evocar for trazer para a idade adulta, então talvez a infância seja, no seu sentido mais puro, aquilo de misterioso que se nos escapa por entre os dedos quando evocamos, a viagem que nunca chegou a ser feita e por isso resiste incólume à passagem do tempo. A potência daquilo que imaginamos poder ainda vir a ser.» (p. 12)
A memória como História
Autor já apresentado no Cultura.Sul, João Paulo Borges Coelho nasceu no Porto em 1955, embora por vezes se possa ler que terá nascido em Moçambique. Frequentou o Liceu na Beira e vive em Maputo. Doutorado pela Universidade de Bradford, é historiador, professor catedrático de História na Universidade Eduardo Mondlane e é professor convidado do Mestrado em História de África na Universidade de Lisboa e romancista.
Estreou-se na ficção com As Duas Sombras do Rio (2003) e venceu em 2009 o Prémio Leya com O Olho de Hertzog. Ponta Gea é o seu décimo primeiro romance, editado em Portugal pela Caminho e, em Moçambique, com a chancela da Editora Ndjira, da Leya.
A incógnita está desde logo patente no título. Esse bairro situado na cidade da Beira, na província de Sofala, em Moçambique, é usualmente grafado como Ponta Gêa. Há quem diga que Gea, que o autor opta por escrever sem o acento circunflexo, é o feminino de Geo – Terra. Esta obra resulta assim num documentário, entre as recordações e a reportagem, ou fabricação.
Assim que iniciamos a leitura, a prosa revela-se como tendo verdadeiros arroubos poéticos:
«É a primeira e mais persistente lembrança: a água como substância da cidade. Uma água quieta, no mangal como nos capinzais, nos tandos de arroz e nos baldios urbanos cuja noite o monótono som dos grilos trespassava; insidiosa também, na onda paciente que escavava a areia grossa e se espraiava até lamber a raiz torturada das casuarinas, enchendo os corvos de maus presságios e de indignação; e avassaladora, nas chuvadas súbitas e no ar carregado que toldava o horizonte e nos pesava, derrotados, sobre os ombros. Uma água cálida onde nadam todos, aqueles de cujo rasto ainda a espaços me vou apercebendo, e os outros, os que vogam em círculos como peixes aprisionados no aquário do esquecimento.» (p. 13)
É a água a substância que tudo rodeia na cidade da Beira e no bairro da Ponta Gêa. No mar que se espraia pela cidade, onde ainda restam canhões apontados, ao longo da linha de costa; no porto que traz vida e comércio; a água que entra pelos canais que atravessam a cidade, e por vezes alagam a estrada; a água que corre dos rios e aflui para o mar, dando-lhe uma cor acastanhada; a água da humidade e de um calor opressivo feito de transpiração e sal. Ou a chuva, quando finalmente decide abençoar os beirenses: «desaba a chuva vertical e com ela a euforia mansa que me invade sempre que chove assim, por soar a fim do mundo» (p. 291).
«Tudo nesse tempo era doce e girava ao meu redor.» (p. 292)
Ainda que por vezes haja uma certa alternância ou inconstância em termos do plano temporal em que a voz narrativa, assumida na primeira pessoa, se decide situar – «Tudo nesse tempo era doce e girava ao meu redor.» (p. 292) –, o eu da história evoca os acontecimentos, quase sempre, a partir de um tempo presente, como se o passado se voltasse a desenrolar num agora contínuo, como quando evoca as brincadeiras e explorações próprias da infância:
«Vamos agora calados, ansiosos por chegar ao areal da praia. Parece ser aqui o coração do mangal. Aos poucos vão surgindo árvores de mpia e grandes nhacandalas que nos fazem sentir ainda mais pequenos e vulneráveis. Todavia, é tarde para recuar. Teríamos de vencer inúmeros obstáculos, desde a vergonha de uma cobardia assim até à insatisfação de uma curiosidade infantil, mas agudíssima. (…) No chão, os buracos dos caranguejos são agora bocas enormes capazes de engolir até ao joelho uma perna distraída, mas felizmente nenhum dos monstros surge para nos interpelar. (…) Está na potência que as coisas pequenas encerram, na possibilidade de se tornarem monstruosas, a força e a magia deste lugar.» (p. 68)
E já nessa infância se pressente como o mundo é um espaço maior, também cheio de incerteza e de complexidades nem sempre justas:
«Mete medo um silêncio assim. Entramos muito juntos, torneando abrigos de paus e palha (que o são mais do que casas), baixos, como se tivessem sido feitos para gente pequena ou então para fintar o vento das tempestades. As paredes são quase todas de nhacandala grossa, a estrutura dos tectos feita com as estacas mais finas dessa mesma árvore. Cobrem-nos depois com todo o tipo de coisas a que conseguem deitar mão, desde caniços e palha a chapas e tampas de bidão enferrujadas, e plásticos de cores vivas que dão ao lugar um aspecto alegre de mosaico. (…) Os cheiros são os cheiros da pobreza misturados com o cheiro do sal, do peixe, das algas secas e das feridas frescas das árvores. Passamos por tudo isto rapidamente, na ânsia de chegar à praia. É um espaço que não nos diz respeito e que por isso encaramos com fingido desinteresse. Não queremos atrair as atenções.» (p. 71)
Há ainda um certo jogo no rememorar conforme o autor-narrador brinca nãos er capaz de relembrar tudo, impondo assim limites à memória: «Um tractor sem idade, expelindo um fumo obstinado para o meio do dilúvio, e um som que não conseguia impor-se na natureza e portanto me está hoje vedado recordar.» (p. 292). Mas se a memória por vezes falha ao lembrar, ou porque, segundo o autor, as circunstâncias em que a memória foi feita não permite justamente uma recriação que seria inexacto recordar com sons que não se ouviram nesse instante de outrora, linhas depois já será possível relembrar com exactidão o som de outrora: «e prosseguiu lentamente a descida do monte espalhando um discreto ruído que afinal já recordo, de máquina de costura, um som de agulha alinhavando o rego aberto no tecido crespo da encosta.» (p. 292) Como a própria memória que vai cozendo as linhas do tempo, mesmo quando tem de juntar ficção com realidade.
Esse espaço da infância é, aliás, quase sempre, um espaço de confronto com realidades mais sórdidas ou fantásticas, onde não faltam pequenas histórias de roubos, homicídios, cabarés, corpos que dão à costa, e outros prodígios de feira e circo. Fica no fim a sensação de que este livro narra também o percurso e formação do jovem hoje escritor e de que findo o Liceu na Beira novas descobertas se avizinham.
João Paulo Borges Coelho, nascido no Porto em 1955, mas radicado em Moçambique desde a infância. Escritor e historiador, é professor de História Contemporânea de Moçambique e África Austral na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, onde vive. Tem dedicado o seu estudo sobretudo à investigação das guerras colonial e civil em Moçambique, bem como à política da memória e às questões de segurança regional na região da África Austral.
Normalmente quando se fala em literatura moçambicana ressalta o nome de Mia Couto mas existem outros grandes autores menos conhecidos entre nós, como Ungulani Ba Ka Khosa (já aqui apresentado a propósito de Choriro, publicado pela Sextante) ou o autor que hoje vos trazemos. João Paulo Borges Coelho tem aliás toda a sua obra publicada pela Caminho e foi o vencedor do Prémio Leya em 2009 com O olho de Hertzog, sendo o único autor já com obra publicada a ter ganho o prémio (os restantes vencedores têm sido autores inéditos e estreantes). Já em 2004 o autor foi vencedor do Prémio José Craveirinha da Literatura, a maior distinção literária em Moçambique. Este autor pode não ser muito popular entre nós mas merece muito ser lido com atenção e tem tratado na sua obra literária diversas épocas históricas do país.
Esta obra, cujo tema principal está desde logo designado no título, e subtitulada de «Uma novela rural», apontando para o género a que pertence, sendo a novela algo entre a brevidade do conto e a complexidade do romance, assente em princípios de economia narrativa. A concisão define de facto esta obra, cuja escrita é constituída por frases muito curtas, com capítulos muito breves (no total de 144 capítulos), o que gera uma velocidade rápida de leitura. À medida que nos aproximamos do final a prosa ganha o ímpeto da força da correnteza da água aqui protagonizada, transfigurada em parágrafos que se estendem por páginas e capítulos que ganham mais terreno, como forma de dar conta do fantástico crescendo e desse enigmático final. Essa concisão própria de uma novela parece contudo posta em causa se atentarmos no considerável número de personagens. Os nomes das personagens são simbólicos, e alusivos a elementos naturais (Praado, Laago, Heera), como quem lembra que todos nós apesar de estarmos cada vez mais mergulhados em tecnologia não deixamos de fazer parte da natureza, tal como a água de que precisamos para viver e que faz parte do corpo humano. Além disso, são sempre grafados com dupla vogal, como que a ecoar na narrativa a pronúncia das vogais mais abertas (próprias de um Português mais cantado).
A alternar com a intriga principal pontuam os diálogos de Laama e Ryo que «passam metade do tempo a sondar as entranhas da natureza, a outra metade a discutir a interpretação dos resultados» (p. 17). Estes dois anciãos discutem «hoje, a água. Ou melhor, a falta dela, que aquilo que outrora era um pesado e líquido cordão não passa hoje de um tortuoso arabesco (…). No fundo, repetem sempre a mesma discussão» (p. 17), discussão essa muitas vezes feita da réplica de frases que se afiguram provérbios, sendo Ryo o mais «moderno» e «volúvel» e Laama o mais «consistente na obsessão de desnudar os fumos primordiais» (p. 17), enquanto procuram sondar a natureza e ler os seus desígnios, recorrendo mesmo a certas práticas ancestrais – presumirá o leitor – capazes de trazer a água de regresso, como quando caminham ao luar com uma concha de água. Contudo, como a própria narrativa declara, por muito que a ciência (e incluímos nós a religião) se procure instituir como «esforçada leitura paralela, as coisas seguem o seu curso cego imunes às interpelações. A natureza é um misterioso veículo em movimento deixando sacerdotes e cientistas em terra, ocupados ainda assim na tentativa de determinar o rumo da viagem!» (p. 17).
Este é portanto um romance de carência que narra a história de uma comunidade rural que atravessa um período de seca pois o rio há muito secou. As personagens que por aqui se movem estão todas elas ligadas à água, seja o pastor que precisa de campos férteis para apascentar o seu gado, seja a lavadeira que lava a roupa no rio, ou ainda os técnicos e investigadores que estudam a água ou, melhor dizendo, a falta desta. Mas esta novela rural está eivada de modernidade. Note-se a profusão de onomatopeias que dão conta dos sons e ruídos próprios de um mundo urbano que começa a transbordar para esta localidade rural, como os camiões («Vrrrrrr! Vrrrrrr!») ou os sons dos telemóveis de Ervio e Maara («Críí! Críí!»), enamorados que se contactam quase exclusivamente por esta via – como se por pertencerem a mundos diferentes vissem também o contacto entre si limitado a este meio de comunicação. Os “celulares” são aliás uma presença cada vez mais forte na sociedade moçambicana, à semelhaça do resto do mundo, pois toda a gente, por muito apartada que viva do centro urbano, possui o seu. Contudo existe a particularidade de, tal como acontece muitas vezes nos telefonemas trocados entre o casal amoroso cheios de interferências, os telemóveis serem mais um motivo de desentendimento do que de comunicação eficaz entre Ervio e Maara. Configurado principalmente na relação amorosa entre Ervio e Maara, há todo um jogo de contrários a começar pelo título da obra pois, conforme se referiu, rapidamente percebemos que Água não é algo que existe e daí dar título à obra mas sim algo que é preciso redescobrir ou reaver. A questão do colonialismo também se encontra presente neste jogo de opostos, como se pode ler quando se refere a loja do português que apesar de fechada continua a ser um marco. Por outro lado, retrata-se a presença de apoios externos em Moçambique, bem como no continente africano em geral, mediante a figura do engenheiro alemão Waasser (e adivinhe-se o que significa Wasser em alemão? Pois é: Água!).
Não deixa de haver uma reflexão em torno destas contradições moçambicanas, ao mesmo tempo que se parece denunciar também como certos apoios externos parecem completamente despropositados ou, por outro lado, infrutíferos mesmo, como é a intenção de se construir uma ponte sobre um rio seco. Mesmo o diálogo entre Laama e Ryo é aliás a representação de uma discussão assente em pontos de vista distintos apesar de serem ambos membros de uma certa antiguidade na comunidade.
É interessante atentar como o narrador se assume sempre como um nós, uma voz colectiva, pertencente a essa comunidade rural, ou assumindo-se como a própria comunidade. Este aspecto é algo que também se pode encontrar em Ungulani Ba Ka Khosa e atesta de um cuidado da literatura pós-independência em encontrar a sua voz e escrever de forma interventiva como uma consciência social ou política, pois afinal esta obra que oscila entre a seca e a cheia é também um retrato da realidade moçambicana em diferentes zonas do país, como aconteceu no rio Limpopo com as cheias de 2000, em que as pessoas subiram aos telhados das casas, mas também mais recentemente, em 2014 ou em 2015. O autor declarou, em entrevistas, tentar dar conta de como Moçambique é um país feito de desequilíbrios, como acontece justamente com a água, acontecendo por vezes haver zonas ameaçadas pelas secas enquanto que outras são simultaneamente afectadas pelas cheias. O autor debruça-se ainda, como se pode perceber no emblemático e alegórico final, sobre a questão do mundo rural como um espaço que parece condenado a desaparecer em África, cada vez mais circunscrito a terrenos que se reclamam, por vezes, para reservas naturais. Assiste ainda à narrativa um certo sentido de ironia e de humor, como por exemplo quando o engenheiro alemão Waasser reflecte como «o mundo será perfeito quando os caminhos dos rios forem todos rectos como as fronteiras de África. Não há perfídia nem ironia nesta sua aspiração, apenas racionalidade. As coisas perfeitas são as que seguem a direito evitando desnecessários gastos de energia.» (p. 49). Ainda em relação ao final, não deixa de ser sintomática a intrusão de uma certa magia, como que um resquício do realismo mágico característico de uma certa literatura pós-colonial, nomeadamente nas borboletas, símbolo caro justamente ao realismo mágico (relembre-se Cem Anos de Solidão) e na personagem cujo ventre seco de repente parece transmutar-se em nascente.
Normalmente quando se fala em literatura moçambicana ressalta o nome de Mia Couto mas existem outros grandes autores menos conhecidos entre nós, como Ungulani Ba Ka Khosa (já aqui apresentado a propósito de Choriro, publicado pela Sextante) ou o autor que hoje vos trazemos. João Paulo Borges Coelho tem aliás toda a sua obra publicada pela Caminho e foi o vencedor do Prémio Leya em 2009 com O olho de Hertzog, sendo o único autor já com obra publicada a ter ganho o prémio (os restantes vencedores têm sido autores inéditos e estreantes). Já em 2004 o autor foi vencedor do Prémio José Craveirinha da Literatura, a maior distinção literária em Moçambique. Este autor pode não ser muito popular entre nós mas merece muito ser lido com atenção e tem tratado na sua obra literária diversas épocas históricas do país.
Esta obra, cujo tema principal está desde logo designado no título, e subtitulada de «Uma novela rural», apontando para o género a que pertence, sendo a novela algo entre a brevidade do conto e a complexidade do romance, assente em princípios de economia narrativa. A concisão define de facto esta obra, cuja escrita é constituída por frases muito curtas, com capítulos muito breves (no total de 144 capítulos), o que gera uma velocidade rápida de leitura. À medida que nos aproximamos do final a prosa ganha o ímpeto da força da correnteza da água aqui protagonizada, transfigurada em parágrafos que se estendem por páginas e capítulos que ganham mais terreno, como forma de dar conta do fantástico crescendo e desse enigmático final. Essa concisão própria de uma novela parece contudo posta em causa se atentarmos no considerável número de personagens. Os nomes das personagens são simbólicos, e alusivos a elementos naturais (Praado, Laago, Heera), como quem lembra que todos nós apesar de estarmos cada vez mais mergulhados em tecnologia não deixamos de fazer parte da natureza, tal como a água de que precisamos para viver e que faz parte do corpo humano. Além disso, são sempre grafados com dupla vogal, como que a ecoar na narrativa a pronúncia das vogais mais abertas (próprias de um Português mais cantado).
A alternar com a intriga principal pontuam os diálogos de Laama e Ryo que «passam metade do tempo a sondar as entranhas da natureza, a outra metade a discutir a interpretação dos resultados» (p. 17). Estes dois anciãos discutem «hoje, a água. Ou melhor, a falta dela, que aquilo que outrora era um pesado e líquido cordão não passa hoje de um tortuoso arabesco (…). No fundo, repetem sempre a mesma discussão» (p. 17), discussão essa muitas vezes feita da réplica de frases que se afiguram provérbios, sendo Ryo o mais «moderno» e «volúvel» e Laama o mais «consistente na obsessão de desnudar os fumos primordiais» (p. 17), enquanto procuram sondar a natureza e ler os seus desígnios, recorrendo mesmo a certas práticas ancestrais – presumirá o leitor – capazes de trazer a água de regresso, como quando caminham ao luar com uma concha de água. Contudo, como a própria narrativa declara, por muito que a ciência (e incluímos nós a religião) se procure instituir como «esforçada leitura paralela, as coisas seguem o seu curso cego imunes às interpelações. A natureza é um misterioso veículo em movimento deixando sacerdotes e cientistas em terra, ocupados ainda assim na tentativa de determinar o rumo da viagem!» (p. 17).
Este é portanto um romance de carência que narra a história de uma comunidade rural que atravessa um período de seca pois o rio há muito secou. As personagens que por aqui se movem estão todas elas ligadas à água, seja o pastor que precisa de campos férteis para apascentar o seu gado, seja a lavadeira que lava a roupa no rio, ou ainda os técnicos e investigadores que estudam a água ou, melhor dizendo, a falta desta. Mas esta novela rural está eivada de modernidade. Note-se a profusão de onomatopeias que dão conta dos sons e ruídos próprios de um mundo urbano que começa a transbordar para esta localidade rural, como os camiões («Vrrrrrr! Vrrrrrr!») ou os sons dos telemóveis de Ervio e Maara («Críí! Críí!»), enamorados que se contactam quase exclusivamente por esta via – como se por pertencerem a mundos diferentes vissem também o contacto entre si limitado a este meio de comunicação. Os “celulares” são aliás uma presença cada vez mais forte na sociedade moçambicana, à semelhaça do resto do mundo, pois toda a gente, por muito apartada que viva do centro urbano, possui o seu. Contudo existe a particularidade de, tal como acontece muitas vezes nos telefonemas trocados entre o casal amoroso cheios de interferências, os telemóveis serem mais um motivo de desentendimento do que de comunicação eficaz entre Ervio e Maara. Configurado principalmente na relação amorosa entre Ervio e Maara, há todo um jogo de contrários a começar pelo título da obra pois, conforme se referiu, rapidamente percebemos que Água não é algo que existe e daí dar título à obra mas sim algo que é preciso redescobrir ou reaver. A questão do colonialismo também se encontra presente neste jogo de opostos, como se pode ler quando se refere a loja do português que apesar de fechada continua a ser um marco. Por outro lado, retrata-se a presença de apoios externos em Moçambique, bem como no continente africano em geral, mediante a figura do engenheiro alemão Waasser (e adivinhe-se o que significa Wasser em alemão? Pois é: Água!).
Não deixa de haver uma reflexão em torno destas contradições moçambicanas, ao mesmo tempo que se parece denunciar também como certos apoios externos parecem completamente despropositados ou, por outro lado, infrutíferos mesmo, como é a intenção de se construir uma ponte sobre um rio seco. Mesmo o diálogo entre Laama e Ryo é aliás a representação de uma discussão assente em pontos de vista distintos apesar de serem ambos membros de uma certa antiguidade na comunidade.
É interessante atentar como o narrador se assume sempre como um nós, uma voz colectiva, pertencente a essa comunidade rural, ou assumindo-se como a própria comunidade. Este aspecto é algo que também se pode encontrar em Ungulani Ba Ka Khosa e atesta de um cuidado da literatura pós-independência em encontrar a sua voz e escrever de forma interventiva como uma consciência social ou política, pois afinal esta obra que oscila entre a seca e a cheia é também um retrato da realidade moçambicana em diferentes zonas do país, como aconteceu no rio Limpopo com as cheias de 2000, em que as pessoas subiram aos telhados das casas, mas também mais recentemente, em 2014 ou em 2015. O autor declarou, em entrevistas, tentar dar conta de como Moçambique é um país feito de desequilíbrios, como acontece justamente com a água, acontecendo por vezes haver zonas ameaçadas pelas secas enquanto que outras são simultaneamente afectadas pelas cheias. O autor debruça-se ainda, como se pode perceber no emblemático e alegórico final, sobre a questão do mundo rural como um espaço que parece condenado a desaparecer em África, cada vez mais circunscrito a terrenos que se reclamam, por vezes, para reservas naturais. Assiste ainda à narrativa um certo sentido de ironia e de humor, como por exemplo quando o engenheiro alemão Waasser reflecte como «o mundo será perfeito quando os caminhos dos rios forem todos rectos como as fronteiras de África. Não há perfídia nem ironia nesta sua aspiração, apenas racionalidade. As coisas perfeitas são as que seguem a direito evitando desnecessários gastos de energia.» (p. 49). Ainda em relação ao final, não deixa de ser sintomática a intrusão de uma certa magia, como que um resquício do realismo mágico característico de uma certa literatura pós-colonial, nomeadamente nas borboletas, símbolo caro justamente ao realismo mágico (relembre-se Cem Anos de Solidão) e na personagem cujo ventre seco de repente parece transmutar-se em nascente.
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