«Ninguém quer uma criança crescida»
Entrevista a Patrícia Reis sobre As Crianças Invisíveis Ver artigo
Deus ajude a criança conta a história, em modo alternado, de diversas personagens: Sweetness, a mãe que dá à luz uma criança negra como a noite; Lula Ann, que passa a adoptar o nome Bride, talvez por melhor condizer com a sua nova identidade; Booker, o namorado, que perdeu o irmão poucos anos mais velho ainda em criança, depois de o seu próprio gémeo ter nascido morto; Rain, uma criança de cor clara, que era prostituída pela própria mãe ainda em criança, depois expulsa de casa, e ser mais tarde resgatada por um casal.
A unir estas personagens está uma infância sofrida que pode deixar danos irreparáveis que as condenam a uma vida irreconciliável com a dádiva do amor ou a confiança da partilha. Lula Ann nasce com tez pálida como qualquer criança, mas de súbito a sua pele passa a um tom preto-azulado de forma tão inexplicável que a mãe, ironicamente chamada de Sweetness, quase a sufoca e o pai acaba por as abandonar. A partir daí a infância de Lula Ann é tão dolorosa que ela chega a desejar que a mãe a agrida apenas para poder sentir o seu toque, até que certo dia, para poder conhecer o amor que a mãe sempre lhe negou, vai ao ponto de mentir e arruinar a vida de uma pessoa apenas para conseguir que a mãe a olhe com orgulho e a segure pela mão, como quem a toca pela primeira vez. Bride, que assim decide passar a chamar-se, talvez por aprender a deixar de ter vergonha da sua cor e evidenciá-la ainda mais ao apenas vestir em tons de branco, tal como uma noiva, é agora uma mulher bem-sucedida, com a sua marca de cosmética. Mas o seu desejo de experienciar o amor mantém-se tão avassalador que ela dá por si a transformar-se, como quem encolhe, num ensejo de regressar à infância.
Deus ajude a criança não será certamente a obra mais emblemática de Toni Morrison, autora afro-americana nascida em 1931 no Ohio, a par de obras como Beloved (Amada), Tar Baby ou Song of Solomon, mas foi a sua última obra publicada em 2015 e traduzida e editada entre nós pela Editorial Presença logo no ano seguinte. Uma obra que mereceu críticas díspares, como a de que as personagens não tinham verdadeiramente densidade psicológica. Mas é, ainda assim, uma obra acima da média, sobre como a mácula da infância nos pode perseguir em adultos ou mesmo para toda a vida, onde ressoam ecos do realismo mágico ou fantástico da sua obra-prima Beloved, em torno da personagem Bride. Toni Morrison foi a primeira autora afro-americana a vencer o Prémio Nobel da Literatura em 1993, é sobejamente distinguida e aclamada, tendo recebido de Barack Obama a Presidential Medal of Freedom, a mais alta distinção civil dos Estados Unidos da América, e faleceu no passado dia 5 de Agosto, aos 88 anos, com uma obra que se distingue pela exaltação dos direitos humanos, nomeadamente sobre a condição de se ser mulher e de se ser negro/a.
«Desconfiava que a maioria das respostas autênticas relacionadas com a escravatura, linchamentos, trabalhos forçados, parcerias rurais, racismo, (…) trabalho na prisão, migração, direitos civis e movimentos de revolução negra se achavam todas ligadas ao dinheiro. Dinheiro retido, dinheiro roubado, dinheiro como poder, como guerra. Onde estava a palestra sobre como a escravatura catapultara sozinha o país inteiro da agricultura para a era industrial em duas décadas? O ódio dos brancos, a sua violência, era a gasolina que mantinha os motores do lucro a andar.» (p. 102)
O romance Beloved, vencedor do Pulitzer em 1988, foi adaptado ao cinema e conta com a interpretação de Oprah Winfrey e Danny Glover. Ver artigo
Olga conta a história de uma menina a partir do seu primeiro ano de idade, que se limita a absorver o interior da casa da vizinha que cuida de si em todos os seus pormenores, até que tendo visto o que havia para ver passa a subir para uma cadeira e a contemplar o mundo pela janela. Silenciosa e solitária, a menina filha de um estivador e de uma lavadeira aprenderá a ler a escrever com a vizinha ainda antes de ir para a escola e cedo se evidencia o seu gosto pela leitura. Quando uns anos mais tarde os pais morrem com tifo, com dez dias de intervalo, Olga será levada pela avó que a desaprova, da mesma forma que foi contra o casamento do filho com uma mulher eslava e que deu o seu nome próprio, igualmente eslavo, à filha. Mas cedo Olga evidencia a sua fibra ao rejeitar que a avó lhe troque o nome. Criada sem amor pela avó numa aldeia a leste do império alemão, num período incerto que se pressente como a viragem do século XIX, em que a própria Alemanha ainda tem as suas fronteiras por definir, Olga continua a evidenciar-se na escola, e mantém a sua curiosidade e admiração pelo mundo, isolando-se na orla da floresta a ler. Além dos livros, tem por companhia Herbert, filho do homem mais rico da aldeia, uma criança que assim que deu os primeiros passos começou a correr, não sabendo mover-se pelo mundo de outra forma, com a ânsia de descobrir com os seus próprios passos aquilo que Olga explora pela leitura. Mas com o tempo as diferenças entre Herbert, a irmã Viktoria e Olga tornam-se mais declaradas, nomeadamente entre a ambição social de Viktoria e o sonho de Olga em continuar os seus estudos, porém impossibilitada pela sua condição de frequentar o magistério público. Até que as suas vidas tomam caminhos distintos. Se no início este romance parece ter algo de conto encantado, como condiz à narração da infância e juventude, o leitor dá depois por si a atravessar o século XX à medida que Olga prossegue com os seus sonhos, vislumbrando alternativas sem se deixar render às poucas oportunidades que a vida lhe dá como mulher e pobre, e Herbert continua a correr mundo, da Namíbia ao Pólo Norte, partilhando da febre expansionista alemã das primeiras grandes explorações pela vastidão de lugares inóspitos e longínquos, numa Alemanha em constante mudança, conforme o império dá lugar à República de Weimar e depois à ascensão dos sociais-democratas, até que deflagra a guerra, e a vida de Olga continua a encaminhar-se por desvios tortuosos.
Em tom nostálgico e límpido, a prosa de Bernhard Schlink mantém-se apaixonante, neste romance publicado pelas Edições ASA, numa magnífica viagem pela Alemanha do século XX que se entrelaça magistralmente com a história desta mãe-coragem que é Olga.
Bernhard Schlink nasceu em 1944 em Bielefeld. Jurista de formação, juiz, professor de Direito Público e de Filosofia do Direito numa universidade em Berlim, é mais conhecido, entre nós, como autor de O Leitor, adaptado ao cinema e que conferiu a Kate Winslet o Óscar de melhor actriz. Ver artigo
Kahlil Gibran (a pronúncia mais usual costuma ser Khalil) nasceu na Síria otomana, perto do Monte Líbano, em 1883. A sua infância foi de pobreza extrema e, em 1895, emigrou para os EUA com a mãe e os irmãos. Viveram nos bairros degradados de Boston quando o seu talento artístico chamou a atenção do fotógrafo e editor Fred Holland, que lhe estendeu a mão de modo a passar a frequentar os círculos literários e artísticos. Regressou ao Líbano para terminar os seus estudos, partiu em 1908 para Paris, onde estudou com Auguste Rodin. Em 1912 muda-se definitivamente para Nova Iorque. Estudou arte e escreveu em árabe e inglês, tornando-se um célebre artista e poeta líbano-americano. A par de Shakespeare e Lao-Tzu, é dos poetas mais vendidos de todos os tempos, pois apesar da disposição gráfica em prosa este livro é, na sua essência, um poema e um dos primeiros exemplos de literatura inspiracional (não confundir propriamente com auto-ajuda). O autor faleceu em 1931, com 48 anos.
Almustafá esperou durante doze anos na cidade de Orfalés, onde passou longos dias de sofrimento e longas noites de solidão. Mas quando se prepara para partir no navio que chega ao porto o seu coração apenas destila amor e aqueles que parecem tê-lo repudiado outrora procuram-no agora em busca das suas palavras de sabedoria, aclamando-o como o filho muito amado de Orfalés. Anciãos, sacerdotes, profetas, marinheiros, pedem agora a Almustafá, na despedida, as suas palavras sobre os mais variados temas.
O Profeta é um tratado de um profundo lirismo sobre a humanidade, o amor, o perdão, o autoconhecimento, o trabalho, a morte, o adeus…
«O amor não dá mais do que a si próprio e não retira nada que não seja a si mesmo.
O amor não possui nem pode ser possuído, pois o amor é suficiente por si só.
Quando amardes, não deveis dizer “Deus está no meu coração”, mas antes “Eu estou no coração de Deus”.
E não penseis que podeis dirigir o curso do amor, pois o amor, se vos achar merecedores, dirigirá o vosso curso.» (p. 21)
O Profeta, apesar de não ter sido bem recebido quando publicado em 1923, começou a tornar-se um sucesso na década de 30, e é uma das obras mais conhecidas da literatura mundial, agora relançada numa novíssima tradução e edição pela Albatroz (pertencente ao grupo da Porto Editora), e acompanhada de O Jardim do Profeta, escrito como complemento.
Existe, a título de curiosidade, uma adaptação em desenho animado deste livro e a Albatroz publicou ainda O Livro da Vida, onde se compilam pequenos textos célebres de Khalil Gibran, mais de cem histórias sobre o sentido da experiência humana. Ver artigo
Pessoas Normais, de Sally Rooney, publicado pela Relógio d’Água, foi considerado o fenómeno literário da década, o melhor romance do ano, Prémio Costa de Melhor Romance 2018, Livro do Ano da cadeia de livrarias Waterstones, nomeado para o Man Booker Prize 2018, Women’s Prize for Fiction 2019 e Dylan Thomas Prize 2019. Posto isto, é normal começar a leitura com um misto de reserva e de entusiasmo (incomoda sempre quando os livros são demasiado etiquetados).
Porque é que a história de Connell e Marianne, dois estudantes que aparentemente apenas estão ligados porque a mãe de Connell faz limpeza na casa de Marianne, uma enorme casa sobejamente conhecida na localidade, terá apaixonado tantos leitores, escritores e críticos?
Sally Rooney nasceu em 1991, uma jovem autora em início de carreira, já com um romance de estreia igualmente premiado e vencedora do Prémio Sunday Times/PFD Young Writer of the Year. Connell e Marianne são, talvez por isso, apresentados na sua humanidade de adolescentes/adultos (a fronteira é sempre ténue na actualidade), como jovens divididos entre a sua reputação perante a comunidade escolar e o passado familiar que carregam consigo – um não sabe quem é o pai e não quer saber; outra foi abusada pelo pai e tratada pela mãe como uma desconhecida. A acção decorre entre 2011 e 2015, período em que conhecem o seu primeiro amor, deixam o liceu para ingressar na universidade e abandonam o seu mundo familiar por novos horizontes, onde podem reescrever a sua história, de forma invertida, em que a popularidade de outrora passa a vulgaridade e a animosidade dos outros alunos de liceu é convertida em sucesso junto dos colegas de universidade.
«Marianne tinha a sensação de que a sua vida real se desenrolava algures muito longe, que acontecia sem ela, e não sabia se alguma vez iria descobrir onde e tornar-se parte dela. Muitas vezes tinha essa sensação na escola, mas sem ser acompanhada de quaisquer imagens específicas do que a vida real pudesse ser ou parecer.» (p. 18)
Connel e Marianne não são jovens vistos em retrospectiva por um olhar adulto, mas sim adultos em potência vistos por um olhar sensível que está muito próximo do seu mundo, e nos transmite como os nossos dilemas de liceu podem, fatalmente, levar a decisões erradas, apenas porque receamos o amor quando este é demasiado afrontoso para os demais, ou porque o ser amado é impopular, demasiado diferente na sua auto-suficiência, ou porque tem o inconveniente de ter nascido com olhos estrábicos e dentes tortos, ou até porque tem inclinações mórbidas, talvez decorrentes da falta de amor. Ver artigo
Numa Londres alternativa nos anos 1980, quando Margaret Thatcher comete a imprudência de uma desastrosa guerra territorial pelas Ilhas Falkland, Charlie Friend usa as suas poupanças – que dariam para comprar um apartamento – num exemplar de um primeiro lote de seres humanos sintéticos, isto é, um robot com aspecto perfeitamente humano e inteligência artificial, que pode inclusive desempenhar funções de brinquedo sexual vivo, e sugestivamente designado como Adão. Charlie talvez preferisse uma Eva, mas estavam esgotadas…
«Quanto à autonomia, conseguia correr dezassete quilómetros em duas horas sem precisar de ser recarregado ou, com um consumo equivalente de energia, conversar ininterruptamente durante doze dias. Tinha uma vida útil de vinte anos. Era corpulento, de ombros direitos, pele escura, cabelo preto espesso penteado para trás; a cara era estreita, com um nariz ligeiramente adunco a sugerir uma inteligência sólida, uns olhos pensativos» (p. 12)
Ian McEwan, um dos mais importantes autores britânicos, depois do irreverente Numa Casca de Noz em que coloca um embrião a meditar sobre a Inglaterra em fase Brexit, continua a meditar sobre o futuro da raça humana nestes tempos conturbados em que a tecnologia ameaça (?) ultrapassar a inteligência humana. Ver artigo
Michel Houellebecq é provavelmente dos autores franceses mais lidos e mais polémicos dos últimos tempos. Nascido na Ilha Reunião, em 1956, tem a sua obra publicada em Portugal pela Alfaguara e está traduzido em mais de quarenta línguas. Venceu em 2010 o Prémio Goncourt com O mapa e o território e este ano foi condecorado com a Legião de Honra, coincidentemente com a publicação do seu mais recente romance, Serotonina – título familiar, e infelizmente actual, para quem já se viu confrontado com a triste notícia de que o seu sistema endócrino não está a produzir serotonina suficiente.
Florent-Claude Labrouste, funcionário do Ministério da Agriculta, de quarenta e seis anos, descontente com o seu nome próprio e com a vida em geral, é um cidadão vulgar e anódino, não fosse ter uma namorada japonesa mais nova de quem descobre uns vídeos pornográficos chocantes para o leitor comum… Numa fuga à sociedade em geral, o nosso anti-herói deixa a namorada, a casa, o emprego e passa a viver de quarto em quarto de hotel, movido a Captorix, um antidepressivo que, supostamente, deveria libertar serotonina. Mas as melhoras são poucas, apesar de ironicamente serem bem manifestos os efeitos secundários como a total inibição de desejo sexual e a disfunção eréctil, mesmo quando a dosagem excede o que seria aconselhável. Ou, por outro lado, talvez seja o Captorix que lhe permitirá ver sem paliativos a realidade desastrosa e desesperançada que se vive, com uma França e uma Europa que ameaçam ruir, num mundo todo ele às avessas.
Politicamente incorrecta, com afirmações imbuídas de machismo e chauvinismo, a prosa de Michel Houellebecq raia o pornográfico ao mesmo tempo que ainda assim disseca, igualmente sem freio na língua, a nossa realidade. Para dar um exemplo mais suave, leia-se a seguinte passagem quando o narrador aceita ficar numa casa sem internet:
«Respondi-lhe que já sabia, que já estava preparado para isso. Vi então passar-lhe pelos olhos um breve momento de temor. Não devem faltar os depressivos que se querem isolar, que querem passar uns meses nos bosques «para fazer um ponto de situação»; mas pessoas que aceitam ficar sem internet, sem pestanejar, por tempo indefinido é porque estão nas últimas, li-lhe no olhar ansioso.
– Não me vou suicidar – disse-lhe, com um sorriso que esperava desarmante, mas que na realidade devia ser suspeito. – Enfim, não agora – acrescentei, como concessão.» (p. 221) Ver artigo
Less, de Andrew Sean Greer, publicado em maio deste ano pela Quetzal, com tradução de Vasco Teles de Menezes, foi um dos livros sensação de 2017, vencedor do Pulitzer de Ficção, do Northern California Book Award, do Washington Post Best Book, bestseller do New York Times e recomendado como um dos melhores livros do ano pela The Paris Review ou America Library Association.
Arthur Less é, como o nome indicia, um homem menor, prestes a fazer cinquenta anos, em tempos o jovem parceiro de um génio literário, agora rejeitado pelo seu jovem amante, escritor aclamado pelo seu romance de estreia, é um homem tão discreto, apesar do seu fato de um azul lessiano (adjectivo que predomina ao longo do livro), que se torna apagado. Arthur Less, o nosso protagonista peripatético, com olhos cor de safira, magro e elegante, com laivos de herói pícaro, trapalhão e vítima de si próprio, é tão menor que até como homossexual parece dar mau nome aos seus amigos gay, por não ser “suficientemente gay”. Além de abandonado pelo amante, Less vê ainda o seu mais recente romance de Less rejeitado pela editora; curiosamente intitulado de Swift (como em Jonathan Swift), esse romance parece aliás reflectir a própria narrativa de Less: «um romance peripatético. Um homem a vaguear por São Francisco, e pelo seu passado, retornando a casa após uma série de reveses e desilusões («Só sabes escrever o Ulisses em versão gay», disse Freddy); um romance melancólico e pungente acerca da vida difícil de um homem. Da meia-idade falida e gay.» (p. 39)
Para contornar esta triste notícia, e para declinar com justa causa o convite para o casamento do seu ex-namorado com outro homem que não ele, Arthur Less decide embarcar numa viagem pelo mundo, em que uma série de convites sobrepostos – que um escritor mais afamado certamente recusaria – lhe permitirão viajar pelo México, por Itália, Alemanha, França, Marrocos, Índia e, por fim, Japão.
Tal como a personagem do seu primeiro romance, Kalipso, uma espécie de reescrita da Odisseia, em versão gay, em que um soldado dá por si numa ilha deserta e se apaixona por outro homem, até que volta para casa e para a mulher, Arthur Less terá as suas próprias peripécias ao longo das viagens que empreende. Apesar de ser visto como um homem distinto, de ar elegante e delicado, por aqueles com quem se cruza, Arthur não deixa de se comprazer na sua dor e na visão menor que tem de si próprio, que impossibilita aliás reconhecer que ainda há quem o veja como um grande autor… talvez por ter vivido largos anos sob a sombra de um génio poeta… e porque entende que aos cinquenta anos já ninguém se pode tornar mais apelativo… quando na verdade Less é ainda uma criança grande e inocente, capaz de se relacionar com o mundo sem consciência dos seus perigos… com azar nas coisas que não interessam e uma sorte pródiga nas que interessam.
«Pois ele já conheceu a genialidade. Já foi acordado pela genialidade a meio da noite, pelo som da genialidade a percorrer os corredores para trás e para a frente; já preparou café à genialidade, e o pequeno-almoço, e a sanduíche de presunto e o chá; já esteve nu ao lado da genialidade, impediu a genialidade de entrar em pânico com falinhas-mansas, foi buscar as calças da genialidade ao alfaiate e passou as camisas a ferro para um recital. Já apalpou cada pedacinho de pele da genialidade; já sentiu o cheiro e o toque da genialidade.» (p. 113)
Less, tal como o romance gorado de Arthur Less que ele acaba por decidir reescrever, nada tem afinal de melancólico, mas sim de risível, de enternecedor, e de revelador, em como o homem dá a volta ao mundo para descobrir o seu destino quando regressa à porta de casa. Sem que, de facto, o leitor consiga sentir tanta piedade pelo nosso herói como a compaixão que ele sente por si próprio, ao viver uma vida que é claramente melhor do que a de qualquer outra pessoa que possamos conhecer, inclusive a nossa… Ver artigo
Julian Barnes, nascido em 1946 e por três vezes finalista do Booker Prize, é um dos grandes autores da literatura inglesa, publicado pela Quetzal, cuja obra revela versatilidade, cruzando géneros e temas diversos de modo a chegar aos sentidos possíveis da vida, em romances sempre inesperados. Depois de O Ruído do Tempo, em que num romance próximo de um ensaio, explorava a vida de Shostakovich e a sua liberdade criativa sob o regime totalitário estalinista, o autor envereda agora por um tema mais próximo, o amor, mas sob a perspectiva de um jovem apaixonado por uma mulher mais velha. Nesta recriação da história de Mrs. Robinson – para quem conhece o filme A Primeira Noite (The Graduate), de 1967, com Dustin Hoffman que se envolve com uma mulher mais velha, interpretada por Anne Bancroft –, Paul Casey, um jovem de dezanove anos, conhece Susan, uma mulher de quarenta e oito anos, no clube de ténis, e de parceiros de ténis passarão gradualmente a companheiros de vida. Num envolvimento muito pouco disfarçado, o casal irá afrontar a boa moral inglesa dos subúrbios, numa época em que os termos cougar ou toy boy eram desconhecidos, e as únicas palavras eram «adúltera e mulher fácil».
Aperceber-nos-emos gradualmente que o narrador é um Paul muito mais velho, a relembrar o grande amor da sua juventude e da sua vida. O narrador, inicialmente na primeira pessoa e mais tarde oscilando entre a primeira e a terceira pessoa, alerta desde logo o leitor: «Entendem (espero) que estou a contar-vos tudo tal qual me lembro? Nunca tive um diário e a maior parte dos que participaram na minha história – minha história e minha vida – ou morreram ou estão longe. Por isso não registo necessariamente os factos pela ordem em que aconteceram. (…) A memória organiza e filtra, segundo as exigências que lhe são feitas por quem lembra. Podemos aceder ao algoritmo das suas prioridades? Provavelmente não.» (p. 29)
Neste belíssimo e sublime romance relembra-se o passado, sem o reconstruir, até porque no amor há uma única história. E todos têm ou tiveram já a sua história de amor, a que se torna única e verdadeira. Especialmente quando a única história é a primeira, que marca a vida para sempre e empalidece todos os futuros amores. Mesmo quando essa única história tem um desfecho infeliz. Ver artigo
O mais recente livro de Kazuo Ishiguro é, na verdade, a obra de estreia do autor japonês, publicada em 1982. A sua obra está publicada pela Gradiva e já aqui recenseámos outros livros do autor, todos eles completamente distintos, pelo que nunca sabemos onde a sua escrita nos conduz.
Etsuko é uma mulher japonesa que vive em Inglaterra, divorciada, com duas filhas de dois homens diferentes. Keiko, a sua filha mais velha, suicidou-se recentemente. E Niki, nascida em Inglaterra, vive com o namorado em Londres mas não tem qualquer intenção de se casar ou ter filhos. Niki tem aliás um nome que resulta de um acordo entre a mãe japonesa e o pai inglês, que insistia que a filha tivesse um nome japonês. Logo nesta informação, avançada nas primeiras linhas do romance, sente-se que a tradição parece aqui colocada em causa… e de facto, é isso que se sentirá ao longo do livro. Como transparece também na relação entre Jiro, o primeiro marido de Etsuko, que menospreza o pai em prol da sua ambição profissional, ou na amiga que vive obcecada com o americano que um dia poderá levá-la para a América, apesar de pressentir que não passa de uma ilusão e de lhe maltratar a filha.
Quando Niki visita a mãe durante os dias chuvosos e frios de Abril, em sequência do suícidio da irmã, a cujo enterro não compareceu, Etsuko dá por si numa retrospectiva dos primeiros tempos da sua gravidez, nos anos seguintes à destruição de Nagasáqui, em que continua presente o impacto da bomba na vida dos que sobreviveram, e revive as memórias da sua amizade com Sachiko, uma mulher que perdeu a sua fortuna e a sua boa posição devido à guerra e vive agora numa casa pobre, com uma filha rebelde e peculiar.
Kazuo Ishiguro viveu em Nagásaqui, sua cidade natal, durante 5 anos, antes de se mudar para Londres. Foi Prémio Nobel de Literatura em 2017. A sua escrita é, como sempre, cristalina e envolvente, e os seus enredos enigmáticos e ambíguos. O presente e o passado explorados na narrativa não parecem interligar-se cabalmente… mas há um enigma neste livro que pede para ser desvendado… contudo revelá-lo aqui seria estragar o prazer da vossa leitura. Ver artigo
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