Adiei a leitura, como quem guarda um chocolate para uma emergência, do mais recente livro de Lídia Jorge. Em Todos os Sentidos foi publicado em Abril deste ano, pela Dom Quixote, durante a fase em que o mundo parou e entrou em quarentena. Mas a propósito de a autora ter sido recentemente agraciada com o Prémio da Feira Internacional do Livro de Guadalajara para Línguas Românicas (a 2.ª autora portuguesa a vencer o prémio, depois de António Lobo Antunes), agarrei finalmente no livro.
«As crónicas que se seguem resultam de um convite que João Almeida me fez, em Dezembro de 2018, para que aceitasse colaborar com a Rádio Pública num programa para o qual ele já tinha criado o título – Em Todos os Sentidos.» (p. 11)
Ao longo de 2019, durante 10 meses, foram transmitidas 43 crónicas da autora nesse programa difundido na Antena 2 – dois dos textos já existiam e foram adaptados; a crónica de Agustina foi lida 2 vezes, pois foi repetida a transmissão como homenagem na altura do seu falecimento; uma das crónicas («Tempestade») acabou por não ser lida. Do total dessas crónicas, este livro resulta em 41 textos aqui publicados.
Nestas crónicas, se é que assim lhe podemos chamar, são abordados vários temas, alguns deles recorrentes, como o tempo, o futuro, a velocidade dos nossos tempos, a tecnologia, a literatura, quem engoliu a literatura, o cinema, a definição da Europa, etc.
(…)
«Dizem‑me que estas crónicas não são verdadeiras crónicas porque têm contos na sua origem. Aceito essa declaração de impureza. Infiel seria eu se assim não fosse. Pois, na verdade, escrevo contos desde que aprendi a redigir, e penso contos que não escrevo como uma forma própria de pensar sobre tudo aquilo que causa intriga ou espanto. Porque um conto é um raciocínio colorido. Se me perguntam sobre o sentido do passado, eu começo por responder – Era uma vez. Se me perguntam sobre as tensões do presente, começarei de novo por – Era uma vez. E nada poderei desejar sobre o futuro que não inclua essa fórmula de adivinhação – Sim, era uma vez, no futuro será assim…» (pág. 149) Ver artigo
Recordações do Futuro, de Siri Hustvedt, publicado pela Dom Quixote recentemente e com tradução de Tânia Ganho é um livro curioso, para não dizer genial, a vários níveis. É antes de mais um «retrato da artista enquanto jovem», pois a intriga principal centra-se em S. H., uma jovem que, aos 23 anos, recebeu uma bolsa para estudar Literatura Comparada na Universidade de Columbia mas pede adiamento por um ano. Com uma licenciatura em Filosofia e Literatura, 5 mil dólares no banco, uma máquina de escrever e um trem de cozinha troca o Minnesota pela Nova Iorque de 1978, uma cidade muito diferente da de hoje, onde continua a viver, nos «Estados Unidos das Armas», país na «era do ódio» governado por um «homem poderoso a gritar obscenidades sobre os muçulmanos, os negros, os imigrantes, as mulheres perante grandes multidões de adoradores brancos» (p. 330). A solidão e a fome, ao ponto de vasculhar o lixo, não demovem a jovem de manter os seus principais intuitos: encontrar o herói do seu primeiro romance; «assimilar e emular para os meus próprios fins artísticos» (p. 11) o espírito rebelde da cidade vibrante, cacofónica, sobrepovoada em todas as línguas, que apenas conhecia dos filmes e livros; e «encher a cabeça com a sabedoria e a arte de todos os tempos» para, livro a livro, se transformar num gigante literário (p. 17). Mas S. H. cedo compreende que a arte responde a impulsos próprios, e não a uma técnica ou à autoridade da autora, como sucede ao ficar obcecada pela voz da vizinha do apartamento ao lado, com os seus monólogos bizarros, ou quando compreende que o herói do seu primeiro livro, Ian Feathers (IF = SE), um aspirante a Sherlock Holmes, se silencia e dá lugar à sua jovem amiga Isadora Simon (IS = É).
Com uma voz narrativa marcadamente feminin(ist)a, este romance construído em palimpsesto, complexamente simples, de leitura compulsiva, é construído sobre camadas, conforme, aos 61 anos, a «velha narradora», agora (em 2017) uma reputada escritora, relembra a jovem de há 4 décadas, enquanto simultaneamente nos apresenta excertos do seu velho diário, inclusive com ilustrações da própria autora, contrapostos com os primeiros capítulos do seu romance inacabado. Escusado fazer notar que embora a conheçamos apenas como S. H., estas iniciais são as da autora Siri Hustvedt, mas também as de Sherlock Holmes – o herói-modelo do protagonista do tal romance abandonado –, remetendo o leitor para um jogo de espelhos (ou de fechaduras e chaves) que cruza realidade e recriação, memória e ficção, recordações e fantasmas, bruxaria e arte. Ver artigo
Depois da originalidade e sucesso do seu romance de estreia é quase sempre difícil a um autor voltar a uma história tão poderosa e arrebatadora quanto a sua primeira. O Golfinho, o mais recente livro de Mark Haddon, autor de O Estranho Caso do Cão Morto (2003), com uma límpida tradução de Francisco Agarez e publicado pela Porto Editora, é um belo exemplo de arrebatadora e pujante prosa.
Viktor, Rudy e Maja, uma jovem mulher de beleza deslumbrante, actriz de televisão e gravidíssima, embarcam num pequeno avião. Duas horas depois, estão os três mortos e a criança que estava no ventre de Maja será a única sobrevivente desse desastre aéreo. E não, esta não é uma sinopse de todo o livro, pois ainda nem chegámos ao fim do primeiro capítulo.
A prosa de Mark Haddon é absolutamente deslumbrante e envolve-nos numa história que encanta como as de antigamente, até porque a intriga se distende numa ténue linha entre a efabulação própria das histórias de fantasia e o real. Quando a cabeça de Viktor, o piloto, acaba decepada na queda do avião e enterrada num lameiro nas proximidades, é difícil não interpretar esse evento como um castigo divino pela sua irresponsabilidade e distracção, perturbado pela beleza de Maja, que seguia consigo no avião. Ou quando Angelica, a menina com nome de contos de fadas que sobrevive, é criada pelo pai extremamente rico numa complexa e sofisticada clausura, no que hoje equivale a uma torre de marfim, sendo o pai o dragão que a guarda. Ou quando o jovem impante Darius tenta salvar Angelica, não será mera coincidência que surja num BMW série 3 branco.
Em suma, cada evento, por muito ordinário que se afigure, está sempre eivado de alguma simbologia, ou talvez seja a imaginação fértil de um leitor, estimulada por livros como este, a conferir-lhes esse sentido adicional, da mesma forma que Angelica é uma leitora ávida de mitologia. Mas a partir do terceiro capítulo, epónimo do livro, esta narrativa tira-nos por completo o tapete e leva-nos para novos mares, conforme parece dar lugar a uma outra história, em tempos míticos, com Péricles, príncipe de Tiro, a bordo do navio Golfinho, ou ainda quando nos leva, mais à frente, para a Londres dos tempos de Shakespeare.
O poder encantatório da efabulação, das possibilidades da ficção, os ecos da mitologia e o simples e velho prazer de contar e ouvir uma história tomam o leme e conduzem o leitor para águas cada vez mais profundas, onde se redescobre o prazer de ler, de ser completamente mergulhado numa história ao ponto de sairmos dela transformados. Pois, tal como cada uma destas personagens traz em si uma história (por vezes mais do que uma) – histórias que podem aliás revelar a sua verdadeira identidade –, também o leitor irá construir a sua própria história a partir deste vórtice de imaginação que comprova como as histórias mais antigas se podem renovar até ao fim dos tempos. Ver artigo
O Sexo da Música – As surpreendentes ligações entre música e sexualidade, de Étienne Liebig é uma obra original e única, que procura evidenciar uma relação extremamente pessoal mas também universal – procedendo a uma abordagem científica, histórica, psicológica e antropológica – e tão intemporal quanto o tempo de vida da humanidade: «A música, tal como o sexo, é um assunto de corpo e coração; a música, tal como o sexo, é universal.» (p. 11)
O maestro Miguel Graça Moura tomou a iniciativa da tradução, cuja edição foi acolhida pela Temas e Debates e o Círculo de Leitores, e pontua as notas do autor com os seus próprios contributos, ciente da «crescente incultura geral», nomeadamente entre as gerações mais novas, como os estudantes universitários.
Étienne Liebig afirma que a música «é uma vibração que sacode o meio ambiente pondo as moléculas em movimento, como todos os sons.» (p. 13) e que acciona «uma aparelhagem complexa nos nossos ouvidos. Estes transformam a vibração em impulsos elétricos para que diferentes áreas do nosso cérebro os recebam, os leiam e os interpretem segundo diferentes parâmetros para nos dar o sentimento da música.» (p. 17)
Sentimos a música antes de a ouvir e essa sensação é tão cerebral quanto física, como sucede quando de súbito a pele do braço se arrepia e os pêlos se eriçam. O prazer que sentimos com a música vem da identificação da sua complexa estrutura, mas também de dois elementos tão antagónicos quanto centrais à música: a antecipação e a surpresa.
«Os compositores conhecem muito bem este fenómeno da espera que deixa o auditor em estado de transe auditivo («vem, não vem?») e um certo tipo de satisfação quando por fim se ouve o refrão, o chorus, a entrada da orquestra, o ritmo tão esperado.» (p. 18)
A música pode ser um catalisador da memória, como a madalena de Proust, pois como se explica que quando ouvimos certas músicas somos transportados para a idade em que as ouvimos pela primeira vez?
«Esta necessidade de reescutar, seja a mesma coisa, seja algo de semelhante, está ligada à nossa memória auditiva que armazena os timbres, os ritmos, as vozes, as tonalidades que nos deram prazer e que procuramos durante toda a vida com o objetivo de “curtir” de novo. (p. 19)
A ligação entre música e sexo parece natural, mas Étienne Liebig – nascido em Montreuil (França) em 1955, músico, musicoterapeuta de crianças com autismo, animador social, membro de um quarteto de jazz, autor de várias obras e ensaios – é um dos poucos que se dedicou a estudar o assunto: «quando se vê no cinema uma cena erótica, escuta-se um certo tipo de música e não outro. Se se recorda um lugar de sedução e de encontros amorosos, ouve-se mentalmente o baile, a orquestra ou a aparelhagem sonora. As canções falam de amor, de desejo. As estátuas gregas apresentam flautas ou liras na nudez branca do mármore, e quando se lê biografias de músicos de rock (e não só), quase nem é surpresa descobrir nelas apetites sexuais insaciáveis!»
Dividido em três partes, o livro começa por analisar a afinidade fisiológica e psicológica entre o prazer sexual e sensorial de ouvir música, em que o nosso corpo pode ser tocado como um instrumento musical; percorre a história da música desde os primórdios da humanidade, de um ponto de vista antropológico e histórico, procurando demonstrar como em todas as épocas e culturas a música e o sexo estiveram intimamente ligados; e termina com um esboço de um estudo (deixando pontas soltas para futuras leituras) sobre todas as formas de arte – pintura, escultura, dança, teatro, literatura, cinema, ópera, etc. – em que a música exprime a sexualidade. A obra contém ainda breves biografias de músicos e compositores, com revelações e curiosidades surpreendentes, e imensas referências – do erudito ao popular, dos videoclips aos filmes – onde a cultura e o humor são parceiros. Ver artigo
Em O Sexo da Música – As surpreendentes ligações entre música e sexualidade, publicado pelas Temas e Debates, Étienne Liebig afirma que a música «é uma vibração que sacode o meio ambiente pondo as moléculas em movimento, como todos os sons.» (p. 13); «uma vibração que vai acionar uma aparelhagem complexa nos nossos ouvidos. Estes transformam a vibração em impulsos elétricos para que diferentes áreas do nosso cérebro os recebam, os leiam e os interpretem segundo diferentes parâmetros para nos dar o sentimento da música.» (p. 17)
Sentimos a música antes de a ouvir. Recordo-me que quando vivia na Beira sentia no próprio corpo uma espécie de vibração, como se o ar começasse a chegar em ondas, até que efectivamente o som se começava a discernir, vindo de longe, até que, subitamente, como um trovão que estalava no seio da casa, o vidro de uma das janelas (uma das paredes da casa era toda em vidro) começava a estremecer ao som da música, o que significava que ia haver um concerto nessa noite nalgum bairro vizinho e eu teria de conseguir dormir apesar do barulho. A música chega-nos em ondas de som, como quando certos carros passam por nós e o nosso carro estremece e vibra com o som, apesar de quase não conseguirmos ouvir a música com as janelas fechadas.
O prazer que sentimos com a música vem da identificação da sua complexa estrutura, mas também de dois elementos tão antagónicos quanto centrais à música: a antecipação e a surpresa.
«Os compositores conhecem muito bem este fenómeno da espera que deixa o auditor em estado de transe auditivo («vem, não vem?») e um certo tipo de satisfação quando por fim se ouve o refrão, o chorus, a entrada da orquestra, o ritmo tão esperado.» (p. 18)
Em suma, também a música pode ser um catalisador da memória, como a madalena de Proust…
Jonah Lehrer, em Proust era um neurocientista – Como a arte antecipa a ciência (Lua de Papel), num misto de biografia, ensaio e escrita científica, procura demonstrar como a arte antecipou a ciência, através da obra de 8 artistas, designadamente de Proust e a sua famosa madalena, feita de açúcar, farinha e manteiga, que espoleta no narrador a rememoração de todo o seu passado ao longo de 7 volumes. E sabe-se hoje que Proust estava certo, pois está provado que o paladar e o olfacto são os únicos sentidos que se ligam directamente ao hipocampo, o centro da memória de longo prazo do cérebro.
Contudo, se assim é, como se explica que quando ouvimos certas músicas somos transportados para a idade em que as ouvimos talvez pela primeira vez? Aconteceu-me uma vez, com o Concerto para Piano n.º 1 de Tchaikovsky, em que quando um dia o ouvi por acaso num CD que meti no carro, senti-me projectado para a primeira vez que o ouvi, mais de 20 anos antes… Ou hoje, quando ao ouvir um álbum de êxitos de Elton John me lembrei de uma música que não ouvia há mais de 10 anos, sem exagero: Believe… e a forma como, apenas pelos primeiros segundos, consigo reconhecer de imediato e a pele dos meus braços se arrepia e os pêlos se eriçam…
«Esta necessidade de reescutar, seja a mesma coisa, seja algo de semelhante, está ligada à nossa memória auditiva que armazena os timbres, os ritmos, as vozes, as tonalidades que nos deram prazer e que procuramos durante toda a vida com o objetivo de “curtir” de novo. (p. 19) Ver artigo
A Ocupação é o mais recente romance de Julián Fuks, novo autor brasileiro a que convém estar atento, publicado pela Companhia das Letras. É uma narrativa tão breve quanto fulgurante, onde até as páginas em branco, as pausas de respiração entre a leitura e a escrita, parecem representar o que fica por dizer. Cada palavra é pesada e cada frase um encadeamento perfeito de uma autoficção que vai desfiando em prosa poética a história de Sebastián, num momento crítico da sua vida, entre a morte do pai que se faz próxima e a sua própria paternidade. O romance evoca a respiração narrativa de Mia Couto (que surge logo em epígrafe) na primeira frase: «Todo homem é a ruína de um homem, eu poderia ter pensado. Aquele homem que se apresentava aos meus olhos era a encarnação dessa máxima, um ser em estado precário, um corpo soterrado em seus próprios escombros.» (p. 13). Ou, mais à frente: «Era um menino novo demais para ser uma ruína de menino, para ser sua própria ruína.» (p. 14). A influência de Mia é aliás tão presente que o autor vai mesmo trazê-lo para dentro do romance. À parte a sua tragédia, Sebastián tenta dar voz aos outros, seguindo justamente o conselho do seu amigo escritor, vagueando por São Paulo rumo ao Hotel Cambridge, ruína agora ocupada por «moradores sem-tecto» (p. 120), cujas histórias recolhe e narra. Mas a história que mais destaque ocupa será a de Najati, o refugiado sírio.
Ainda que no início, o narrador na primeira pessoa consiga esconder-se sob a máscara de Sebastián, este alter-ego será progressivamente revelado, até ao momento-chave do diálogo entre filho e pai:
«Pai, eu vou ter um filho.
Que notícia linda, Julián. Obrigado por me dizer.
Obrigado a você, pai. Mas aqui você me chama de Sebastián.» (p. 90)
Após este episódio, é cada vez mais comum depararmo-nos com personagens que estão cientes de que aquele é o escritor que ocupa no Hotel «o quartinho do décimo quinto» (p. 95) e que tem por ocupação escrever a história dos outros.
Neste intenso exercício de reescrita da vida, onde é impossível saber onde esta termina para dar lugar à ficção, os vocábulos ruína, ocupação e resistência são recorrentes, revestindo-se a cada página de novo significado. Note-se, em jeito de conclusão, a dissertação do sírio, ao falar do Brasil como país errado para destino de fuga, por viver um «presente em ruínas» (p. 120), tão periclitante como o edifício em ruínas:
«Na ocupação eles insistem que formamos uma família, uma família de refugiados em terra própria ou estrangeira, e isso de início me pareceu estranho, disse Najati. Depois pensei que não poderia haver definição mais precisa. Sim, porque o mundo é feito de infinitos trânsitos, do movimento contínuo de seres. Como a minha, toda família tem, se recuarmos o bastante no tempo, uma infinidade de deslocamentos em sua génese. Toda a humanidade é feita desse movimento incessante, e só existe tal como a conhecemos graças a esses deslocamentos.» (p. 92) Ver artigo
Entre vários livros que têm sido publicados ao longo dos últimos meses e que versam a epidemia global do coronavírus – alguns deles aqui apresentados, como Este vírus que nos enlouquece, de Bernard-Henri Lévy, ou Frente ao Contágio, de Paolo Giordano – é seguro afirmar que este A Pandemia que Abalou o Mundo, de Slavoj Žižek, é uma obra que se demarca. Publicado pela Relógio d’Água, que integra ainda no seu catálogo mais de uma dezena de obras deste psicanalista e investigador de Sociologia na Eslovénia, este é um tratado que versa como o mundo pode vir a despertar desta crise.
Slavoj Žižek argumenta que a pandemia tem vindo, sobretudo, a pôr a nu as fragilidades do nosso sistema, apesar de avisos constantes por parte dos cientistas. A Europa aproxima-se assim do que o autor apelida de “tempestade perfeita”, mediante uma combinação improvável de três diferentes circunstâncias: a epidemia do coronavírus no seu impacto directo, com quarentena, doença e morte; o seu impacto económico (num mundo globalizado que depende fortemente de importações e exportações); e a nova explosão de violência na Síria que provocará uma nova vaga inevitável de migrantes refugiados na nossa direcção.
Da mesma forma que o confinamento social levou a que milhares de pessoas encarassem «a suprema contigência e falta de sentido das nossas vidas» (p. 49) quando, de repente, se viram compelidas a colocar em pausa as suas vidas, conforme o mundo inteiro praticamente parou, o autor mostra uma ténue esperança de que possamos afinal aprender algo com esta crise de modo a repensar o nosso modo de vida. Mais do que isso, o autor advoga, e tem sido «amplamento enxovalhado» por isso (p. 79), que esta crise, tão psicológica quanto económica, seja resolvida com uma nova forma de comunismo. Se o confinamento de todo um país consiste na «concretização da aspiração totalitária mais arrojada» (p. 67), medidas como as que Trump tenta impôr – limitando a liberdade do mercado privado de modo a que todas as empresas se centrem na produção de bens que são agora essenciais, como máscaras, kits de testes, ventiladores – podem representar uma esperança e a forma mais inteligente de tentar evitar um desastre que será, sobretudo, financeiro – na medida em que «numa crise somos todos socialistas».
Slavoj Žižek faz uma acutilante análise de como vários países reagiram à epidemia, entre o espectro do «controlo hierárquico quase total ao estilo chinês», que impediu que se difundisse qualquer informação e, por conseguinte, o pânico, e a «abordagem mais relaxada da “imunidade de grupo”», enquanto quase todos os governos se revelam cada vez mais ineficazes de lidar com a situação, incutindo nos seus cidadãos a responsabilidade de se cingirem à quarentena.
«Por conseguinte, não devíamos perder demasiado tempo com meditações espiritualistas New Age sobre a forma como «a crise do vírus vai permitir que nos foquemos naquilo que realmente importa nas nossas vidas». A verdadeira luta será sobre que forma social vai substituir a Nova Ordem Mundial liberal-capitalista» (p. 113) Ver artigo
No dia 6 de Agosto chega às livrarias Epítome de pecados e tentações, o novo livro de Mário de Carvalho, publicado pela Porto Editora, o que, convenhamos, não é de todo inesperado ou surpreendente, uma vez que o autor tem vindo a publicar a um ritmo regular, principalmente desde A Sala Magenta, em 2008, alternando entre a novela, o conto e o romance, mas também passando pelo ensaio com Quem Disser o Contrário É Porque Tem razão em 2014. Mário de Carvalho, um dos autores mais importantes da nossa literatura na contemporaneidade, regressa ao conto.
Originalmente previsto para ser lançado em Março de 2020, conforme consta na ficha técnica, também este livro se viu forçado a alguns meses de confinamento social pelo que só agora lhe é possível ver a luz e dar o ar da sua graça. Pois, se bem que Mário de Carvalho se revele como um escritor prolífico, praticando os mais diversos géneros, e capaz de uma técnica exímia nos mais diversos estilos – do romance histórico à sátira –, é sobretudo pela fina ironia e pela doce crítica que os seus contos se destacam.
Dividido em 3 partes, este livro é constituído por 11 breves narrativas: na primeira parte, poderemos considerar que as duas narrativas são novelas, dada a sua extensão; na segunda parte, temos 8 narrativas mais curtas, contos cuja dimensão varia entre as 8 a 4 páginas; e na terceira parte, um único conto.
Pode ler-se na contracapa que este é um livro «de pecados que pedem total absolvição», todavia a venialidade do venéreo é, também, substituída por uma certa banalidade do mal, pois estes «Fascínios, inquietações e sobressaltos nas relações entre homens e mulheres» que entretecem as várias narrativas, formando um mosaico de adultério e leviandade, parecem ser mais a norma do que a excepção nos casamentos e nos relacionamentos modernos. Ver artigo
Fernão de Magalhães – O Homem que se Transformou em Planeta, uma edição da Imprensa Nacional Casa da Moeda, com texto de Luís Almeida Martins e ilustrações de António Jorge Gonçalves, assinala a comemoração dos 500 anos da viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães.
Para contornar o problema de ter de escrever sobre uma personagem histórica de há 5 séculos, o autor-narrador contorna o problema, evocando o fantasma de Fernão de Magalhães ou o espectro da sua memória para contar, na primeira pessoa, como se tornou no português mais famoso de todos os tempos, neste planeta e noutras esferas vizinhas: «Tão famoso, tão famoso, que o seu nome foi dado a uma galáxia, a uma sonda espacial, a um sistema de GPS, a um modelo de computador, a uma grande cratera de Marte, a um estreito entre dois oceanos, a uma baía, a navios e a aviões da realidade e da ficção»… Deu nome também a uma nave espacial. E ganhou novas vidas como protagonista de jogos de computador. Da mesma forma que na sua viagem em torno do globo, foram apelidando esse novo mundo: os habitantes de pés grandes que foram apelidados de patagões, e a sua terra de Patagónia; ou a Terra do Fogo, com as montanhas brilhantes de fogueiras pelos patagões; ou o Oceano Pacífico, assim apelidado pelo nosso herói pela calmaria daquele imenso mar do Sul até então desconhecido pelos navegadores europeus; ou ainda a uma subespécie de pinguins.
A primeira metade do livro é sobre a vida de Fernão de Magalhães, ainda antes de se tornar planeta. De pajem da corte a soldado aos 25 anos, partindo em 1505 na direcção da zona das especiarias, até aos confins das malucas das ilhas Molucas, onde nascem a pimenta, a canela, a noz moscada e, sobretudo, o cravinho, tão capazes de enriquecer uma pessoa como de a enlouquecer, pois com uma só saca desse produto, se conseguisse regressar à pátria, poderia comprar uma casa ou uma quinta e viver sem nada fazer para o resto dos seus dias.
Com um certo revisionismo histórico, Fernão de Magalhães, agora narrador, tão depressa explica aos mais jovens as suas façanhas, num registo que lhes seja familiar (onde não falta um pequeno dicionário para as várias figuras históricas, locais e outros aspectos), como revela contrição pela forma como se fez a expansão do Império: «O pior eram as violências cometidas pelos nossos, quase sempre em nome da “verdadeira” religião», mas quando estamos metidos nas coisas nem sempre é fácil distinguir o que está bem do que está mal». Da mesma forma que tem um «nó atravessado na goela que nunca se desfez», por se ver rejeitado por D. Manuel I, O Venturoso (mais conhecido por Merceeiro noutros reinos europeus), vendo-se obrigado a bater à porta do reino vizinho, onde Carlos I lhe concede o patrocínio de uma frota e sua tripulação – e passando a ser acusado de traidor pelos portugueses.
Este livro não se esquiva às polémicas que envolvem a proclamação da viagem da circum-navegação: polémica que dura até aos nossos dias, quando a candidatura à UNESCO deste feito, enquanto património mundial, foi apresentada por Portugal e por Espanha. Se Fernão de Magalhães morre em 1521, sendo Elcano quem completa a viagem «um pouco por acaso», a verdade é que ele tinha ultrapassado entretanto a longitude das Molucas do Sul, onde já estivera antes, em 1512, e chegado às Filipinas pela via do oeste, descendo ao longo da América do Sul. E, claro, a condizer harmoniosamente com o texto cuidado e a aturada pesquisa, estão as ilustrações em tons quentes (recorre-se quase exclusivamente ao azul e ao laranja), que bebem do imaginário da época e, conforme a viagem se desenrola, podemos seguir o seu percurso num planisfério miniatura que assinala a rota percorrida naquelas páginas. Para cúmulo, a sobrecapa do livro transforma-se em mapa.
Em suma: mais do que um livro didáctico, colado às fontes, resulta desta história um fantástico relato de aventuras além-mar, que procura romper uma visão quadrada do mundo. Ver artigo
A música de Max Richter é um oxímoro. Se, por um lado, parece inconfundível, com acordes e um minimalismo gradativo facilmente reconhecível, é, por outro lado, sempre desafiante, inovando de álbum para álbum.
Em Recomposed adapta Vivaldi numa espécie de versão em loop (o que não deixa de ser fabuloso).
Em Sleep criou um álbum de oito horas que intenta proporcionar um estado de relaxamento profundo, indutor de sono (eu chamo-lhe a minha música de avião, quando nas viagens intercontinentais tento obrigar-me a dormir).
Em Three Worlds – Music from Woolf Works, não só resgata a voz de Virginia Woolf como ainda cria uma banda sonora para 3 dos seus principais romances (Mrs. Dalloway; Orlando; The Waves).
No seu mais recente álbum, Voices, Max Richter dá agora voz à Declaração dos Direitos Humanos, em várias vozes, nas mais diversas línguas.
«All human beings are born free and equal»
Assim começa este álbum… e perguntamo-nos, conforme a voz se silencia e a música se propaga nas suas usuais ondas de som, onde é que este senhor quer chegar desta vez… E conforme, ao longo dos vários movimentos, continuamos a ouvir cada um dos artigos da Declaração dos Direitos Humanos, percebemos que, afinal, essa é a pergunta que o compositor nos está a colocar: vejam o mundo a que chegaram e pensem para onde querem ir agora a partir daqui… Ver artigo
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