Madalena, de Isabel Rio Novo, autora publicada pela Dom Quixote, venceu o Prémio Literário João Gaspar Simões 2016 com este novo romance, confirmando-se como uma das grandes vozes da ficção portuguesa contemporânea. Ver artigo
Em junho deste ano, foi publicada a biografia de José Cardoso Pires, intitulada Integrado Marginal, publicado pela Contraponto. Resultado de três anos de trabalho do premiado escritor Bruno Vieira Amaral, representa o terceiro volume da coleção de Biografias de Grandes Figuras da Cultura Portuguesa Contemporânea, onde figuram O Poço e a Estrada – Biografia de Agustina Bessa-Luís, de Isabel Rio Novo (já apresentada no Cultura.Sul). A sinopse do livro dá bem conta de como Cardoso Pires foi visto de formas tão desencontradas: «Notívago, boémio, brigão. Receoso de que a imagem pública lhe ensombrasse os méritos literários. Crítico do marialvismo. Acusado de ser marialva. Bem relacionado. Obcecado com a própria independência. O maior escritor da segunda metade do século XX. Um escritor datado e sem a mesma projeção internacional de um Lobo Antunes ou de um Saramago. Um espírito insubmisso. Um casamento duradouro. A convicção e a crença no próprio trabalho.» Ver artigo
Se a biografia de Agustina (aqui apresentada o ano passado com entrevista à autora) pode ser lida com o enlevo de um romance, e se no romance anterior (também aqui recenseado) se cruzava ficção e ensaio, Isabel Rio Novo dá agora um novo passo no seu percurso romanesco, confirmando-a uma vez mais como uma nova voz da literatura portuguesa contemporânea, e presenteia-nos com o que poderíamos tentar definir como um romance biográfico, mas que se esquiva, como os livros anteriores, a ser classificado numa só categoria.
Escrever um quadro
No início do romance deparamo-nos com uma mulher velha, de longos cabelos grisalhos, que, todas as tardes, pouco tempo antes de o Instituto de Arte de Chicago fechar, costuma entrar na ala impressionista e postar-se a olhar para os rostos num quadro. A explicação é prometida para quem chegar ao final do romance…
Imediatamente após esse breve preâmbulo, a narrativa começa num sábado de Inverno em 1877 com o jovem Gustave Caillebotte a instalar-se naquela que hoje é a praça de Dublin, numa confluência de ruas, onde intenta capturar uma cena da vida parisiense na sua tela. «Gustave é um homem de estatura mediana, magro, de cabelo castanho-claro. Os olhos são cinzentos ou esverdeados, as mãos, mais ásperas do que a suavidade das feições ou as roupas de boa qualidade deixariam supor.
A Autora recorda estas coisas assim, como se as visse, porque na realidade as viu, ou sente que as viu.» (p. 12)
A partir daqui está dado o mote do romance, que passa a alternar entre a narrativa da vida de um jovem aspirante a pintor e a Autora, que se assume claramente como a fonte criadora desta história, ainda que se refira a documentação e as exposições por parte de Helena, professora de história de arte, sobre a vida de Gustave.
«Poderíamos principiar antes, mas há sempre um tempo que definimos como o início. A Autora gosta de pensar que foi ela quem definiu o princípio desta história e que nem Helena, que lhe cedeu documentos, nem as circunstâncias da vida, que lhe permitiram escrever durante um ano inteiro, pesaram nessa decisão.» (p. 20)
E deste ponto em diante, inicia realmente a história de vida de Gustave, contada a partir das gerações que o antecederam, nomeadamente com o bisavô Pierre.
A Autora e a autora
A Autora pode ser considerada como a mesma Isabel Rio Novo que assina a autoria do livro, que ao longo da narrativa irá relacionando a história da vida de Gustave com a história da sua própria vida, não se esquivando a contar-nos episódios mais privados da sua vida. Essa alternância entre as memórias (re)criadas da personagem e as memórias (re)criadas da Autora permanece ao longo de todo o romance, mesmo quando a relação entre as duas situações parece apenas indirecta.
Um leitor atento que siga a autora nas redes sociais, designadamente no Facebook, incorrerá nessa tentação indiscreta de confundir esses episódios potencialmente autobiográficos com a realidade íntima de quem os viveu. Por exemplo, quando a 19 de Julho de 1870 a França declara guerra à Prússia e Gustave recebe a convocatória para ingressar na Guarda Nacional, sendo confrontado com a possibilidade de morrer, no parágrafo seguinte pode ler-se isto: «Cerca de um século e meio depois, também a Autora deste livro recebeu nas mãos o peso de um documento que convocava a sua mortalidade. Em rigor, não era um documento, mas um pequeno conjunto de películas e papéis. Falavam todos dela; não dela toda, de partes, e não dela apenas, de algo mais que se instalara no seu corpo.» (p. 64)
Como se pode ler noutra passagem: «Na verdade, não é de descartar que na história de Gustave Caillebotte a Autora deste livro procure a sua própria história» (p. 170)
Narrativa pós-moderna
De um jeito pós-moderno, o narrador (ou narradora), que curiosamente não adopta a primeira pessoa, assume claramente que pode desviar os acontecimentos como bem entende, impondo-se de forma omnipotente. A Autora ora lembra-se, ora imagina, ora rompe decididamente com os factos e deixa a sua criatividade seguir outro rumo. Mas nem sempre é omnisciente, como quando se interroga ao ver Gustave em jovem: «O rapaz leva no dorso o vigor, a flexibilidade, a frescura de pele, que o resguardam de todas as máculas. Tem nos olhos o brilho dos dias intermináveis. Pode todos os sonhos. Desconhece todas as dificuldades. Que quererá ele, interroga–se a Autora, vendo-o avançar descalço sobre a relva?» (p. 44)
Existem inclusive outras personagens que transitam por este romance que poderiam ser mais apelativas, mas é Gustave que fascina a Autora, a quem chama de «seu amigo», sendo que «a sua relação com Gustave Caillebotte excedia o interesse de uma romancista por uma personagem» (p. 49). Essa paixão, «maneira de dizer», é, como todas as paixões, um sentimento privado, mas nem por isso secreto: «a Autora surpreendeu-se com o modo como Helena parecia muito ao corrente do seu interesse por Gustave Caillebotte, embora, em seu redor, não fizesse segredo dos livros de arte que colecionava nem das viagens que empreendia para visitar museus. Talvez todos os que a cercavam soubessem. Talvez até os seus alunos percebessem a emoção que a percorria quando, nas aulas de literatura, a pretexto de um qualquer poema, projetava pinturas de Gustave Caillebotte, procurando ser sucinta e objetiva nas aproximações que entretecia, mas percebendo, pelos olhares de simpatia que recebia dos adolescentes, que se denunciava forçosamente» (p. 28).
Há inclusivamente passagens em que a Autora reconhece que pode estar a filtrar a realidade pelos olhos da personagem que incorpora e interioriza, como no seguinte exemplo: «Mas as florestas, as pradarias cobertas de trevos, as macieiras floridas, as veredas relvadas, as vilas pitorescas erguidas nos declives e quase inclinadas sobre o mar, eram tão parecidas com as que Gustave Caillebotte representara que a Autora chegou a perguntar-se se o que via não seria pintado pelo olhar do seu amigo.» (p. 20)
O foco sobre a realidade pode oscilar entre a câmara que regista como um filme ou a tela em que a descrição corresponde a pinceladas, temas e reflexos, como é próprio da pintura. Aliás, refere-se, a dada altura, que a Autora, por nunca ter pintado, procura escrever «como quem tentava desenhar, buscando beleza nas ideias, nas construções, na melodia das palavras» (p. 73).
Desdobrar-se em personagens
Para terminar, e voltando a Helena, há diversos momentos em que nos é dado a entender que, malgrado o desconforto da Autora em relação à professora de história de arte, a relação entre as duas é mais inequívoca do que a própria Autora gostaria de confessar, insinuando-se no leitor a possibilidade de Helena materializar um alter-ego, pois afinal é ela quem auxilia a Autora no seu processo de escrita, informando-a e documentando-a:«a Autora observava a mulher sentada à sua frente. De repente, Helena era tão parecida consigo que se diriam irmãs. Os mesmos cabelos castanhos e finos, caídos sobre os ombros, os mesmos lábios cheios, os mesmos olhos grandes. Só que os de Helena eram um castanho e o outro verde. Um como os seus, pensava a Autora, o outro como os de Caillebotte. Sim, eram parecidas.» (p. 49)
Isabel Rio Novo, doutorada em Literatura Comparada, nascida no Porto, lecciona Escrita Criativa e outras disciplinas, como História de Arte (à semelhança de Helena…), no âmbito da arte, da literatura, do cinema. Foi finalista do Prémio Leya por dois anos consecutivos, em 2016 com o Rio do Esquecimento, e em 2017.
Rua de Paris em Dia de Chuva pode definir-se como uma biografia romanceada de um milionário excêntrico, mecenas dos impressionistas, coleccionador de arte, indivíduo multifacetado, pintor vanguardista; mas é também uma elegia a uma época e à cidade de Paris, conforme a cidade da luz passa por sucessivas revoluções, pela industrialização e pela modernização; é um romance magnífico de pujança narrativa, que dialoga com a arte e a vida, onde confluem diversos aspectos – tal como, no quadro que dá nome ao livro, as várias ruas que convergem –, alguns bastante caros ao pós-modernismo – há inclusivamente um piscar de olho ao leitor, quando na biblioteca de René se encontram livros europeus com títulos extravagantes como «La fièvre des âmes sensibles ou Rivière de l’oubli» (p. 128). E tal como o quadro depende de um observador, este livro depende da perspectiva de quem lhe é exterior, como no pormenor da capa, alguém que está deste lado, «à esquerda das personagens, na porção do quadro que não se vê» (p. 224).
«A vida de Agustina era a escrita» – Entrevista a Isabel Rio Novo
O Poço e a Estrada – Biografia de Agustina Bessa-Luís, de Isabel Rio Novo, publicado pela Contraponto, lê-se como um romance. Contudo, apesar de nos últimos anos serem várias as biografias romanceadas ou os romances que se assumem como biografias, é um erro assumir O Poço e a Estrada como tal. A biógrafa rodeou-se de documentos e depoimentos, de fotografias, visitou os lugares por onde a própria Agustina transitou, leu e releu a obra de Agustina – destrinçando o quanto ela contém de episódios factuais da vida da escritora –, citando-a sempre que possível, como quem recupera a voz da autora para contar a sua própria história, a real e a recriada. Quando a autora não é detentora de uma resposta inequívoca, aventura várias hipóteses, para que o próprio leitor se decida pela que lhe convir. Se há laivos de romance nestas 416 páginas (não contando com notas e índice remissivo) é pelo lirismo da prosa de Isabel Rio Novo. O título é retirado da obra O Manto, de Agustina, e proliferam no livro as citações da autora e da sua obra em epígrafe, no corpo do próprio texto, bem como a relação entre a sua escrita e a sua própria vida, da forma como a vida dá corpo à ficção agustiniana.
Isabel Rio Novo, nascida no Porto, é mestre em História da Cultura Portuguesa e doutorada em Literatura Comparada. Professora universitária e investigadora, lecciona disciplinas como História da Arte, Estudos Literários, Escrita Criativa. Em diversos momentos desta biografia, a biógrafa não se esquiva aliás a traçar um panorama geral cultural do Portugal em que Agustina viveu e avança com a sua própria análise crítica do contributo prestado à literatura pelas obras de Agustina, da novidade que constituíram, das influências que evocam.
A obra de Agustina não é fácil de ler, e assim tem sido referido desde o início pela crítica, apesar de A Sibila chegar a fazer parte dos programas do secundário e ter encantado a sua quota parte de leitores.
Conforme será referido na entrevista, esta biografia, apesar de aguardada com expectativa, tem sido igualmente recebida com alguma polémica. O editor da Contraponto, Rui Couceiro, tenta justamente destrinçar essa confusão no Jornal de Letras (10 a 23 de Abril), em resposta às acusações tecidas por Mónica Baldaque, a filha de Agustina, numa entrevista ao semanário Sol, em que acusa e censura o trabalho da biógrafa aqui entrevistada, cuja candidatura a membro do Círculo Agustina Bessa-Luís foi inclusive negada em Outubro de 2018.
Agustina nasceu em Vila Meã no dia 15 de Outubro de 1922. No início de 2007, terá sofrido o primeiro de um conjunto de micro-acidentes vasculares cerebrais. O seu último romance, A Ronda da Noite, surgiu no final de 2006 e pode ter dado origem ao filme homónimo de Peter Greenaway (Nightwatching, no original), realizado no ano seguinte.
Agustina Bessa-Luís deixa-nos uma obra com mais de cinquenta títulos, entre romances, contos, biografias, ensaios, livros de memórias, num constante diálogo com a memória, com a literatura, com a história, numa escrita pouco popular, nada convencional, labiríntica, a pedir tempo e dedicação, frequentemente pontuada de aforismos e máximas que se tornaram uma célebre imagem de marca.
O Poço e a Estrada inaugura uma coleção de biografias de grandes figuras do século XX por autores romancistas, com a chancela da Contraponto.
Até que ponto o acto de biografar alguém é também um acto de antropofagia? Até que ponto é que o biógrafo, neste caso a biógrafa, corre o risco de se perder na vida da biografada e como se ressurge de uma vida assim?
Logo à partida compreendi que o risco e o desafio eram enormes, pela dimensão da pesquisa que se impunha, pelas múltiplas vertentes em que se investiu a minha biografada, pela minha própria admiração pela obra de Agustina. Tudo isso tornou este percurso apaixonante e realizado com muito gosto, mas também muito exigente, cansativo e desafiante. Ressurge-se do mergulho numa vida assim assumindo que o trabalho está feito, que é preciso despedirmo-nos dele e partirmos para o seguinte, compreendendo que nenhuma narrativa de uma vida humana é definitiva e que, como disse Agustina, no final de algo, “o que resta é sempre o princípio feliz de alguma coisa”.
Alguém escreveu que a biógrafa evidencia contenção emocional mas permitimo-nos discordar. Numa contemporaneidade em que a ficção literária cruza ensaio e autobiografia, é justo também sentirmos esta biografia como uma autobiografia?
Penso que a intenção do editor Rui Couceiro, ao convidar para esta coleção de biografias de grandes figuras do século XX autores romancistas, era fazer com que estas narrativas biográficas, mais do que meras resenhas cronológicas ou repositórios de factos, pudessem ser lidas como literatura de não ficção. Identifico-me completamente com o posicionamento daqueles que defendem que o biógrafo deve deixar transparecer a sua sensibilidade, o seu olhar, a sua presença, e não ter receio de estabelecer uma relação afetiva com o biografado e com os factos narrados. François Dosse, um biógrafo francês que aprecio, fala mesmo da importância da encenação da relação entre o biógrafo e o biografado. Por isso, não receei colocar-me no livro; pelo contrário, assumi essa postura, que para mim era a única que fazia sentido. O que, no entanto, me parece perfeitamente compatível com a contenção emocional, já que procurei evitar grandes derrames de subjetividade e não cair na lamechice. Quanto aos rótulos e à discussão sobre géneros, deixo-a para os críticos e os teóricos…
A Isabel revela-nos sobre si, e mesmo quando tenta a imparcialidade, em momentos menos bons da vida de Agustina, sente-se a sua admiração pela escritora ao mesmo tempo que desvela um pouco de si própria. Considera que esta biografia foge aos moldes, porque se quebraram as regras da biografia assim como as do romance, ou não foi pensado dessa forma?
Pois, voltamos à questão dos géneros e das classificações. Como romancista, é verdade que, à semelhança de muitos autores que escrevem na atualidade, me interessa cada vez mais apagar as fronteiras entre romance, biografia, ensaio, explorar os limites da ficção e da não ficção. Ao fim e ao cabo, penso que ao leitor interessa sempre mais a qualidade do que vai ler do que a sua catalogação. No caso da escrita biográfica, quanto a mim, o escritor deve assumir uma responsabilidade para com a verdade que não anule a imaginação.
Calculo que tenha sido um trabalho árduo, não só por ouvir tantas partes, como pesquisar as mais variadas fontes documentais, e reler toda a obra da autora. Como se mantém o norte num projecto destes?
Como em qualquer projeto de investigação que se pretende extensivo e rigoroso. Definindo um cronograma e uma metodologia, ainda que depois esse cronograma e essa metodologia sejam progressivamente reequacionados à medida que o trabalho progride.
Qual foi a sua rotina de trabalho? A sua metodologia?
Comecei por reunir os documentos e ficheiros que possuía sobre a obra de Agustina, já que venho trabalhando sobre ela em contexto universitário desde o início do milénio. Em seguida, recolhi todas as parcelas de informação que fui encontrando: resenhas biográficas, entrevistas que Agustina concedeu e outras peças jornalísticas sobre a escritora, documentários, registos oficiais, sendo que uns iam fornecendo pistas para procurar outros. Ao mesmo tempo, elaborei um plano de entrevistas. Não consegui entrevistar todas as personalidades que constavam dessa lista inicial. Em contrapartida, muitas vieram ter comigo por sua iniciativa. E muitas não me ofereceram apenas entrevistas ou depoimentos. Franquearam-me os seus arquivos privados, disponibilizaram correspondência e outros documentos raros, chamaram-me a atenção para publicações obscuras, escritos dispersos e ocasionais, sugeriram-me outros entrevistados. A consulta da correspondência de Agustina, espalhada por diversos arquivos e espólios, foi determinante para a compreensão da faceta mais privada da autora, por assim dizer. Procurei também conhecer ou revisitar os cenários mais importantes da vida da minha biografada. A visita aos lugares é muito importante para mim, mesmo quando escrevo um romance.
A biografia concretiza-se sem o aval da família, constando-se aliás que a Relógio d’Água que comprou os direitos da autora à Babel, numa situação bastante polemizada, já encomendou uma biografia oficial ao historiador Rui Ramos. Este constrangimento parece, aliás, ter-lhe conferido liberdade, apesar de não poder beneficiar do acesso ao arquivo familiar da autora. O que nos pode dizer sobre esta não-autorização?
Em relação à cronologia dos factos relativos a edições e ao posicionamento da família de Agustina, não tenho nada a acrescentar ao que o editor Rui Couceiro explicou recentemente no Jornal de Letras, aliás, de forma cabal e inequívoca. No que respeita à não autorização propriamente dita, apenas posso dizer que a encarei não como uma interdição, mas como um estímulo. Sobre a obra e a vida de Agustina Bessa-Luís podem e devem escrever-se várias biografias, porque a sua vida e obra extraordinárias assim o justificam. Como tenho dito várias vezes, cá estarei para ler todas as que forem surgindo.
Pode esta biografia levar a outros textos? Surgiram-lhe outros projectos?
Nunca se pode dizer que um livro não possa dar origem a outros textos. Neste momento, por exemplo, dei por concluído um romance que estabelecerá pontes com um conto que publiquei há algum tempo e que creio que dará origem a outra narrativa. No que toca a Agustina, de concreto, para já, há apenas o projeto de gizar o plano de uma comunicação para um congresso acerca das relações entre Agustina, Sophia e Jorge de Sena.
Apesar de termos quase 100 páginas de notas, e um índice remissivo, sente-se a falta de uma fotobiografia e de uma bibliografia da autora. Estas hipóteses foram levantadas pela editora?
Não incluir no livro uma iconografia foi opção do editor, opção que, aliás, se estenderá aos restantes volumes da coleção. A questão do índice de obras da autora foi equacionada, mas optou-se por não a incluir, ainda que não esteja posta de parte a hipótese de fazermos esse e outros ajustes em futuras reedições.
A dada altura, o fôlego da biografia parece perder-se, mas não a narrativa nem a riqueza da informação. Será que Agustina, deixando-nos tão magnífico legado, com mais de 50 obras, vivia tão devotada à escrita que pode ter passado ao lado da vida?
Parece? Não senti isso, confesso. A vida de Agustina era a escrita, como a própria admitiu e esclareceu, muitíssimas vezes. A rotina de trabalho que consolidou ao fixar-se definitivamente no Porto, nos anos 70, implicava uma dedicação total à escrita, uma entrega de natureza quase mística, com a relegação para segundo plano de tudo o resto. Por isso, ao lado da vida, pelo menos tal como ela a entendia, Agustina não passou, certamente.
Percebe-se no texto, mas gostava de saber qual é a sua obra favorita de Agustina?
No capítulo final, refiro alguns dos meus livros favoritos de Agustina: Um Cão que Sonha, Embaixada a Calígula, Fanny Owen, Homens e Mulheres, A Ronda da Noite. Tenho de escolher só um? Vou fazer batota, e escolher dois. Fanny Owen foi, até 2006, o meu favorito. Tem tudo para me agradar: a sombra de Camilo, a revisitação do imaginário romântico, grandes temas agustinianos, como o das pulsões misteriosas que comandam as personagens, e implicitamente, até Manoel de Oliveira, que o adaptou para cinema. Mas em 2006 surgiu o extraordinário A Ronda da Noite, repleto de enigmas e de ressonâncias autobiográficas, o que, para uma biógrafa…
Não posso, antes de escrever sobre o livro, deixar de recordar uma amiga que me dizia que nunca, em várias tentativas, conseguiu persistir na leitura de A Montanha Mágica, pois a partir da página 100, e consoante a descrição do ambiente no sanatório se torna mais vívida, esta minha amiga é acometida por insistentes ataques de tosse numa qualquer reacção psicossomática que acabou por criar aversão ao livro.
Mas não quero com esta história, um pouco solta, desdourar o prazer desta leitura.
Isabel Rio Novo, doutorada em Literatura Comparada, nascida no Porto, lecciona Escrita Criativa e outras disciplinas no âmbito da arte, literatura, cinema, com alguns contos e outros romances publicados, sendo finalista do Prémio Leya por dois anos consecutivos, em 2016 com o Rio do Esquecimento, e em 2017 com este livro, publicado pela Dom Quixote.
Na senda de outros autores recentemente apresentados, a autora cruza ficção com não-ficção, ensaio com documento, ciência com literatura, e inicia esta narrativa numa voz que enganosamente se assume na primeira pessoa, como um tuberculoso de vinte e três anos. Contudo logo em seguida a narrativa é quase toda feita a partir de um narrador externo, desfiando a história de uma família portuguesa na primeira metade do século XX, composta por três irmãos. Mas este eu que surge logo no início do romance, percebemos que é afinal Armando, que mais tarde dará entrada no Grande Sanatório do Caramulo, o que não pode deixar de evocar a memória de Hans Castorp de Thomas Mann naquela que é uma das obras-primas da literatura mundial. Entretanto, este narrador na primeira pessoa refere, recorrentemente, uma «rapariga» que visitou «ruínas» e «coleciona histórias de tuberculosos» (p. 16), rodeada de páginas de documentos e ensaios, como o da «ideia romântica da tuberculose e os escritores portugueses que foram suas vítimas» (p. 16). A autora entretece a narrativa com um levantamento da tuberculose, um dos principais flagelos da época, ao mesmo tempo que faz uma apreciação sucinta da forma como a doença afectou escritores portugueses e brasileiros da altura, que padeceriam dessa doença ou seriam tocados pelas suas asas. Revivificam-se nestas páginas nomes como António Nobre ou Júlio Dinis.
Para complicar um pouco mais, a narrativa está ainda pontuada por considerações histórias de como a doença foi sendo considerada ao longo do século, conforme o conhecimento sobre o seu diagnóstico e cura ia evoluíndo, com particular destaque para as citações extensas de um texto intitulado «Considerações sobre a morte, alinhavadas por R. N.» – note-se as iniciais, idênticas às do apelido da autora.
A autora disserta em torno desta «peste branca», a «doença que todos receavam» (p. 92), considerando como inclusivamente a tuberculose era muitas vezes vista, de início, como uma melancolia ou um torpor que acometia sobretudo os mais sensíveis, como poetas e escritores.
«A tuberculose não era, afinal, a febre das almas sensíveis. Era a doença das multidões operárias das cidades, trabalhando mais do que o permitido por lei, amontoadas em mansardas sem esgotos, exaustas e mal alimentadas. Era a doença dos sobreviventes das guerras, estropiados, desnutridos, desprovidos de tratamento, deambulando pelas ruas com quadros graves de primoinfecção. Era a doença das sociedades miseráveis. E Portugal era uma sociedade miserável.» (p. 92)
A doença da tuberculose, ainda sem tratamento médico e farmacológico adequado, representa um mal maior, permitindo à narrativa efectuar um diagnóstico político e social de Portugal. Este romance, onde a febre se reveste de significados distintos, e causas diversas, como a da paixão ou a do fibrilar de uma mente mais sensível, mas sobretudo como sintoma de doença, é um retrato de uma época e de um país doente, mesquinho por vezes, apesar de se ter fechado em si para evitar flagelos exteriores como a Segunda Guerra, sob o jugo do punho forte ou tirânico de Salazar, que era aliás uma visita regular do Sanatório do Caramulo. A Guerra Civil de Espanha e a Segunda Grande Guerra, aliás, traziam para a serra portuguesa «tuberculosos abastados dos grandes sanatórios europeus» (p. 102), sendo a Madeira outro espaço eleito para a cura desta doença.
Mas não se pense que se sai destas páginas com sintomas de tosse convulsa ou de algum sentimento de finitude secular mais adequado à morbidez ultra-romântica. Sai-se sim com a confirmação de que esta jovem autora é uma das novas vozes a reter na literatura portuguesa contemporânea.
Mas não quero com esta história, um pouco solta, desdourar o prazer desta leitura.
Isabel Rio Novo, doutorada em Literatura Comparada, nascida no Porto, lecciona Escrita Criativa e outras disciplinas no âmbito da arte, literatura, cinema, com alguns contos e outros romances publicados, sendo finalista do Prémio Leya por dois anos consecutivos, em 2016 com o Rio do Esquecimento, e em 2017 com este livro, publicado pela Dom Quixote.
Na senda de outros autores recentemente apresentados, a autora cruza ficção com não-ficção, ensaio com documento, ciência com literatura, e inicia esta narrativa numa voz que enganosamente se assume na primeira pessoa, como um tuberculoso de vinte e três anos. Contudo logo em seguida a narrativa é quase toda feita a partir de um narrador externo, desfiando a história de uma família portuguesa na primeira metade do século XX, composta por três irmãos. Mas este eu que surge logo no início do romance, percebemos que é afinal Armando, que mais tarde dará entrada no Grande Sanatório do Caramulo, o que não pode deixar de evocar a memória de Hans Castorp de Thomas Mann naquela que é uma das obras-primas da literatura mundial. Entretanto, este narrador na primeira pessoa refere, recorrentemente, uma «rapariga» que visitou «ruínas» e «coleciona histórias de tuberculosos» (p. 16), rodeada de páginas de documentos e ensaios, como o da «ideia romântica da tuberculose e os escritores portugueses que foram suas vítimas» (p. 16). A autora entretece a narrativa com um levantamento da tuberculose, um dos principais flagelos da época, ao mesmo tempo que faz uma apreciação sucinta da forma como a doença afectou escritores portugueses e brasileiros da altura, que padeceriam dessa doença ou seriam tocados pelas suas asas. Revivificam-se nestas páginas nomes como António Nobre ou Júlio Dinis.
Para complicar um pouco mais, a narrativa está ainda pontuada por considerações histórias de como a doença foi sendo considerada ao longo do século, conforme o conhecimento sobre o seu diagnóstico e cura ia evoluíndo, com particular destaque para as citações extensas de um texto intitulado «Considerações sobre a morte, alinhavadas por R. N.» – note-se as iniciais, idênticas às do apelido da autora.
A autora disserta em torno desta «peste branca», a «doença que todos receavam» (p. 92), considerando como inclusivamente a tuberculose era muitas vezes vista, de início, como uma melancolia ou um torpor que acometia sobretudo os mais sensíveis, como poetas e escritores.
«A tuberculose não era, afinal, a febre das almas sensíveis. Era a doença das multidões operárias das cidades, trabalhando mais do que o permitido por lei, amontoadas em mansardas sem esgotos, exaustas e mal alimentadas. Era a doença dos sobreviventes das guerras, estropiados, desnutridos, desprovidos de tratamento, deambulando pelas ruas com quadros graves de primoinfecção. Era a doença das sociedades miseráveis. E Portugal era uma sociedade miserável.» (p. 92)
A doença da tuberculose, ainda sem tratamento médico e farmacológico adequado, representa um mal maior, permitindo à narrativa efectuar um diagnóstico político e social de Portugal. Este romance, onde a febre se reveste de significados distintos, e causas diversas, como a da paixão ou a do fibrilar de uma mente mais sensível, mas sobretudo como sintoma de doença, é um retrato de uma época e de um país doente, mesquinho por vezes, apesar de se ter fechado em si para evitar flagelos exteriores como a Segunda Guerra, sob o jugo do punho forte ou tirânico de Salazar, que era aliás uma visita regular do Sanatório do Caramulo. A Guerra Civil de Espanha e a Segunda Grande Guerra, aliás, traziam para a serra portuguesa «tuberculosos abastados dos grandes sanatórios europeus» (p. 102), sendo a Madeira outro espaço eleito para a cura desta doença.
Mas não se pense que se sai destas páginas com sintomas de tosse convulsa ou de algum sentimento de finitude secular mais adequado à morbidez ultra-romântica. Sai-se sim com a confirmação de que esta jovem autora é uma das novas vozes a reter na literatura portuguesa contemporânea.
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