Em junho deste ano, foi publicada a biografia de José Cardoso Pires, intitulada Integrado Marginal, publicado pela Contraponto. Resultado de três anos de trabalho do premiado escritor Bruno Vieira Amaral, representa o terceiro volume da coleção de Biografias de Grandes Figuras da Cultura Portuguesa Contemporânea, onde figuram O Poço e a Estrada – Biografia de Agustina Bessa-Luís, de Isabel Rio Novo (já apresentada no Cultura.Sul). A sinopse do livro dá bem conta de como Cardoso Pires foi visto de formas tão desencontradas: «Notívago, boémio, brigão. Receoso de que a imagem pública lhe ensombrasse os méritos literários. Crítico do marialvismo. Acusado de ser marialva. Bem relacionado. Obcecado com a própria independência. O maior escritor da segunda metade do século XX. Um escritor datado e sem a mesma projeção internacional de um Lobo Antunes ou de um Saramago. Um espírito insubmisso. Um casamento duradouro. A convicção e a crença no próprio trabalho.»

Biografia escrita com um certo pendor narrativo, que embala o leitor logo de início, sem, no entanto, romancear, pois o autor da biografia é aqui praticamente invisível, a não ser por uma fina ironia que o denuncia em diversos momentos, com ligeiras notas de humor. Por exemplo, quando o biografado vinga o falecido irmão a propósito de uma nota inconveniente de um repórter: «Cardoso Pires descobriu quem tinha sido o autor da brincadeira, foi à sua procura e deu-lhe um enxerto de porrada no Chiado (aparentemente, o Chiado era o palco preferencial para espancar jornalistas e críticos).» (p. 132). Ou quando se narra como Cardoso Pires terá feito, «ao melhor estilo marialva, um avanço a uma senhora» (p. 245) que estava acompanhada do marido que, entretanto, foi aterrar em cima do piano da boate. A alusão ao machismo marialva é, naturalmente, um piscar de olhos ao leitor conhecedor de uma das obras de referência de Cardoso Pires: O Delfim. Mas o que fica nítido ao longo da biografia é o modo como Cardoso Pires, apesar do seu círculo de amizades, fugia a essa «espécie de mofo de biblioteca tão característico das sumidades literárias», preferindo os bares recheados da fauna da Almirante Reis que marcou a sua juventude: «os excluídos, os vadios, as prostitutas, os pequenos criminosos, os mânfios lisboetas que nada sabiam de literatura, mas que sabiam tudo sobre a vida e a noite» (p. 244).

Bruno Vieira Amaral consegue ainda a proeza de desempoeirar a literatura, como, muito especialmente, de nos fazer sentir a opressão que se viveu durante os 48 anos de ditadura portuguesa; Cardoso Pires foi acompanhado muito de perto pela PIDE e recebe um dos golpes da sua vida ao saber que o informador era um amigo próximo.

«O cigarro era a extensão natural dos seus dedos, o fumo a extensão natural dos seus pensamentos. Dizia escrever com o bico do aparo, mas escrevia era com o fumo do cigarro, companheiro fiel das centenas de horas solitárias a arrancar de si páginas e personagens e vozes e palavras, as palavras certas.» (p. 522)

Não obstante a voz narrativa, que torna a leitura prazerosa e compulsiva, se manter intacta ao longo de todo o livro, a biografia é rigorosamente documentada, e sempre que possível faz eco das palavras do próprio Cardoso Pires. O livro termina, aliás, com o último sopro de vida de Cardoso Pires. Quaisquer considerações que houvesse a tecer, o biógrafo já as deixou expressas nos momentos próprios, como por exemplo um certo ressentimento – que parece vir do próprio biografado – de que a vida é breve demais para todos os projectos que se deseja passar ao papel, mesmo que não falte na vida o combustível da escrita. Curiosamente, no caso paradigmático de Cardoso Pires, que gostava de reunir toda a informação possível e era obsessivo a reescrever e emendar a sua prosa, o autor sempre rejeitou partir da sua história de vida para fazer literatura: nunca usara «a infância como motor e combustível da escrita» (p. 539), nem escreveu nada ligeiramente passível de ser apontado como autobiográfico. Ironicamente, é ao lançar De Profundis – Valsa Lenta, que se consolida o sucesso do autor. Recebido com uma chuva de prémios e elogios, esse livro é um testemunho profundamente íntimo, escrito na primeira pessoa, do que Cardoso Pires sofreu após um AVC em que (caso raro) até a fala lhe saía ao contrário e começou a falar em latim.

Ao retratar o biografado, Bruno Vieira Amaral acompanha ainda o círculo íntimo de Cardoso Pires, dos escritores mais próximos, e os mais avessos. Agustina-Bessa Luís, pasme-se, não é vista a uma luz muito simpática (e várias vezes mencionada por Cardoso Pires nas suas notas escritas como Beça Luís), e é com alguma alegria que descobrimos a amizade de Cardoso Pires com Lídia Jorge.

Uma nota final ao livro: não faria mal ter-se incluído uma pequena fotobiografia do autor. A capa e o título assentam que nem uma luva.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.