Não podia terminar o ano sem um livro que fui adiando de propósito para esta altura. Primeiro porque seria um reencontro, pois li há anos o Sobre a Leitura, de Marcel Proust, numa edição da Teorema intitulada O Prazer da Leitura, e um prazer redescoberto, pois agora surge novinho publicado pela Relógio d’Água com uma nova tradução (e também pela Antígona, numa edição lançada em simultâneo). E o sentimento mantém-se. Tal como o autor nos diz logo na abertura deste ensaio: «Talvez não haja dias da nossa infância que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que cremos ter deixado sem os viver, aqueles que passámos com um livro preferido.» (p. 7)
Seja na infância, seja na adolescência, ou no caso de alguns leitores inveterados, no resto dos seus dias, consigo recordar certos períodos da minha vida mediante uma memória associativa do livro que estava a ler então, assim como do sítio em que o lia, não sentado na poltrona com um manto de rosas brancas de croché como Proust mas usualmente sobre a cama (e ainda hoje a minha zona lombar se ressente das longas horas de leitura deitado de barriga para baixo). A vantagem do leitor perante um Proust infante é óbvia, pois não se corre o risco de ter de interromper a leitura ao ser chamado para o «demorado» almoço (p. 10) ou ter de esperar pela autorização dos pais ou de acender uma vela durante a noite para incorrer numa insónia. Mas independentemente do livro em que estejamos imersos, e de quão profundo o mergulho, é também a «imagem dos lugares e dos dias» (p. 19) em que fizemos tais leituras que perdura, como o autor comprova ao dissertar durante 20 páginas sobre tudo o que o rodeia, e o emoldura, e não propriamente a leitura ou o livro aberto. A sensação que temos ao ler este ensaio, de início, é aliás como estar novamente imerso na leitura de Do Lado de Swann, primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido (nessa belíssima tradução musicada de Pedro Tamen, também publicada pela Relógio d’Água), quando o narrador nos reconduz pela memória da sua infância. E também não falta a estas páginas uma certa sinestesia proustiana, quando ao som dos sinos associa o odor dos bolos açúcarados. Conforme afirma o autor, ao querer falar delas, as leituras, «falei de coisa completamente diferente dos livros porque não foi deles que elas me falaram. Mas talvez as recordações que me trouxeram uma atrás da outra tenham elas mesmas despertado no leitor e o tenham pouco a pouco levado , enquanto se demorava nesses caminhos floridos e cheios de rodeios, a recriar no seu espírito o ato psicológico original chamado Leitura» (p. 21). A partir daqui, naquela que é a segunda metade do ensaio, quebra-se um pouco a magia do poder evocativo da leitura em paralelo com a revivificação da memória conforme o autor decide alinhavar as suas «poucas reflexões» que lhe restam. Entre Ruskin e Racine, passando por outros autores e também pintores – porque estes nos ensinam «à maneira dos poetas» (p. 26) –, Proust destila os seus pensamentos sobre «o papel ao mesmo tempo essencial e limitado que a leitura pode desempenhar na nossa vida espiritual» (p. 26), ao mesmo tempo que alerta certos leitores mais vorazes (não vou dizer nomes…) para os perigos da leitura, quando esta ao invés de despertar o espírito, a inteligência, tende a substituir a vida.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.