Ensaio sobre o dia conseguido – Um Sonho de Dia de Inverno, de Peter Handke, publicado pela Relógio d’Água, é o livro perfeito para começar o ano – a ler.
Ao jeito de um diálogo platónico, quase numa estrutura de pergunta-resposta, pergunta essa que funciona na verdade como um refrão, Peter Handke tenta escrever um ensaio, à maneira de uma conversa entre um eu e um tu que são afinal o reverso dele mesmo.
«Quem viveu já um dia conseguido? À partida, a maioria não hesitará talvez em afirmá-lo. Será, pois, necessário continuar a perguntar. Queres dizer “conseguido” ou apenas “belo”? É de um dia “conseguido” que falas, ou de um — igualmente raro, é verdade — “despreocupado”? É para ti um dia que decorreu sem problemas já um dia conseguido? Vês alguma diferença entre um dia feliz e o conseguido?» (p. 10)
Entre o dia, o instante e a eternidade da vida, Peter Handke discorre sobre a (im)possibilidade de se cumprir, de se completar (para usar uma palavra das narrativas antigas) um dia que seja perfeito. E para isso, apesar de se chamar ao presente texto um ensaio, conforme o título aponta, Handke devaneia entre as epístolas de S. Paulo e as narrativas ao jeito de Ulisses (de Joyce), num dia cheio de perigos (como as aventuras vividas por Odisseu no seu regresso a casa), incorrendo na narrativa – pois à reflexão do pensador são altercados pedaços de prosa, muitas vezes poética, em que na verdade se narra mais do que se reflecte, como quem procura recriar esse dia conseguido, num «ensaio de uma crónica» (p. 41).
Será correcto confundir um dia conseguido com um dia perfeito? Quererei eu, na «luta com o anjo do dia», «com o cometimento do dia conseguido, tornar-me semelhante a um deus?» (p. 25)
Um dia aliás muito próximo do Outono ou do Inverno da vida – conforme o subtítulo deixa perceber: Um Sonho de Dia de Inverno. Talvez porque a ideia de um dia conseguido não passe afinal de um sonho.
«Será que, por uma vez, deveria ter permanecido em casa o dia inteiro, sem fazer nada além de morar? A consecução do dia pelo simples morar? Morar: estar sentado, ler, erguer os olhos, resplandecer em inutilidade. Que fizeste hoje? Ouvi. Que ouviste tu? Oh, a casa. Ah, sob a tenda do livro. E porque sais agora de casa, se com o livro tinhas encontrado o teu lugar? Para seguir o lido, ao ar livre.» (p. 47-48)
Peter Handke nasceu em 1942, em Griffen, na Áustria. Frequentou a Faculdade de Direito da Universidade de Graz, que abandonou em 1963, após o êxito da sua primeira obra, Os Moscardos. Tornou-se rapidamente um dos autores de língua alemã mais conhecidos e traduzidos, embora muitas vezes envolto em polémica, em particular quando em 2019 recebeu o Prémio Nobel da Literatura «por um trabalho influente que, com criatividade linguística, explorou a periferia e especificidade da experiência humana». Escreveu romances, ensaios, poesia, obras de teatro, guiões cinematográficos de filmes de Wim Wenders como As Asas do Desejo. Dele li o guião (publicado pela Difel em 1976) e vi o filme A Mulher Canhota.
Da Relógio d’Água estão traduzidos (e à minha espera na estante) A Angústia do Guarda-Redes antes do Penalty e O Chinês da Dor, assim como o recentíssimo A Ladra de Fruta (publicado em 2019, cuja leitura seguir-se-á em breve).
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