«Contos à Moda do Porto de Miguel Miranda» in O Conto Português Pós-25 de Abril. O Grande Prémio Camilo Castelo Branco, Org. de Petar Petrov, Roma Editora, Lisboa, 2012, pp. 105-110.
Miguel Miranda nasceu no Porto, em 1956. Licenciou-se em medicina, em 1979, e estreia-se na vida literária com o romance O Complexo de Sotavento, em 1992, seguido pelo livro Contos à Moda do Porto, em 1996, premiado com o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco. É laureado com o Prémio Caminho de Literatura Policial, em 1997, com o livro O Estranho Caso do Cadáver Sorridente. A sua produção literária alterna, desde então, entre o romance e a ficção contista, ao ritmo regular de uma a duas obras publicadas por ano. Nesta obra considerável, o autor retrata quase sempre um universo urbano, povoado de personagens tão estranhas e inesperadas quanto familiares e credíveis. O autor privilegia a técnica narrativa do romance policial, chegando a recuperar a personagem detective Mário França em Dois Urubus Pregados no Céu (2002), construindo uma obra com uma estrutura narrativa policial subvertida e subversiva. Em Livrai-nos do Mal (1999) a narrativa engloba enquanto matéria da ficção casos de polícia reais, como o incêndio no bar de alterne Mea Culpa ou o homicídio em série de prostitutas, configurando um conjunto de histórias de exclusão, racismo e marginalidade.
Contos à Moda do Porto colige pequenas narrativas situadas no Porto e em Gaia, que aliam um extraordinário realismo (conseguido através da constante ancoragem em topónimos, da referência a locais carismáticos e também da convocação de tradições da cidade e de marcas linguísticas emblemáticas) ao humor e à estranheza das personagens e das intrigas. Considerando este cenário urbano, em que o Porto é descrito como uma cidade cosmopolita, uma metrópole ao nível de outras capitais ocidentais, um labirinto onde as pessoas se perdem e vagueiam numa vida sem sentido, muitas vivendo de forma marginal ou alienada, Miguel Miranda aproxima-se do hiper-realismo ou realismo urbano total (para usar a designação atribuída por Miguel Real a esta corrente literária). Cite-se Ramiro Teixeira, quando refere que «Congeminar ou idealizar, escrever e convencer, são nesta obra atributos indesmentíveis, independentemente do grau de fantasia efabuladora, que é verdadeiramente surpreendente.» (in Primeiro de Janeiro, 5/05/1996).
Miguel Miranda constrói um vasto rol de personagens disfuncionais, que vivem à margem da sociedade ideal estereotipada da classe média, mas com as quais o leitor não pode deixar de se identificar, pois vivem um quotidiano de sobrevivência num mundo que elas próprias constroem para si, como uma bolha que as protege mas não as deixa evadir do mundo maior, o dito mundo real, que as cerca e do qual elas nos presenteiam uma perspectiva. Nestas estórias (conforme a contra-capa do livro as apelida) estas personagens percorrem os mais diversos graus do insólito, revelando-se irónicas, perturbadoras, comoventes, dando a sensação de que o autor não só as efabula como as acarinha. É o caso do professor anão Leonardo, cuja estatura é compensada pelo seu cérebro superdotado e pelo seu brilhantismo enquanto tutor de adultos no Externato Fernando Pessoa («Raiz quadrada de uma atracção incerta») que se apaixona pela aluna Cristina, ou antes, por Carlos, um transexual. Jorge Vinagre, internado na Ala Norte do Conde Ferreira, um engenheiro bioquimico que acredita ter feito uma descoberta revolucionária e que vai ser tratado pela Doutora Ágata Lambert, que se revela tão neurótica quanto ele, com a mania da perseguição por ciúme profissional dos seus pares: «Percebeu, com alguma surpresa e espanto, que a Doutora também cozia a mente nas malhas aferventadas de uma enorme, incomensurável moléstia psicótica, que a trazia sofrida e amarga como uma toranja gasta.» (pág. 42). A senhoria Amélia que vive numa cave bafienta e abafada da Rua da Alegria, que passa os dias «à espera, à espera de nada», a beber vinho barato para se auto-anular numa névoa ébria de forma a conseguir «esquecer, esquecer tudo» (pág. 69) e enreda-se na sua imaginação febril alegando a ocorrência de um homicídio num dos seus quartos. O galego Gutierrez que vende cobertores na feira e era Pastor Evangélico, ministro de «uma pequena igreja em Gaia, numa travessa manhosa perto de Soares dos Reis», recuperando toxicodependentes (pág. 87). Num apelo à consciência de um problema característico das grandes cidades, outra personagem invocada nestas histórias é o vagabundo Eduardo, no conto ironicamente intitulado «Sonho tropical» e que acaba por se cansar «da bicha da sopa dos pobres, do serviço de emprego, horas aqui, outras para ali, sempre um a mais, olhado de lado, a sentir-se pior que um rafeiro amarrado a cadeado a que se atira uma côdea.», até se deixar levar: «A noite engoliu-os em pequenos tragos. O Porto digeriu os sonhos com o vagar necessário, este e todos os outros Eduardos dos portais» (pp.117-118). Outro conto que termina sem réstia de esperança e apela a uma realidade actual e urbana tão central e reportada quanto as restantes é «Outono abafado» (cujo título nada tem de ingénuo), em que Crispim, um empregado de caixa num banco, é também o Abafador, um assassino a soldo cujo biscate nocturno é matar idosos em lares, a pedido das famílias que já não aguentam ver os familiares em sofrimento ou dos donos dos estabelecimentos, quando os internos dão mais despesa do que lucro.
No conto «Tripas com limão» destaca-se o recurso a uma linguagem crua e grosseira, eivada de gíria: «Horácio acertou os auscultadores do “walkman”, à medida das orelhas comidas pelos brincos. Ficava sempre ganzado da mona, quando tinha alta do Magalhães Lemos. Batera lá com os ossos de noite, estava numa pior, suado e a tremer. Não havia cheta para o pó, já não metia há três dias. O Doutor já o topava à légua, era o mesmo das outras vezes. Não adiantou o choradinho para ficar no estaleiro uns dias, a ressacar, e começar outra vez com um quarto de grama. Jurava sempre que era para tratar, deixar mesmo, a sério. Mas eles já manjavam o esquema. Deixas, o tanas. Era só para baixar, não dava para aguentar a pagar três gramas por dia, nem a gamar.» (pág. 61).
Temos também o recurso a uma linguagem ofensiva, como na passagem: «- ‘da-se p’r’ó anão! Só sabes chular os velhos…» (pág. 18).
O discurso literário perde assim o seu carácter sagrado e face a esta estranheza de discurso, contido numa linguagem maliciosa, mas também precisa, rica em adjectivos, um leitor mais conservador pode sentir-se perdido ou recusar esta leitura demasiado próxima do real, como é retratado, por exemplo, no cinema ou no pequeno ecrã. Rejeitam-se os cânones da gramática e dos temas adequados à literatura nestes tempos acelerados e sombrios da pós-modernidade de uma comunidade que luta pela sobrevivência e por um sentido em cidades que explodem desordeiramente num crescimento súbito.
Outro exemplo de representação de um discurso que se pretende próximo do real, numa estratégia “inter-textual” em que a língua é valorada como património social, mas a que não é alheio alguma ironia, é o caso do Director do Externato:
«- É um maricôm. Uma bicha. Um trabesti, desses com silicone nas mamas e tudo! É uma bronca do carago se alguém descobre! Bocê tem que me espantar daqui essa peça, a duzentos à hora! Num queremos cá disso, isto é um colêgio de tradiçôm, boas maneiras.» (pág. 29).
O grotesco remete-nos também para o hiper-realismo, muitas vezes mesclado com uma parafernália de termos médicos ou técnicos, o que se coaduna com a verdadeira profissão deste autor. Destaque-se as seguintes passagens: «Jorge Vinagre explodiu contra a superfície espelhada do rio. O choque brutal esmagou-lhe o tórax e seccionou-lhe a medula, provocando-lhe uma sensação de ser atingido por um relâmpago.» (pág. 51). O grotesco ou um certo elogio do feio surgem na descrição de Amélia: «Reviu o seu rosto engelhado, as bochechas flácidas, dependuradas, os olhos raiados das noites mal dormidas, (…) cabelo negro, falheiro, desalinhado, engordurando-lhe os ombros caídos. A boca, céus, a boca, (…) agora um buraco negro, desdentado, rodeado de pregas engelhadas.» (pág. 69).
O horror de situação e de linguagem transparece também no conto «Outono abafado», a jeito de uma reinvenção do mito edipiano, em que o Abafador, cuja principal preocupação é matar para ganhar dinheiro, farto de contar a fortuna dos outros no seu trabalho diurno como caixa, tem o castigo devido num desenlace cheio de justiça poética, matando a mãe sem saber. Invadido por uma ansiedade esquisita e desusada, prenúncio de desgraça, quando tenta sufocar uma idosa com a almofada, o personagem sente «uma prisão no braço, e reparou aterrado que a mão descarnada daquele fóssil se cravara no seu punho, como uma garra adunca, as unhas enterradas na sua carne numa tenaz de ferro, parecendo querer arrastá-lo na morte. Crispim esmagou com raiva a cabeça da velha tonta contra o leito, “Carcaça danada, eu a procurar aliviar-te, e tu não compreendes”» (pág. 124).
Do mesmo modo que a história «que cada conto conta raramente é a que está à vista, é antes a “outra” história, a história que, sob a história narrada, pulsa como um fio de água subterrâneo correndo entre as circunstâncias e os episódios da narração» (palavras de Manuel António Pina, no texto de apresentação da obra in Ateneu Comercial do Porto, 27/02/1996), a subversão, aliada à ironia, não deixa de estar presente na obra do autor. No conto «Diário de uma noite de insónia», procede-se à reinvenção paródica de uma tradição da sua terra. Não é um gesto inocente e desprovido de sentido a oferta da estatueta de São Cristóvão por parte da Doutora Ágata ao seu paciente, para depois se proceder à explicação da tradição dessas duas antigas freguesias de Vila Nova de Gaia, Mafamude e Santa Marinha, que desfilam com a cabeça de São Cristóvão, seu santo patrono, que terá atravessado o rio Douro com o menino Jesus às costas e cuja cabeça apareceu a boiar. Esta passagem, atentamente detalhada, serve de prenúncio ao aparecimento de uma outra cabeça: «A cabeça decepada da Doutora Ágata Lambert encalhou finalmente junto ao cais dos pescadores, encontrando a paz e o sossego num bando de gaivotas esfomeadas, a grasnar de contentes» (pág. 51). Noutro conto mais curto, «O cometa assassino», o autor retorna aos temas do desencanto e da perda de identidade através de um jogo subversivo de linguagem e cultura, com o episódio de um artista caído em desgraça. Antes conhecido como Fredo Mercúrio, o grande vocalista dos Cabeça de Morteiro, mudou o nome para Alfredo Guímaro até porque era já uma «pálida sombra» de «olhar triste, espartilhado», cuja voz de «falsete arqueado, de fífia ondulada» era agora uma voz «normal, igual a todas as outras» (pp. 96-97). E sentimos como o protagonista do conto, que acidentalmente assiste à sua performance num bar de nome Halley, perde a sua alegria de viver face àquela caricatura de um passado perdido: «Não aguentava mais. A ideia de que os Cabeças de Morteiro já não rebentariam mais tímpanos, era insuportável. Halley, o cometa assassino, matara Fredo Mercúrio na minha memória. O meteoro esmagara o sonho com nome de planeta, nada mais importava» (pág. 97).
Bibliografia
Miranda, Miguel, 1995, Contos à moda do Porto, Edições Afrontamento, Porto
Pina, Manuel António, texto de apresentação de Contos à Moda do Porto, Ateneu Comercial do Porto, 27 de Fevereiro de 1996
Petrov, Petar (org), 2008, Meridianos Lusófonos, Roma Editora, Lisboa
Petrov, Petar, 2010, Ficção em Língua Portuguesa – Ensaios, Roma Editora, Lisboa
Teixeira, Ramiro, «Mais uma vez o prazer da descoberta» sobre Contos à Moda do Porto in Primeiro de Janeiro, 5 de Maio de 1996
Venâncio, Fernando, «Altamente» sobre Contos à Moda do Porto in Jornal de Letras, 10 de Abril de 1996
Venâncio, Fernando, «Momentos de Graça» sobre Contos à Moda do Porto in Expresso, 6 de Julho de 1996
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