Michel Houellebecq é provavelmente dos autores franceses mais lidos e mais polémicos dos últimos tempos. Nascido na Ilha Reunião, em 1956, tem a sua obra publicada em Portugal pela Alfaguara e está traduzido em mais de quarenta línguas. Venceu em 2010 o Prémio Goncourt com O mapa e o território e este ano foi condecorado com a Legião de Honra, coincidentemente com a publicação do seu mais recente romance, Serotonina – título familiar, e infelizmente actual, para quem já se viu confrontado com a triste notícia de que o seu sistema endócrino não está a produzir serotonina suficiente.
Florent-Claude Labrouste, funcionário do Ministério da Agriculta, de quarenta e seis anos, descontente com o seu nome próprio e com a vida em geral, é um cidadão vulgar e anódino, não fosse ter uma namorada japonesa mais nova de quem descobre uns vídeos pornográficos chocantes para o leitor comum… Numa fuga à sociedade em geral, o nosso anti-herói deixa a namorada, a casa, o emprego e passa a viver de quarto em quarto de hotel, movido a Captorix, um antidepressivo que, supostamente, deveria libertar serotonina. Mas as melhoras são poucas, apesar de ironicamente serem bem manifestos os efeitos secundários como a total inibição de desejo sexual e a disfunção eréctil, mesmo quando a dosagem excede o que seria aconselhável. Ou, por outro lado, talvez seja o Captorix que lhe permitirá ver sem paliativos a realidade desastrosa e desesperançada que se vive, com uma França e uma Europa que ameaçam ruir, num mundo todo ele às avessas.
Politicamente incorrecta, com afirmações imbuídas de machismo e chauvinismo, a prosa de Michel Houellebecq raia o pornográfico ao mesmo tempo que ainda assim disseca, igualmente sem freio na língua, a nossa realidade. Para dar um exemplo mais suave, leia-se a seguinte passagem quando o narrador aceita ficar numa casa sem internet:
«Respondi-lhe que já sabia, que já estava preparado para isso. Vi então passar-lhe pelos olhos um breve momento de temor. Não devem faltar os depressivos que se querem isolar, que querem passar uns meses nos bosques «para fazer um ponto de situação»; mas pessoas que aceitam ficar sem internet, sem pestanejar, por tempo indefinido é porque estão nas últimas, li-lhe no olhar ansioso.
– Não me vou suicidar – disse-lhe, com um sorriso que esperava desarmante, mas que na realidade devia ser suspeito. – Enfim, não agora – acrescentei, como concessão.» (p. 221) Ver artigo
Less, de Andrew Sean Greer, publicado em maio deste ano pela Quetzal, com tradução de Vasco Teles de Menezes, foi um dos livros sensação de 2017, vencedor do Pulitzer de Ficção, do Northern California Book Award, do Washington Post Best Book, bestseller do New York Times e recomendado como um dos melhores livros do ano pela The Paris Review ou America Library Association.
Arthur Less é, como o nome indicia, um homem menor, prestes a fazer cinquenta anos, em tempos o jovem parceiro de um génio literário, agora rejeitado pelo seu jovem amante, escritor aclamado pelo seu romance de estreia, é um homem tão discreto, apesar do seu fato de um azul lessiano (adjectivo que predomina ao longo do livro), que se torna apagado. Arthur Less, o nosso protagonista peripatético, com olhos cor de safira, magro e elegante, com laivos de herói pícaro, trapalhão e vítima de si próprio, é tão menor que até como homossexual parece dar mau nome aos seus amigos gay, por não ser “suficientemente gay”. Além de abandonado pelo amante, Less vê ainda o seu mais recente romance de Less rejeitado pela editora; curiosamente intitulado de Swift (como em Jonathan Swift), esse romance parece aliás reflectir a própria narrativa de Less: «um romance peripatético. Um homem a vaguear por São Francisco, e pelo seu passado, retornando a casa após uma série de reveses e desilusões («Só sabes escrever o Ulisses em versão gay», disse Freddy); um romance melancólico e pungente acerca da vida difícil de um homem. Da meia-idade falida e gay.» (p. 39)
Para contornar esta triste notícia, e para declinar com justa causa o convite para o casamento do seu ex-namorado com outro homem que não ele, Arthur Less decide embarcar numa viagem pelo mundo, em que uma série de convites sobrepostos – que um escritor mais afamado certamente recusaria – lhe permitirão viajar pelo México, por Itália, Alemanha, França, Marrocos, Índia e, por fim, Japão.
Tal como a personagem do seu primeiro romance, Kalipso, uma espécie de reescrita da Odisseia, em versão gay, em que um soldado dá por si numa ilha deserta e se apaixona por outro homem, até que volta para casa e para a mulher, Arthur Less terá as suas próprias peripécias ao longo das viagens que empreende. Apesar de ser visto como um homem distinto, de ar elegante e delicado, por aqueles com quem se cruza, Arthur não deixa de se comprazer na sua dor e na visão menor que tem de si próprio, que impossibilita aliás reconhecer que ainda há quem o veja como um grande autor… talvez por ter vivido largos anos sob a sombra de um génio poeta… e porque entende que aos cinquenta anos já ninguém se pode tornar mais apelativo… quando na verdade Less é ainda uma criança grande e inocente, capaz de se relacionar com o mundo sem consciência dos seus perigos… com azar nas coisas que não interessam e uma sorte pródiga nas que interessam.
«Pois ele já conheceu a genialidade. Já foi acordado pela genialidade a meio da noite, pelo som da genialidade a percorrer os corredores para trás e para a frente; já preparou café à genialidade, e o pequeno-almoço, e a sanduíche de presunto e o chá; já esteve nu ao lado da genialidade, impediu a genialidade de entrar em pânico com falinhas-mansas, foi buscar as calças da genialidade ao alfaiate e passou as camisas a ferro para um recital. Já apalpou cada pedacinho de pele da genialidade; já sentiu o cheiro e o toque da genialidade.» (p. 113)
Less, tal como o romance gorado de Arthur Less que ele acaba por decidir reescrever, nada tem afinal de melancólico, mas sim de risível, de enternecedor, e de revelador, em como o homem dá a volta ao mundo para descobrir o seu destino quando regressa à porta de casa. Sem que, de facto, o leitor consiga sentir tanta piedade pelo nosso herói como a compaixão que ele sente por si próprio, ao viver uma vida que é claramente melhor do que a de qualquer outra pessoa que possamos conhecer, inclusive a nossa… Ver artigo
Julian Barnes, nascido em 1946 e por três vezes finalista do Booker Prize, é um dos grandes autores da literatura inglesa, publicado pela Quetzal, cuja obra revela versatilidade, cruzando géneros e temas diversos de modo a chegar aos sentidos possíveis da vida, em romances sempre inesperados. Depois de O Ruído do Tempo, em que num romance próximo de um ensaio, explorava a vida de Shostakovich e a sua liberdade criativa sob o regime totalitário estalinista, o autor envereda agora por um tema mais próximo, o amor, mas sob a perspectiva de um jovem apaixonado por uma mulher mais velha. Nesta recriação da história de Mrs. Robinson – para quem conhece o filme A Primeira Noite (The Graduate), de 1967, com Dustin Hoffman que se envolve com uma mulher mais velha, interpretada por Anne Bancroft –, Paul Casey, um jovem de dezanove anos, conhece Susan, uma mulher de quarenta e oito anos, no clube de ténis, e de parceiros de ténis passarão gradualmente a companheiros de vida. Num envolvimento muito pouco disfarçado, o casal irá afrontar a boa moral inglesa dos subúrbios, numa época em que os termos cougar ou toy boy eram desconhecidos, e as únicas palavras eram «adúltera e mulher fácil».
Aperceber-nos-emos gradualmente que o narrador é um Paul muito mais velho, a relembrar o grande amor da sua juventude e da sua vida. O narrador, inicialmente na primeira pessoa e mais tarde oscilando entre a primeira e a terceira pessoa, alerta desde logo o leitor: «Entendem (espero) que estou a contar-vos tudo tal qual me lembro? Nunca tive um diário e a maior parte dos que participaram na minha história – minha história e minha vida – ou morreram ou estão longe. Por isso não registo necessariamente os factos pela ordem em que aconteceram. (…) A memória organiza e filtra, segundo as exigências que lhe são feitas por quem lembra. Podemos aceder ao algoritmo das suas prioridades? Provavelmente não.» (p. 29)
Neste belíssimo e sublime romance relembra-se o passado, sem o reconstruir, até porque no amor há uma única história. E todos têm ou tiveram já a sua história de amor, a que se torna única e verdadeira. Especialmente quando a única história é a primeira, que marca a vida para sempre e empalidece todos os futuros amores. Mesmo quando essa única história tem um desfecho infeliz. Ver artigo
O mais recente livro de Kazuo Ishiguro é, na verdade, a obra de estreia do autor japonês, publicada em 1982. A sua obra está publicada pela Gradiva e já aqui recenseámos outros livros do autor, todos eles completamente distintos, pelo que nunca sabemos onde a sua escrita nos conduz.
Etsuko é uma mulher japonesa que vive em Inglaterra, divorciada, com duas filhas de dois homens diferentes. Keiko, a sua filha mais velha, suicidou-se recentemente. E Niki, nascida em Inglaterra, vive com o namorado em Londres mas não tem qualquer intenção de se casar ou ter filhos. Niki tem aliás um nome que resulta de um acordo entre a mãe japonesa e o pai inglês, que insistia que a filha tivesse um nome japonês. Logo nesta informação, avançada nas primeiras linhas do romance, sente-se que a tradição parece aqui colocada em causa… e de facto, é isso que se sentirá ao longo do livro. Como transparece também na relação entre Jiro, o primeiro marido de Etsuko, que menospreza o pai em prol da sua ambição profissional, ou na amiga que vive obcecada com o americano que um dia poderá levá-la para a América, apesar de pressentir que não passa de uma ilusão e de lhe maltratar a filha.
Quando Niki visita a mãe durante os dias chuvosos e frios de Abril, em sequência do suícidio da irmã, a cujo enterro não compareceu, Etsuko dá por si numa retrospectiva dos primeiros tempos da sua gravidez, nos anos seguintes à destruição de Nagasáqui, em que continua presente o impacto da bomba na vida dos que sobreviveram, e revive as memórias da sua amizade com Sachiko, uma mulher que perdeu a sua fortuna e a sua boa posição devido à guerra e vive agora numa casa pobre, com uma filha rebelde e peculiar.
Kazuo Ishiguro viveu em Nagásaqui, sua cidade natal, durante 5 anos, antes de se mudar para Londres. Foi Prémio Nobel de Literatura em 2017. A sua escrita é, como sempre, cristalina e envolvente, e os seus enredos enigmáticos e ambíguos. O presente e o passado explorados na narrativa não parecem interligar-se cabalmente… mas há um enigma neste livro que pede para ser desvendado… contudo revelá-lo aqui seria estragar o prazer da vossa leitura. Ver artigo
Há uma forte convicção de que este livro é uma sequela de Cidade Aberta, não apenas por ter sido lido ou publicado depois, mas porque este narrador, sem nome, regressa à sua cidade natal de Lagos e pode ser perfeitamente identificado com Julius, o jovem médico que calcorreava a cidade de Nova Iorque como forma de reflexão e de desopressão do trabalho, ou, mais ainda, com o próprio autor, se não fosse pelo facto de Teju Cole ser filho de pais nigerianos mas ter nascido nos Estados Unidos. Tendo saído da Nigéria assim que conseguiu uma bolsa para estudar nos Estados Unidos, o narrador começa a sua narrativa nas vésperas da sua viagem, quando se dirige ao consulado para obter o visto. Já aí se prenuncia o que se seguirá ao longo do seu regresso a Lagos, mesmo sob os cartazes em que se solicita: «Ajude-nos a combater a corrupção.»
Lagos é uma metrópole, nem sempre reconhecível para o narrador que reencontra familiares, amigos e locais da sua infância e juventude, onde o grande «lubrificante social» é o dinheiro que ajuda a mover as rodas da engrenagem burocrática ao mesmo tempo que mantém as hierarquias sociais no seu devido lugar (p. 26): todo o serviço tem o seu preço e requer a devida gratificação. Lagos é uma cidade de contrastes. Ao ver peças de arte nigeriana em museus em cidades como Londres, Paris e Berlim, o narrador ansiou por um regresso às suas origens, mas quando chega ao Museu Nacional a desolação é total, pois o seu conteúdo é parco e pouco representativo. Um professor local é pago com valores inferiores ao de um professor estrangeiro/branco. Não há monumento que assinale como o comércio de escravos era na ordem das dezenas de milhares e entre 1835 e 1840 atingiu o número de 135 000. A Nigéria é um dos maiores produtores de petróleo do mundo mas metade da cidade de Lagos, confrontada diariamente com cortes de energia, funciona com geradores e as áreas de serviço ou estão encerradas ou não têm combustível.
Um retrato cru e realista no que é uma das melhores representações ficcionais de África na actualidade. Ver artigo
Joanne Harris é uma escritora que passa sempre à frente das dezenas de livros que ameaçam fazer a minha cabeceira soçobrar… Este livro, publicado 20 anos depois de Chocolate, o primeiro livro que li da autora, mais ou menos quando saiu o filme, é um regresso ao universo mágico da pequena vila de Lansquenet-sous-Tannes, o que perfaz uma série de 4 romances – com Sapatos de Rebuçado e O Aroma das Especiarias. Todos os livros da autora – da série Chocolate e outros, inclusive infanto-juvenis – integram o catálogo das Edições ASA.
Vianne Rocher – e acho que é difícil dissociar a personagem de Juliette Binoche, actriz que a interpretou, como sempre acontece quando se vê uma adaptação de um livro ao cinema – continua a viver em Lansquenet-sous-Tannes onde mantém a sua chocolataria. Em tempos repudiada, é agora uma mulher respeitada e que, de forma subtil e imperceptível, continua a ajudar os habitantes da vila, através do cheiro enfeitiçante do chocolate quente que tem o condão de os fazer desoprimir-se do fardo que carregam, de segredos e de pecados erroneamente assumidos. Mas esta bruxa boa também carrega um segredo (…) Ver artigo
A. S. Byatt nasceu em Yorkshire, em 1936, e em 1972 tornou-se professora de literatura inglesa e americana na University College em Londres. Tem poucas obras publicadas em Portugal mas é sobejamente conhecida pelo romance Possessão, vencedor do Booker Prize em 1990, publicado em 2010 pela Sextante, e adaptado a filme.
Ragnarök – O Fim dos Deuses é mais um título a integrar a colecção de Mitos da Elsinore, originalmente publicada pela editora Canongate. Já aqui se apresentaram outros títulos desta colecção, como A Odisseia de Penélope ou O Mel do Leão, de autores igualmente aclamados. São livros de capa dura, belamente ilustradas por Lorde Mantraste.
A narrativa, a não confundir com um romance, é contada a partir da perspectiva de uma «criança magra», cujo sexo nunca é designado, que devora histórias com grande avidez, durante a noite com uma lanterna sob os lençóis, e que descobre dois livros que a marcam particularmente, Asgard e os Deuses e O Caminho do Peregrino. É a partir dessas histórias que nasce em si o desejo de escrever, num mundo ele próprio perto do fim, quando as bombas da Blitz arrasam a cidade de Londres, e o pai da criança desapareceu. São estes os elementos de Ragnarök que se percebem autobiográficos, enquanto a autora recria de forma poética os mitos nórdicos do Crepúsculo dos Deuses – como em Wagner – e cria um paralelismo entre esse fim dos tempos e a destruição dos recursos do planeta pelo homem.
O livro, originalmente publicado em 2011, reflecte seriamente sobre a sensação de fim dos tempos que se vive na nossa contemporaneidade, pois esta criança que vivia no campo, apesar do espectro dos bombardeamentos aéreos e de se fazer acompanhar de uma máscara de gás, lê agora (em adulta), todos os dias, sobre «uma nova extinção, o branqueamento dos corais, o desaparecimento do bacalhau que a criança magra pescava à linha no Mar do Norte, numa altura em que os peixes abundavam. Leio sobre projetos humanos que destroem o mundo, poços de petróleo habilidosa e avidamente construídos em águas profundas, uma estrada atravessando as rotas de migração no parque do Serengeti, o cultivo de espargos no Peru, balões de hélio para transportar as colheitas de forma menos dispendiosa, emitindo menos carbono, enquanto as próprias explorações agrícolas esgotam perigosamente a água que alimenta os vegetais, os seres humanos e outras criaturas. (…) Quase todos os cientistas que conheço acreditam que estamos a forjar a nossa própria extinção a um ritmo cada vez mais acelerado.» (p. 142) Foi aliás notícia, recentemente, a percentagem assustadora de espécies animais que se extinguiram devido à acção humana nas últimas décadas…
Neste livro inclui-se uma nota da autora, intitulada «Pensamentos sobre os mitos», que faz luz sobre esta obra e o porquê de ter sido este o mito a recriar escolhido pela autora, professora durante largos anos da disciplina «Mito e Realidade no Romance». Podemos alegar que os mitos, bíblicos ou gregos, não têm o fôlego dos grandes romances, mas é também nas linhas das grandes obras da literatura que perpassam diversos ecos míticos; da mesma forma que os heróis míticos não se comparam com personagens de romances, pois faltar-lhes-ia serem dotados de verdadeira densidade psicológica; antes parecem joguetes nas mãos dos deuses, eles próprios tão caprichosos e incautos como crianças. O único deus nórdico que merece alguma simpatia por parte desta crítica literária e romancista é Loki, o endiabrado irmão de Thor, o único deus inteligente e trocista, mas também irresponsável e caprichoso como os demais.
A. S. Byatt entretece estas questões complexas nesta preciosa nota, de como os deuses nórdicos são «peculiarmente humanos (…) porque são limitados e pouco inteligentes. São gananciosos, divertem-se a lutar e a brincar. (…) Sabem que o Ragnarök está a chegar , mas são incapazes de imaginar uma forma de o evitar ou de mudar a história. Sabem morrer destemidamente, mas não sabem tornar o mundo melhor.» (p. 144). A autora explica, em suma, como escolheu o mito nórdico de Ragnarök porque este representa o último de todos os mitos: «o mito que põe fim aos mitos, o mito em que os próprios deuses são destruídos» (p. 140). Ver artigo
É uma mulher. É escritora. Vive em Londres. Divorciada. Mãe de dois filhos – com os quais parece só comunicar por telefone – que optaram recentemente por ir viver com o pai. Casada pela segunda vez. Chama-se Faye – como se descobre quando o seu nome é pronunciado uma única vez, no romance inteiro, perto do final. Está prestes a embarcar numa viagem de promoção da sua obra num festival de literatura na Europa.
Kudos, publicado pela Relógio d’Água, encerra uma trilogia inicialmente publicada pela Quetzal, com A Contraluz (2017) e Trânsito (2018), e parece inclusive fechar o ciclo começado em A Contraluz pois Faye encontra-se novamente num avião como no início do primeiro livro. Neste conjunto de obras a autora cria um novo dispositivo narrativo na sua obra, e inédito na ficção em geral, em que protagonista e narradora se esbatem até ser pouco mais do que um contorno a contraluz. Contudo o livro de Rachel Cusk é praticamente impossível de pousar, enquanto assistimos a um desfiar de histórias, sem filtro e sem juízos, sobre a família, a arte, a política, a crítica, a literatura, o futuro da Humanidade, o papel da mulher.
Assim se tece uma nova forma de narrar, em que a protagonista, vista especialmente a partir do que os outros observam sobre ela, permanece muda em praticamente toda a narrativa. Apesar de se escrever que a obra da autora entretece autobiografia e ficção, quase nada é revelado sobre a personagem, mesmo sendo ela também a narradora, e o que se regista sobre si é apenas factual. Quase sem voz, assim como sem corpo, a narradora mais parece uma confidente e que nunca opina, apenas coloca questões que conduzem a linearidade das histórias dos que a cercam.
É sintomática a entrevista que alguém intenta fazer-lhe, em que na verdade a entrevistada nunca fala de si… «Reparara, por exemplo, que muitas vezes era uma simples pergunta a provocar nas minhas personagens proezas no domínio das revelações pessoais e que, como era óbvio, isso o fizera refletir sobre a sua profissão, que tinha como característica central fazer perguntas.» (p. 119) Inclusive quando observa os que com ela convivem, amigos, estranhos de passagem, colegas escritores, Faye não tece considerações, limitando-se a transcrever os seus diálogos, que mais se assemelham a monólogos, ainda que se perceba que lança perguntas que encaminham o ritmo dos solilóquios daqueles com que se cruza e através dos quais tece uma reflexão sobre os mais variados temas. Existem diversas situações em que os seus interlocutores são inclusive tratados como narradores e as suas histórias de vida como narrativas, pois como diz alguém: «as vidas das outras pessoas eram um drama que se desenrolava e que evoluía, passando por diferentes fases da existência, como uma telenovela prolongada» (p. 139)
Mas Faye, ou Rachel Cusk, acaba por deixar pequenas indicações de leitura deste seu romance, se o leitor estiver atento, sempre pelo discurso de outrem: «Afirmou que esperava que eu estivesse de acordo com a sua avaliação, uma vez que deduzira da minha obra que, se eu tinha imaginação, tinha o bom senso de a manter oculta.» (p. 151)
Há muito poucos momentos em que ela própria deixa entrever aquilo em que pensa, mas a sua capacidade de observação é sempre arguta, por vezes cáustica, como quando nos descreve o homem a seu lado no avião e que se prepara para lhe contar toda a sua vida: «Tinha quarenta e tal anos, um rosto que era ao mesmo tempo atraente e banal, e a indumentária limpa, bem engomada e neutra de um homem de negócios em fim de semana. (…) Irradiava uma virilidade anónima e ligeiramente provisória, como um soldado de uniforme.» (p. 11) Ver artigo
Julius é um jovem médico nigeriano que ao jeito de Sebald deambula pelas ruas de Manhattan. É nesse caminhar que encontra a liberdade e a descompressão do trabalho com os seus pacientes, libertando-se assim da tensão e do estado de vigília: «Os passeios vinham ao encontro de uma necessidade: eram uma libertação do ambiente mental que vigorava no trabalho, com as suas regras apertadas, e mal percebi que eram uma boa terapia tornaram-se algo absolutamente normal, ao ponto de me esquecer como era a minha vida antes dessas caminhadas.» (p. 15)
Cada recanto da cidade explorado por Julius é descrito não só pela sua presença sólida no agora mas também pela história que traz consigo, pois a cada passo o próprio tempo se torna elástico: «Aquele sítio era um palimpsesto, como o era toda a cidade, escrita, apagada, reescrita. Havia comunidades organizadas muito antes de Colombo aqui ter desembarcado, de Verrazano ter ancorado os seus navios nestes estreitos canais e do mercador de escravos português Estêvão Gomes ter subido o Hudson» (p. 70).
Da mesma forma que vai descobrindo a paisagem física da cidade de Nova Iorque, cenário que serve inclusive para algumas analepses em que rememora a sua infância na Nigéria, de onde saiu com uma bolsa de estudo, Julius desvenda ainda uma paisagem social, onde se cruza com as mais diversas nacionalidades, como haitianos, nigerianos… e negros: «Essa troca de olhares era feita entre os homens negros por toda a cidade em todos os momentos do dia, uma solidariedade instantânea e enraizada nas ocupações banais de cada homem, um aceno, um sorriso, uma breve saudação. Era como se todos disséssemos uns aos outros: eu também sei um pouco o que é estar desse lado.» (p. 229)
Este é um romance sobre a condição de se ser estrangeiro, e em particular um estrangeiro provindo de África, de cor diferente, mesmo que a cidade pareça aberta aos devaneios dos transeuntes: «De onde eu me encontrava, a Estátua da Liberdade era uma mancha verde fluorescente, projetada contra o céu e, por trás dela, Ellis Island, o berço de tantos mitos; mas tinha sido construída demasiado tarde para os primeiros africanos aqui chegados – que estavam longe de poderem ser considerados imigrantes – e tinha fechado demasiado cedo para que fosse possível que, mais tarde, tivesse qualquer significado para outros africanos como Kenneth, o taxista e eu próprio.» (p. 65)
Mas Julius é ainda, mais que um estrangeiro em Nova Iorque, um estranho na sua própria pele, dado ser um nome pouco comum – de origem romana – para um nigeriano, mestiço, como o atesta a cor da sua pele e o seu passaporte. E apesar do seu nome do meio, Olatubosun, ser ioruba, Julius nunca o usa… Talvez porque para se sentir nova iorquino, ou integrado no seu novo país, um estrangeiro tenha de perder a sua singularidade diferenciadora para melhor se confundir. Ver artigo
Depois de descobrir Rachel Cusk através da sua trilogia, isto é, das obras mais recentes, fui procurar o que mais se encontrava publicado em Portugal e descobri uma obra que aliás já me era familiar, recorrendo, como muitas vezes recorro, ao que encontro nas bibliotecas públicas. Arlington Park, obra traduzida por Tânia Ganho e publicada pelas Edições Asa, é bastante diferente de livros como Kudos, mas é igualmente uma leitura essencial a não perder. Uma espécie de Donas de Casa Desperadas, Arlington Park é uma versão erudita da histeria que significa viver no microcosmos de um subúrbio. O livro está brilhantemente escrito, e a acção condensa-se no único dia da vida de cinco mulheres, sendo que cada capítulo se centra em cada uma das personagens, para depois as retomar e por fim as reunir num jantar que se pode tornar catastrófico. Todas estas mulheres têm em comum, mesmo que não encontrem afinidades genuínas entre elas, o facto de se sentirem perdidas no seu casamento, na sua nova vida de mãe doméstica, como se o desfecho de todo o casamento fosse tornar-se uma peça de teatro, ou antes, uma farsa: «Maisie ouviu os passos do marido nas escadas; sentiu-o a aproximar-se, como que saído do âmago de um qualquer fogo ou fornalha invisível, onde ele era recriado em prol dela, fabricado uma e outra vez a partir das suas ausências. Sentiu uma consciência quase que insuportável da realidade dele, da vida dele e da tarefa, da tarefa dela, de manter aquelas representações dele coesas e contínuas. Era amor, esse trabalho de decifrar, interpolar e testemunhar: ser testemunha de algo na sua totalidade, isso era amor.» (p. 196)
Perpassa na narrativa um forte sentido de identidade feminina, do que significa ser mulher e mãe, e chega a ser chocante a hostilidade que por vezes estas mulheres manifestam perante os seus maridos, que parecem ter-se tornado perfeitos estranhos. Juliet é professora num liceu e apenas consegue encontrar algum consolo nas tardes em que reúne jovens raparigas num clube literário; Amanda é uma dona de casa cujo perfeccionismo e obsessão pela limpeza pode esconder uma homicida latente; Solly está prestes a dar à luz o seu quarto filho, sem conseguir perceber como é que se deixou apanhar nessa armadilha novamente, até que decide alugar um quarto vago e encontrar consolo na misteriosa vida das estudantes solteiras que o ocuparão; Maisie tenta domesticar o seu espírito agora fora da azáfama londrina e cingido à pacatez do subúrbio; Christine continua igualmente a sentir a aura londrina como um nevoeiro que dissipava ou esbatia a nitidez da realidade, e procura nas outras mulheres algum tipo de aliança…
A escrita de Rachel Cusk é absolutamente deliciosa e original, impregnada de algum humor negro, pois todas estas mulheres estão também à beira de um ataque de nervos, todas elas “interessantes”, porque têm os seus próprios “ódios de estimação”, como reflecte Christine (p. 113). Até ao descrever a mais banal das situações, a autora consegue modelar a linguagem e dar-lhe novos sentidos, como quando descreve o cenário à entrada de um centro comercial, local que parece servir de refúgio a estas mulheres: «todas as camadas do edifício eram visíveis dali de baixo. Parecia uma ilustração das cavidades do coração: as pessoas eram levadas para cima pelas escadas rolantes e, no fim, voltavam a emergir, oxigenadas pelas compras.» (p. 90) Ver artigo
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