Satoru Miyawaki teve um gato em criança, a que chamou Hachi – oito, o número do infinito –
pois no seu pêlo quase todo branco tem duas manchas castanhas que parecem desenhar o símbolo do infinito, com uma cauda preta e torta. Hachi é o último ser vivo com quem Satoru partilhou momentos felizes, e quando perde os pais tem também de se separar do seu gato. Agora em adulto, Satoru encontra um gato de rua que foi atropelado e cuida dele até ficar bom. Mas no momento em que o gato se prepara para sair em liberdade, Satoru convida-o a ser o gato da casa. Até porque este gato lembra-lhe o outro, com a cauda torta para o lado oposto, e chama-lhe Nana (sete, o número da sorte).
Satoru revela-se um bom companheiro de casa de gato e Nana um bom companheiro de casa de humano, até que 5 anos depois Satoru o convida a fazer uma viagem pelo Japão para reencontrar amizades antigas e procurar um novo companheiro de casa que adopte o seu gato pois por questões «incontornáveis», nunca nomeadas, Satoru não poderá continuar a cuidar dele. Na viagem que os dois companheiros empreendem, Nana fica a conhecer a paisagem japonesa, o mar, as cidades onde o dono cresceu, enquanto Satoru visita o seu colega de natação no ensino básico, Kosuke Sawada, recentemente abandonado pela mulher; Daigo Yoshimine, um colega dos tempos de colégio, que travou amizade na altura em que os seus pais se divorciavam e ele foi viver com a avó; Shusuke Sugi e a mulher Chikako Sakita, colegas de Satoru no primeiro ano do ensino secundário, e que são agora donos de uma pousada pet friendly perto do monte Fuji onde não faltam as suas mascotes, uma gata e um cão que consegue farejar a hostilidade latente entre Shusuke e Satoru; e Noriko Kashima, a tia de Satoru, que o criou quando a sua mãe, irmã mais velha de Noriko, faleceu.
Este pequeno e belo livro, publicado pela Editorial Presença, narra uma história de amizade contada pela voz de um gato, criatura independente mas leal, que observa os humanos com deliciosa ironia do alto da sua superioridade e que, com o gancho da sua cauda torta, parece recolher as pequenas felicidades do quotidiano e dar sorte àqueles com que se cruza. Ver artigo
Colleen McCullough, autora publicada pela Bertrand Editora, nasceu na Austrália em 1937 e faleceu em 2015. Na sua carreira literária revelou versatilidade: escreveu breves romances como Tim ou As Senhoras de Missalonghi, aventurou-se numa série policial com Carmine Delmonico, explorou os primórdios da colonização da Austrália com A Viagem de Morgan, e estudou a fundo a História de Roma em O Primeiro Homem de Roma, uma ambiciosa e avassaladora série composta por 7 volumes (com mais de 1000 páginas cada) que retrata o apogeu da época romana: inicia com Mário e Sula, dedica vários volumes à vida de Júlio César, e termina com Marco António e Octávio Augusto. Colleen McCullough é, sobretudo, conhecida por Pássaros Feridos, bestseller internacional que narra as grandes paixões de uma saga familiar, com o imenso deserto australiano como cenário, e deu origem a uma série televisiva em 4 partes.
As Senhoras de Missalonghi lê-se como uma recriação de um conto de fadas, ao género da Gata Borralheira, onde não falta uma fada-madrinha e um final imprevisível. Missy Wright tem 33 anos, vive em casa com a mãe e a tia, que fazem trabalhos de costura mais para se ocupar do que para se remediar, é a única morena do clã alvo e louro de Hurlingfords, e nunca vestiu outra cor se não o castanho, como condiz à sua condição de solteirona: «era uma cor tão prestável! Nunca mostrava a sujidade, nunca estava na moda nem deixava de estar, nunca ficava ruço, nunca parecia ordinário, vulgar, indecente.» (p. 53).
O único prazer que Missy conhece é o da leitura de romances de cordel, cujo desfecho previsível é, ainda assim, previamente revelado por Una, que lhos vai passando subrepticiamente. Até se deparar com um estranho cavalheiro, cuja chegada marca também o desabrochar e a insurreição de Missy contra a sociedade hipócrita que a rodeia, nomeadamente a própria família, onde os homens ardilosamente reclamam para si o património das viúvas, persuadindo-as de que são a sua única salvação, até que, subitamente, as acções dos Hurlingfords começam a ser misteriosamente compradas. Se resumirmos a essência de As Senhoras de Missalonghi, a história é, portanto, enganosamente simples, mas a colori-la está a vivacidade irónica da autora, a argúcia com que dá vida às suas personagens, donas de um carácter à altura das suas paixões. Ironia que denota ainda uma narrativa histórica que retrata o fim de uma época, com o prenúncio da Primeira Guerra, feita de convenções e superficialidade: «A atmosfera encontrava-se carregada de particípios corretamente formados e de infinitivos harmoniosamente colocados, assim como muitas outras delícias verbais desatualizadas há pelo menos cinquenta anos.» (p. 84) Ver artigo
Pode dizer-se de um livro que é claustrofóbico?
O livro História da Violência, publicado pela Elsinore, é uma narrativa de pendor autobiográfico em que Édouard Louis narra a violência de que foi vítima. Mas conforme a narrativa se reparte em múltiplas vozes – com a irmã de Édouard a contar ao marido a sua versão da história pontuada pelos seus apontamentos sobre o que pensa e sente em relação ao irmão, os polícias que tomam nota da queixa com o seu indisfarçado preconceito, os próprios apartes de Édouard que surgem aqui e ali entre parênteses, como se não fosse ele o narrador e autor, mas sim alguém que ao coligir uma série de fragmentos que compõem a versão oficial dos factos não consegue impedir a deixar os seus comentários – percebemos que este relato não é uma confissão mas quase uma carta de amor.
Édouard foi, lamentavelmente, uma vítima. Um jovem homossexual que foi abordado na rua por Reda, um estrangeiro sedutor que o ilude. Esta é a sua história de como uma noite de um amor fugaz entre dois homens estranhos se transforma num pesadelo, de uma noite de amor consentido, pelo menos no início, cujo acto se repete por várias vezes, se converte numa violação e numa violentação que deixa marcas. Mas, e é aí que o livro oprime, Édouard também se apaixona pelo seu agressor, nessa noite em que fizeram amor – é mesmo assim que o acto sexual é designado. Lê-se na contracapa do livro: «A história de Édouard é difícil, íntima e dolorosa; tanto que, sem espaço para devaneios da imaginação, lhe resta apenas o relato agitado, por vezes, implacável, daquilo que a realidade um dia lhe trouxe». Mas na verdade Édouard ilude-se. Ao ponto de inventar pedaços da história do homem que o violentou. De criar histórias que insere na infância do homem que lhe deu atenção naquele dia e que o fez sentir-se especial.
A narrativa de Édouard é narrada de forma honesta e crua, como uma confissão pessoal.
«Nessa noite, não percebia como é que a minha história podia já não me dizer respeito (isto é, que eu estava excluído da minha própria história e que, simultaneamente, estava incluído nela à força, uma vez que me obrigavam a falar ininterruptamente dela, isto é, que a inclusão era a condição da exclusão, que ambas eram uma coisa só (…), a história da qual já não tinha o direito de sair).» (p. 41)
Mas da mesma forma que a história de Édouard rapidamente lhe escapa, o relato do que lhe sucedeu converte-se num retrato da actualidade, em que explora o ódio racial e o mal-estar da França e da Europa de hoje. Porque Reda é cabila (argelino)…
«Mataram-no, foi uma agressão, um árabe estrangulou-o, foi estrangulado por um filho da puta de um árabe» (sempre a mesma tendência para chamar árabe a tudo o que se situa para lá da Espanha, incluindo os portugueses, os gregos e até os espanhóis)» (p. 134)
Releve-se a passagem em que o autor-narrador afirma a sua necessidade de uma clivagem social, de se demarcar da família (o que lembra Regresso a Reims, de Didier Eribon).
«Reda quis saber porque é que, com pouco mais de vinte anos, tinha deixado a família e sobretudo porque é que não passava o Natal com ela. (…) Respondi-lhe que para mim os estudos tinham sido para mim mais uma consequência da minha fuga. Que primeiro tinha fugido. Os estudos, a ideia de estudar tinha surgido muito mais tarde, quando compreendi que esse seria o único caminho possível, ou pelo menos o único caminho que me permitiria afastar-me não só geograficamente, mas também simbolicamente, socialmente, e, portanto, totalmente do meu passado. Podia tornar-me operário, como o meu irmão, numa fábrica a trezentos quilómetros de casa dos meus pais e nunca mais os ver; essa fuga seria parcial. A presença dos meus tios, dos meus irmãos ficaria em mim: o mesmo vocabulário, as mesmas expressões, os mesmos hábitos alimentares e de vestuário, os mesmos interesses e mais ou menos o mesmo modo de vida.» (p. 71)
Édouard Louis nasceu em Hallencourt, França, em 1992. Estudou História na Universidade de Picardia e Sociologia na Escola Normal Superior de Paris. Venceu o Prémio Goncourt para Primeiro Romance com a publicação do seu livro de estreia, Acabar com Eddy Bellegueule (Fumo Editora, 2014 – actualmente esgotado), onde se unem o pendor autobiográfico confessional e a força do romance moderno.
Uma nota acerca da tradução ou revisão do livro: não deixa de ser estranho que a obra de estreia do autor seja mencionada neste romance (aparentemente escrita um mês antes), referindo-se o título original (pág. 82) sem qualquer alusão ao facto de haver edição do mesmo em Portugal. Ver artigo
Mesmo quando iniciamos a leitura de um livro em branco (leia-se in tabula rasa), como normalmente opto por fazer, há ainda assim uma certa expectativa subjacente, um horizonte que criamos mais ou menos involuntariamente e talvez até de modo inconsciente. Pelo título apenas presumi que se tratasse de um romance biográfico que desse conta do processo de escrita de Frankenstein, um dos livros que mais me marcou na adolescência. A narrativa inicia justamente com um cenário idilíco e uma prosa lírica, quando Mary Shelley caminha nua nas margens do Lago de Genebra em 1816. Contudo, no capítulo seguinte, num Reino Unido pós-Brexit, encontramos Ry Shelley, um médico, numa espécie de convenção ou feira de robótica, que pretende estudar de que forma os robôs afectarão a saúde mental e física dos humanos. Ao longo do livro, as duas histórias alternam, e as personagens de uma época encarnam noutra.
Este romance pretende romper com as convenções, ao mesmo tempo que intenta uma crítica mordaz, divertida, ao limiar da realidade que conhecemos, num mundo que se aproxima cada vez mais do imprevisível. Victor Stein (que partilha o nome do médico do clássico de Mary Shelley), é um investigador da Inteligência Artificial; Ry Shelly, outrora mulher, é um médico transgénero, que fornece partes de corpos humanos a Victor, com quem se envolve numa relação amorosa e sexual que não se pretende classificar; Ron Lord, um empresário que tem em mente criar uma inovadora gama de sex dolls; Polly D, uma jornalista em busca de um furo; e Claire, uma cristã evangélica que consegue ver no trabalho de Victor algo de religioso.
É muito particularmente em Ry que parece recair a simpatia da autora, um transgénero que pode aliás ser tomando como transhumano: «Não sou muito alto, com 1,72 metros. A minha constituição é magra. Tenho ancas estreitas e pernas compridas. Quando fiz a mastectomia, não havia muito a remover, e as hormonas já me tinham alterado o peito. Gosto do meu peito como o tenho agora: forte, suave, plano. Uso o cabelo puxado para trás num rabo-de-cavalo, como um poeta do século XVIII. Quando me olho ao espelho, vejo alguém que reconheço. Foi por isso que escolhi não fazer a cirurgia genital. Sou aquilo que sou, mas aquilo que sou não é uma só coisa, um só género. Vivo com a duplicidade.» (p. 84)
Jeanette Winterson entretece neste livro diversas questões actuais, cada uma por si só suficientemente problemática e passível de se ramificar em diversas perguntas existenciais, mas sem querer deter-se demasiado para as aprofundar. A autora pretende sim brincar com este admirável mundo novo onde homens e mulheres preferem robôs que fazem a vez de brinquedos sexuais e de parceiros perfeitos; em que o alcance da imortalidade é uma possibilidade, como em Frankenstein, através da criogenética ou com um simples download dos nossos cérebros para uma cópia de segurança que sobreviva ao nosso corpo e permita um futuro upload num corpo de carbono; em que uma mulher consegue alterar a sua biologia e transformar-se num homem; onde a incerta perfeição da Inteligência Artificial não será, ainda assim, pior que a inteligência humana, até porque num mundo pós-humano, a inteligência artificial vence a raça humana, pois por não ser sentimental tende para os melhores resultados possíveis (p. 71).
«Li hoje que os seres humanos dizimaram 60 por cento da vida selvagem desde 1970. No Brasil, temos um ditador a fazer-se passar por presidente democraticamente eleito que está a abrir a Amazónia aos interesses comerciais. Os seres humanos não têm mesmo melhor hipótese do que a IA. É demasiado tarde para outras opções.» (p. 232)
Contudo, um leitor atento consegue perceber que a narrativa se contradiz, e daí a sua complexidade ou não fosse este livro também uma paródia, pois noutra passagem Victor proclama, numa declaração de amor a Ry, que «Os seres humanos evoluíram. Estão a evoluir. A única diferença, aqui, é que estamos a pensar e a desenhar uma parte da nossa própria evolução. Deixámos de esperar pela Mãe Natureza. Temos todos de crescer. Não é a sobrevivência do mais apto – é a sobrevivência do mais esperto. Nós somos os mais espertos. Nenhuma outra espécie é capaz de interferir com o seu destino.» (p. 140)
Voltando à história de amor entre Victor e Ry, uma pequena nota sobre a tradução do livro. Intitulado, no original, Frankissstein: A Love Story, a Elsinore optou por simplesmente suprimir o subtítulo. É certo que este pouco parece acrescentar, mas se olharmos o grafismo do título, quer no original, quer na capa da tradução portuguesa, com o jogo de cores, percebemos que este contém também um jogo de palavras, pois podemos separá-lo em 3 palavras: Frank kiss Stein. Ver artigo
«Naquela manhã, ao acordar, Jim Sams, esperto, mas algo leviano, depois de uma noite cheia de sonhos perturbadores, viu-se transformado numa criatura gigantesca.» (p. 11)
No início de A Barata, de Ian McEwan, publicado pela Gradiva, com tradução de Maria do Carmo Figueira, é possível reconhecer o início de A Metamorfose, de Kafka. Um texto breve, quase uma novela, que parece responder aos mais recentes acontecimentos de um Reino Unido que decidiu apartar-se da União Europeia. E, para que não restem dúvidas, Jim Sams, o nome do protagonista, faz eco do de Gregor Sams. Mas se a obra de Kafka se caracteriza pela alegoria que faz uso do fantástico, em A Barata impera uma sátira em que tudo é inversão, numa espécie de parábola que pretende ilustrar como o mundo está de pernas para o ar – um pouco como Jim Sams se sente quando acorda, deitado de costas durante um bom tempo, enquanto contempla horrorizado os únicos quatro membros que lhe restam e sente saudades das suas perninhas castanhas. Conforme se vai familiarizando com a sua nova e repugnante aparência humana, sempre a partir da sua perspectiva de barata (capaz de lembrar ainda o gosto das moscas varejeiras), Jim Sams vai recordando fragmentos daquela que é a causa, a missão, que o trouxe do mundo dos insectos e, além dele, outros mais, com que o primeiro-ministro se vai cruzando e que consegue reconhecer de forma algo instintiva.
«Foi durante esses segundos, enquanto fitava o olhar brando de Trevor Gott, o chanceler do ducado de Lancaster, depois o ministro da Administração Interna, o procurador-geral, o líder da bancada, o ministro dos Transportes, o ministro sem pasta, que, num momento surpreendente de reconhecimento instantâneo, uma alegria inusitada, transformadora, transcendente, percorreu todo o seu corpo, passando pelo coração e descendo pela espinha. (…) Praticamente todos os membros do seu Conselho de Ministros partilhavam as suas convicções. Mas, muito mais importante do que isso, e só nesse momento o soubera, partilhavam as suas origens.» (p. 30)
O que estes insectos recentemente convertidos em políticos, de modo a cumprir uma missão em nome do povo, procuram decidir não é o Brexit, mas sim o florescimento de uma economia regressista e que deve ser implementada já no dia 25 de Dezembro, dia em que o comércio está fechado. O autor detém-se com algum cuidado na teoria do regressismo (a ideia não é totalmente nova), procurando explicá-la desde as suas origens, sendo que este consiste na inversão do fluxo do dinheiro. Em suma, a economia será estimulada com o cunho de mais moeda para que as lojas possam pagar aos seus clientes, e os clientes possam pagar pelos seus empregos, da mesma forma que os funcionários pagam um salário para que lhes seja permitido trabalhar, e quanto mais investirem em formação melhor, pois permitir-lhe-á encontrar um trabalho mais dispendioso, pelo que mais compras terá de fazer para o pagar. A lei passa portanto a proibir a acumulação de poupanças, pois o dinheiro parado vence elevadas taxas de juro negativas, o que o reduzirá a nada, obrigando portanto as pessoas a investirem o seu tempo em lojas onde são generosamente compensadas por todos os artigos que conseguirem levar a preço de retalho.
A certa altura a chanceler alemã – que tal como o presidente francês (Sylvan Larousse) ou o presidente americano (Archie Tupper) também passa por esta sátira – pergunta a James Sams «Warum?» (Porquê?), ao que a única resposta possível é «porque sim» (p. 97).
Na narrativa de Ian McEwan esta tese de inversão do que é a ordem natural das coisas afigura-se como a verdadeira crítica a um país que está empenhado em se destruir, vogando contra a corrente mas determinado a servir o seu povo. O livro parece perder um pouco da sua irreverência e ímpeto iniciais, mas a ironia cáustica de Ian McEwan permanece incisiva numa história que se quer com final feliz: «Agora, a Grã-Bretanha estava entregue a si própria. O povo tinha falado. A genialidade do líder do nosso partido permitira o cumprimento do desejo do povo. O destino do povo estava nas mãos do povo. O regressismo tinha sido cumprido! Sem mais hesitações nem demoras! A Grã-Bretanha estava sozinha!» (p. 106) Ver artigo
Este pequeno belo romance inscreve-se na senda de obras como Siddhartha, de Herman Hesse, ou de outras mais recentes, como As Oito Montanhas, de Paolo Cognetti, ou O Amigo do Deserto, de Pablo d’Ors, enquanto apologia do despojamento, da solidão, da natureza como caminho da serenidade e do encontro com a verdade. Uma narrativa sóbria, contida, quase como uma sinfonia em monotom, onde se conta a vida de Andreas Egger, uma existência inteira que, sem ruído nem brilho, atravessa um século.
«Em criança, Andreas Egger nunca tinha gritado nem dado vivas. Aliás, só começara a falar propriamente dito quando entrara para a escola. A custo, arrecadara um punhado de palavras que, em ocasiões raras, recitava aleatoriamente. Falar significava chamar a atenção, o que nunca era uma boa coisa. Chegara à aldeia muito novinho, numa carruagem puxada por cavalos, no verão de 1902, vindo de uma povoação distante, para lá das montanhas. Quando o tiraram da carruagem, ficou parado, mudo, de olhos arregalados, observando, estupefacto, os cintilantes cumos brancos. Devia ter cerca de quatro anos, na altura» (p. 13)
Criado por um familiar distante, um agricultor que apenas acolhe a criança pela bolsa de notas que traz ao pescoço e o agride a despropósito com uma vara de avelaneira, Andreas tudo suporta de forma estóica, quase bovina, numa espécie de mutismo animal, sem nunca se queixar, sem nunca gritar, mesmo quando fica fisicamente marcado pelas sovas que sofre, que o deixam com uma perna torta e coxo. A resiliência de Egger, aliada à sua força física, permitem-lhe sobreviver à perda da única mulher que amou por breves e fugazes instantes, à guerra, à fúria das avalanches das montanhas alpinas, à chegada do progresso quando o vale é devassado por maquinaria para a construção de um teleférico.
Após o seu passeio de quase um século pela vida, Egger converter-se-á em guia da montanha: «Em vez de falar, preferia ouvir as pessoas, cujas conversas ofegantes lhe revelavam os segredos de outros destinos e opiniões. As pessoas iam às montanhas claramente em busca de algo que acreditavam ter perdido havia muito tempo. Ele nunca conseguiu perceber ao certo o que era, mas, ao longo dos anos, foi-se convencendo de que os turistas avançavam pela montanha fora, não tanto atrás dele, mas atrás de um qualquer anseio obscuro e insaciável.» (p. 92)
Publicado pela Porto Editora, Uma Vida Inteira, de Robert Seethaler, foi Livro do Ano em 2014 na Alemanha onde vendeu mais de um milhão de exemplares, foi finalista do Man Booker International em 2016 e do International Dublin Award em 2017. Ver artigo
Se o disseres na montanha foi o romance de estreia de James Baldwin, publicado em 1953 e só agora traduzido por Isabel Lucas e publicado entre nós pela Alfaguara. O autor nasceu em 1924 em Nova Iorque, cresceu no bairro de Harlem, e viajou para Paris em busca de liberdade para se poder encontrar como homem negro e homossexual.
A narrativa centra-se no dia do décimo quarto aniversário de John Grimes, dia em que se cumpre também o vaticínio de que John um dia quando crescesse seria pregador tal como o seu pai (na verdade, o padrasto), que lhe diz ser feio, o mais baixo da turma, o rapaz que não tem amigos.
«A John, que se destacava na escola – mas não em matemática nem em basquetebol, como Elisha -, foi dito que teria um grande futuro. Que poderia tornar-se o Grande Líder do Povo de Deus. John não estava assim tão interessado no seu povo e menos ainda em liderá-lo no que quer que fosse, mas a frase tantas vezes repetida surgiu na sua mente como um grande portão de ferro que se abre para ele e dá para um mundo onde as pessoas não viviam na escuridão do pai (…)» (p. 22)
Na manhã de um sábado de Março, em 1935, John reflecte na admoestação pública que o seu amigo Elisha e Ella Mae receberam num sermão de domingo, acusados de corporizarem o pecado entre a congregação. No momento dessa denúncia pública termina a possibilidade de estes dois jovens continuarem a encontrar-se, ainda que de forma inocente, a não ser um dia mais tarde ao abrigo do casamento, para terem filhos e educá-los na igreja. E é também nesse domingo, dias antes do seu aniversário, que «John percebeu que aquela era a vida que o esperava – que teve realmente consciência de alguma coisa não muito distante, mas iminente, a aproximar-se de dia para dia» (p. 20).
Inspirada na sua própria vida, esta história retrata a luta interior de um jovem que teme e odeia o padrasto, ele próprio um homem imperfeito e violento, enquanto simultaneamente o encara como um modelo a seguir. Aliado a esse dilema, persiste ainda outra clivagem maior, um segredo ainda inominável mas que é já perceptível ao longo deste romance, mas que apenas irrompe numa outra obra do autor, que será publicada ainda neste ano de 2020 pela Alfaguara – O Quarto de Giovanni. Nunca é expresso de forma absoluta e incontornável, mas ao longo deste livro, especialmente na primeira parte, mais centrada na perspectiva de John, os indícios homoeróticos na relação entre John e Elisha são vários. John pensa em Elisha «que era alto e belo, que jogava basquetebol e que aos onze anos tinha sido salvo das impensáveis plantações do Sul» (p. 20). John assume que pecou. «Apesar dos santos, do pai e da mãe, dos avisos que ouviu desde o princípio dos seus dias. Pecara com as suas mãos um pecado difícil de perdoar. Na casa de banho da escola, a pensar em rapazes, mais velhos, maiores, valentes, que faziam apostas uns com os outros sobre quem conseguia o maior arco de urina, e viu acontecer em si uma transformação de que não se atrevia a falar.» (p. 21) Porém, a par da consciência de John do pecado que o marca, e que o diminui aos olhos dos outros, em particular do padrasto, reside também em si a percepção de que se demarca dos outros por motivos diferentes, como aconteceu um dia quando aos 5 anos a directora da escola vê a sua caligrafia no quadro e lhe diz «És um rapaz muito esperto, John Grimes» (p. 23)
Um rapaz esperto num mundo de brancos, em que para combater a injustiça, como a falsa acusação que recai sobre Richard, o verdadeiro pai de John, Elizabeth, a sua mãe, mantinha «a cabeça levantada, o olhar em frente e sentia a pele assentar sobre os ossos como se usasse uma máscara» (p. 189).
«Olhou para as ruas calmas e soalheiras e, pela primeira vez na vida, odiou aquilo tudo – a cidade branca, o mundo branco. Naquele dia, não foi capaz de pensar numa única pessoa decente no mundo inteiro. Sentou-se ali e esperou que um dia Deus, através de torturas inconcebíveis, os levasse à humilhação total e lhes fizesse saber que os rapazes negros e as raparigas negras, que tratavam com tanta condescendência, tanto desdém, e tão bom humor, tinham corações como os seres humanos, corações mais humanos do que os deles.» (p. 193)
Um mundo fechado, em que um homem não pode fugir ao isolamento e à diferença que a cor da sua pele lhe impõe, John carrega ainda essa outra cruz, a de amar o seu semelhante.
Go tell it on the mountain é o nome de uma música gospel, sobre o nascimento de Cristo, aqui possivelmente associada à conversão de John, ao seu renascimento em Cristo. E como é próprio de um sermão, como o Sermão da Montanha que disserta sobre os valores e princípios de uma vida cristã, a prosa de James Baldwin entretece simbolismo e lirismo. E, neste caso, a fúria sexual de um jovem a desabrochar é temperada pelo erotismo da sublimação do desejo. Ver artigo
Jonathan Coe nasceu em Birmingham, em 1961. Em 2004, foi nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras de França. O Coração de Inglaterra, agora publicado pela Porto Editora, regressa ao díptico Rotter’s Club (2001) e O Círculo Fechado (2004), onde, curiosamente, já se prenunciavam alguns dos temas aqui explorados, 18 a 15 anos antes, naquele que é considerado o primeiro romance pós-Brexit (a par de A Barata, de Ian McEwan, que apresentarei em breve). Iniciado em 2016, logo após o referendo que conduziu à retirada do Reino Unido da União Europeia, este livro é uma inteligente sátira, onde não falta humor, que não se aparta muito da realidade – apenas a disseca aos olhos de múltiplas personagens de diferentes gerações. Começa com o funeral da mãe de Benjamim, o que simboliza em si a morte de uma velha Inglaterra – não é mera coincidência que a música que Benjamim ouve nessa noite tenha por mote «Adeus, antiga Inglaterra». De entre as várias personagens do romance, destacar-se-á Benjamim, um escritor de meia-idade, cuja geração é a do autor, e que tal como ele é um escritor, embora o seu romance seja um projecto inacabado de há décadas e com uma envergadura intimidante…
A expressão que dá origem ao título original do romance, Middle England, é referida várias vezes. Primeiramente, como alusão à Terra Média de Tolkien, como se a Inglaterra do livro fosse uma realidade alternativa, quando está, afinal, muito próxima da realidade, explorando de forma irónica e acutilante diversos temas que ajudam a reconhecer a complexa trama social e política que resultou no Brexit: «- As pessoas da Inglaterra Média (…) votaram em David Cameron por não terem verdadeira escolha. A alternativa era impensável.» (p. 230) Em segundo lugar, a expressão Inglaterra Média designa as pessoas da classe média que tendem ao conservadorismo e vivem fora de Londres – um pouco como Benjamim que vive num moinho junto ao rio, um verdadeiro cenário idílico campestre –, ou seja os eleitores que, supõe-se, terão votado a favor do Brexit, pois constatou-se que em Londres a maioria votou contra.
O romance analisa, de forma audaz, a nova Inglaterra, politicamente correcta, onde a caçada à raposa é agora proibida, não tanto pela violência deste “desporto” mas por uma questão de luta de classes, e centra-se num país multicultural – ainda que personagens como Sohan e Aneeha sejam secundárias – onde até na literatura se reflecte como «o tempo do grande escritor britânico branco e de meia-idade acabou finalmente» (sim, Coe também cabe nesta categoria), pois agora há «mais mulheres, mais escritores negros, asiáticos e de outras minorias étnicas» (p. 237). Ver artigo
Pablo d’Ors nasceu em Madrid em 1963, estudou teologia e filosofia, é escritor e sacerdote católico. Em 2014 fundou a Associação Amigos do Deserto e em 2015 foi nomeado para o Conselho Pontifício da Cultura pelo Papa Francisco. O Amigo do Deserto é a estreia do autor na Quetzal, numa belíssima edição de bolso em capa dura, que faz deste livro um companheiro ideal de viagem e de meditação.
Corre o leitor o risco de tomar o narrador pelo autor, mas a história de Pavel poderia até ser a do autor. Na linha de obras como Siddhartha, de Herman Hesse, ou de outras mais recentes, como As Oito Montanhas, de Paolo Cognetti, O Amigo do Deserto é um relato de um homem em busca de um destino que acaba por se revelar como o encontro consigo mesmo. Diz-se, aliás, na sabedoria tuaregue, que Deus criou o deserto para que os homens pudessem encontrar-se consigo mesmos.» (p. 56)
Embora a primeira parte do livro seja mais ficcionada, e um pouco mais frágil, a história desta demanda, que começa como uma excursão ao jeito do turismo de massas, tornar-se-á um tratado filosófico de como a vida por vezes nos puxa o tapete e um destino que primeiro se estranha depois se entranha. Pavel, um homem de trinta e dois anos, depara-se com um livro que o leva a querer ingressar na Associação dos Amigos do Deserto. Apesar de não se tratar de uma seita ou de uma ideologia partilhada por uma comunidade, Pavel descobre que até se ser aceite neste grupo há todo um processo, que passa, ainda assim, por deixar de lado muitas das certezas que o regem. Depois de uma viagem a Marrocos em que tudo corre mal, Pavel apenas deseja voltar a casa, até que, mais tarde, escuta o apelo do deserto, esse cenário místico cujo silêncio «único e inconfundível» permite que ressoe o essencial (p. 38), e vivencia «a coisa maior que uma viagem pode proporcionar ao viajante: o desejo de ficar, a necessidade de não voltar, o impulso – irresistível – de nascer de novo.» (p. 75). Ver artigo
Todas as Almas, de Javier Marías, o mais recente livro de um dos mais destacados escritores espanhóis da actualidade, cuja obra tem vindo a ser publicada pela Alfaguara, é um canto melancólico de amor, de solidão, da sensação de ser estrangeiro.
O narrador sem nome, por vezes apelidado de «o espanhol», é professor de Tradução na universidade de Oxford e, dois anos depois, casado e pai de um menino, descreve-nos os dois anos que lá viveu, à semelhança do autor – pois aqui funde-se, ainda que apenas ligeiramente, autobiografia e ficção. Além de que mesmo enquanto divaga e relembra, a própria memória do narrador parece iludi-lo, como quando descreve um possível reencontro com uma jovem: «acho que me cruzei», «apercebi-me de que era ela – ou julguei aperceber-me», «não tenho a certeza se era ela» (p. 124).
Ainda que este romance evoque o ambiente de campus de outros romances académicos, onde se retratam figuras académicas com os seus tiques e idiossincrasias, Marías pinta um cenário onde todas as almas se cruzam e desencontram, como acontece, por exemplo, com a jovem da estação de comboio de Didcot, onde todos os encontros se revestem de uma aura de mistérios, pois em Inglaterra os desconhecidos não falam entre si. O narrador é um dos solteiros que predominam em Oxford, «outro perpetuador da velha tradição secular clerical daquele lugar imutável e inóspito e conservado em calda» (p. 156), e vive uma relação fugaz com Clare Bayes (uma das poucas mulheres professoras na universidade), medida a toques de sino e despertadores, por vezes uma «turbulenta e rápida meia hora entre duas aulas» (p. 97), nem sequer o suficiente para se despirem.
Esta não é uma história de amor, mas de desejo e solidão, pois este estrangeiro vive mais intensamente a lembrança e a expectativa de um encontro fugaz com a sua amante do que a relação amorosa que estabeleceu com ela. Um amante é sobretudo um ouvinte da nossa história, o reconhecimento de um eu num tu, contudo «os amantes são parcimoniosos, voluntariosos e entusiasmados, mas não durante muito tempo, e é assim que deve ser. Essa é a vossa função e também a vossa graça. (…) A nossa missão não é durarmos muito, não persistirmos, não permanecermos, porque se durarmos um pouco mais do que é suposto então lá se vai a graça e começam os sofrimentos e acontecem tragédias.» (p. 188) Ver artigo
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