«O amor, dizem, escraviza, a paixão é um demónio e muitos se perderam por amor. Eu sei que isso é verdade, mas também sei que, sem amor, andamos às cegas no túnel das nossas vidas e nunca vemos o Sol.» (p. 199) Ver artigo
Publicada pela Antígona, em Março deste ano, Tono-Bungay é, possivelmente, a obra mais complexa de Herbert George Wells (1866-1946), e para muitos a sua obra-prima. Romancista visionário, considerado como o pai da ficção, conhecido principalmente por A Máquina do Tempo (1895), O Homem Invisível (1897) ou A Guerra dos Mundos (1898). Ávido leitor de Jonathan Swift e Charles Dickens, nota-se aqui uma influência deste último, na forma como narra a vida do protagonista desde a sua tenra idade. Tono-Bungay (1909) apresenta-se como as memórias de George Ponderevo, desde a sua juventude vitoriana até à idade adulta na Londres industrial, na qual consegue ganhar uma posição de privilégio e destaque ainda que às custas do negócio de um elixir milagroso, cujas propriedades são meramente por sugestão através de publicidade enganosa, negócio cuja legitimidade o próprio George contesta desde o início, todavia sem que isso o impeça de participar na tramóia do tio, enquanto procura prosseguir com outros projectos, nomeadamente o de querer voar (podendo este desejo de voar ser uma metáfora para ascensão social). Tal como o autor, o protagonista e narrador é um homem de ciência: há quem defenda que o próprio romance é, em parte, autobiográfico. Mas a principal personagem, apesar de parecer ser tão somente o cenário, é a cidade de Londres, pano de fundo para uma forte sátira social, eivada de ironia, e uma crítica profunda ao capitalismo, aqui ainda nos seus primórdios, que se distende a partir da época industrial, bem como à clivagem social:
«É uma cidade grandiosa. Imensa. A cidade mais rica do mundo, o maior porto, a maior cidade industrial, a capital do império: o centro da civilização, o coração do mundo! (…) Pobreza como esta, não encontras em Wimblehurst, George! E muitos deles estudaram em Oxford.» (p. 107)
É um romance que requer tempo, cuja narrativa revoluteia numa respiração calma, em crescendo, ao longo de 469 páginas, em que a narrativa e o primor da linguagem se entrelaçam magnificamente, sem nunca largar a atenção deliciada do leitor, mesmo quando incorre numa natureza mais próxima do fantástico ou do romance de aventura. Ver artigo
Quando estreou, em Abril de 2017, a série televisiva do canal de streaming Hulu que adaptava A História de uma Serva, de Margaret Atwood, superou todas as expectativas. A série The Handmaid’s Tale, que segue agora para a quarta temporada, tornou-se uma das mais populares dos últimos anos, até pela irónica coincidência de Gileade parecer representar o futuro dos Estados Unidos da América, com a eleição de Trump. A própria autora chega a aparecer numa das cenas mais perturbadoras da série. Entretanto, as distopias parecem ter-se tornado uma possibilidade cada vez mais próxima – parece aliás que vivemos numa, com esta pandemia, que levou a que praticamente o mundo inteiro se fechasse em casa.
Os Testamentos, com tradução de Sofia Ribeiro, surge agora publicado pela Bertrand Editora, depois de ter sido lançado internacionalmente em 2019 e é a continuação, ou a conclusão, da história de Gileade, 35 anos depois da obra anterior. A intriga da narrativa tem lugar 15 anos depois do final em aberto de A história de uma Serva, até porque a segunda temporada da série se torna completamente independente da obra de Margaret Atwood. E a autora, depois de obras menos conseguidas como O Coração é o Último a Morrer, está aqui em pleno fôlego criativo, tanto que arrecadou novamente o Booker Prize de 2019 com este livro. A narrativa alterna entre a história de três mulheres, totalmente diferentes: Agnes Jemima é uma jovem já criada no regime de Gileade, filha de um dos Comandantes mais destacados; Daisy foi criada no Canadá, país vizinho de Gileade; e a terceira narradora é uma mulher mais velha, uma das Fundadoras de Gileade, com direito a estátua e a oferendas de laranjas e ovos que roçam a idolatria.
Margaret Atwood consegue manter toda a suspensão de um mundo possível que é tão ou mais plausível do que a realidade que hoje vivemos, e fá-lo com a deliciosa ironia e humor a que nos habituou: «Se queres fazer Deus rir, conta-lhe os teus planos, costumava-se dizer; se bem que, nos dias que correm, a ideia de Deus a rir está muito perto da blasfémia. Um sujeito ultrassério é o que Deus é agora.» (p. 230)
É absolutamente brilhante que se tome como protagonista uma das vilãs do livro anterior, pois a Fundadora é ninguém mais do que a execrável Tia Lydia: um pouco mais humana ou ambígua na série do que no livro, na minha perspectiva… Além de que é também ela que interpela directamente o leitor, sem qualquer pejo em revelar como a sua mente retorcida e sinuosa é capaz de tecer uma teia de aranha fatal, em que o destino das duas jovens se entretece…
É ainda muito inteligente da autora procurar responder, com esta obra, aos leitores que lhe perguntavam como é que afinal caiu o reinado de Gileade, ao mesmo tempo que tirou partido do sucesso da série e do seu impacto junto de milhares de espectadores para pegar em algumas pontas soltas, mesmo quando estas nada têm a ver com a sua obra original… Por isso, ficaremos a saber o que aconteceu, 15 anos depois, com a Bebé Nicole (este nome é tomado da série), a filha da protagonista do romance anterior, bem como o que aconteceu afinal com Offred (Defred) – este nome é um patronímio, composto pelo pronome possessivo e pelo nome do seu dono.
É quase impossível parar ao longo das 450 páginas deste livro, especialmente nas últimas 50 páginas, em que a acção se precipita e os capítulos são cada vez mais curtos, contando apenas o essencial da acção. A primeira parte do livro, contudo, forma-se num lento crescendo, em que as histórias alternadas tornam o cenário de Gileade vívido, ao mesmo tempo que se pressentem as falhas e fracturas que preparam a sua queda, laboriosa e ardilosamente tecida pela mais inesperada das personagens, cujas intenções a autora consegue indiciar muito subtilmente, sem nunca empurrar verdadeiramente o leitor. Além de que é muito difícil não sentir alguma piedade cristã pela Tia Lydia, antes uma poderosa juíza e defensora dos direitos das mulheres, conforme percebemos como foi tratada, assim como as outras mulheres, quando os E.U.A. se transformam no país ultra-religioso e patriarcal de Gileade. Ver artigo
A justificar a existência de um cânone clássico (ainda que haja quem prefira evitar tais preconizações), isto é, uma lista de obras literárias que se tornam intemporais, universais, incontornáveis, os tempos estranhos que vivemos ultimamente parecem ter recuperado obras de há décadas que, subitamente, se tornaram actuais e prementes. Foi o caso da explosão de vendas de 1984, quando Trump foi eleito, e, mais recentemente, no rasto da pandemia do Corona Vírus, A Peste, de Albert Camus, ou Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Por isso mesmo, muito se tem brincado nas redes sociais com fotos de avisos afixados em bibliotecas e livrarias onde se afirma algo como “mudámos todos os livros de distopias pós-apocalípticas para a secção de história contemporânea”.
Não quero aqui, e para variar um pouco, fazer uma reflexão em torno da obra, ou uma recensão, mas antes um artigo de opinião (chamemos-lhe assim, por ora), detendo-me em particular em algumas das frases das primeiras páginas deste livro recentemente relançado pela editora Livros do Brasil. Se as frases de abertura do romance nos distanciam imediatamente da realidade narrada, quando explanam que «Os curiosos acontecimentos que servem de assunto a esta história produziram-se em 194…, em Orão. Segundo a opinião geral, não estavam aí no seu devido lugar, antes saíam um pouco do habitual.», logo em seguida o narrador toca no que me parece ser um dos pontos sensíveis das últimas semanas, no que concerne à quarentena vivida em Portugal.
«Sem dúvida, nada há de mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e perderem em seguida, a jogar às cartas, no café, ou a dar à língua, o tempo que lhes resta para viverem.»
E assiste-se hoje, entre muito humor e algum desespero, a uma série de publicações e diários de quarentena em que os portugueses dão conta de como, de facto, parecem ter-se esquecido de viver. De parar. De se ouvirem respirar. De acordar de manhã sem ter que seguir uma agenda. E não, não digo que teletrabalho equivale a férias. Mas talvez pudesse ajudar a repensar um novo modelo de trabalho, que nos permita ter mais tempo para nós e para os nossos. Ou simplesmente para nós, porque sim, defendo o egoísmo e acredito que cada dia passado na nossa companhia é tempo precioso.
Mas Camus, ou melhor dizendo, para se ser literariamente ético, o narrador, prossegue com deliciosa ironia: «Mas há cidades e países onde as pessoas têm, de tempos a tempos, a suspeita de que existe mais alguma coisa. Isso, em geral, não lhes modifica a vida.»
Tornaram-se virais publicações de como a poluição se reduziu drasticamente desde a proliferação do Covid-19, e de como golfinhos e cisnes voltaram a Veneza, porém, tal como um vírus, estas são nocivas, pois são mentira. Num momento de crise, em que o maior perigo é invisível e vem do outro, o mundo viu-se obrigado a parar. O país inteiro viu-se obrigado a parar. E esta pode ser uma excelente oportunidade para repensarmos o nosso papel, o nosso propósito, o nosso caminho. Ou, como alerta Camus-narrador, podemos simplesmente passar pelos sinais de alerta sem que nada se modifique em nós. Ver artigo
Uma das obras mais controversas de Roth é também a mais recente publicada pela Dom Quixote, que já publicou mais 19 obras, e que, tal como as 11 anteriores, conta com tradução de Francisco Agarez.
Originalmente publicada em 1993, Operação Shylock tem o subtítulo Uma Confissão. Se nalgumas das suas obras emblemáticas é manifesta a presença de elementos autobiográficos, o autor vai mais longe nesta obra irreverente, em que assume a autoficção ao extremo, dando forma física a um segundo Philip Roth, conforme anuncia logo na sua primeira frase: «Soube da existência do outro Philip Roth em janeiro de 1988» (p. 17).
Philip Roth, o autor, descobre que há um impostor a fazer-se passar por ele e que ainda por cima advoga a fantástica e mirabolante teoria do diasporismo: «O diasporismo propõe-se reconstruir tudo, não num Médio Oriente hostil e ameaçador, mas sim naquelas terras onde em tempos tudo floresceu, ao mesmo tempo que procura evitar a catástrofe de um segundo Holocausto causado pelo esgotamento do sionismo como força política e ideológica» (51) Ou seja, cinquenta anos depois, reinstalar judeus na Polónia, na Roménia, na Alemanha, num caminho inverso ao genocídio nazi.
Operação Shylock é assim um arrojado exercício de metaficção, com momentos hilariantes, em que o autor põe a nu os seus próprios mecanismos de escrita e a forma como se desdobra nas suas personagens: «Embora a ideia tivesse provavelmente sido suscitada pelo comentário de Aharon, de que tinha a sensação de estar a ler-me uma história escrita por mim, a verdade é que não passava de mais de uma ridícula tentativa minha de converter numa construção mental daquelas que, por profissão, tão bem conhecia aquilo que mais uma vez se havia revelado em toda a sua realidade objetiva. É Zuckerman, pensei, temperamentalmente, estupidamente, fantasiosamente, é Kepesh, é Tarnopol e Portnoy – são todos eles num só, evadidos dos livros e sarcasticamente reconstituídos como um único fac-símile satírico de mim.» Em suma, se não é alucinação, nem sonho, «então só pode ser literatura» (p. 38).
Nascido em 1933 e falecido em 2018, é dos autores norte-americanos mais destacados, que invariavelmente aborda a temática judaica, de forma bastante controversa, o que lhe valeu o ódio de uma parte da comunidade. Voltarei a Roth, um dos meus autores favoritos, dentro em breve com A Conspiração contra a América, provavelmente a mais premiada das suas obras, cuja adaptação a série televisiva está agora a ser exibida. Ver artigo
Se há livro cuja leitura se revelou bastante adequada a estes estranhos tempos que vivemos, não hesito em apontar este livro que é já um clássico. O último livro de Italo Calvino publicado em vida (cuja obra é editada entre nós pela Dom Quixote) parece representar uma indagação filosófica em torno de um sentido para o mundo, para as coisas do mundo, para o sentido de nós próprios no mundo. Com uma estrutura rigorosamente delineada, a narrativa reparte-se em 3 partes, que por sua vez se subdividem em 3 secções ou capítulos, que por conseguinte também se dividem de forma tripartida.
O senhor Palomar é um homem nervoso, tenso e inseguro, ou não vivesse ele num «mundo frenético e congestionado» (p. 15), apesar de tentar manter as suas sensações sob controlo e reduzir ao máximo as suas relações com o mundo exterior. Mas é também no mundo exterior que ele procura um sentido para o mundo – e não é por acaso que tem o nome de um famoso observatório da Califórnia, hoje conhecido como telescópio Hale – a partir da observação dos mais variados elementos: uma onda; a espada de luz solar que cai no mar; um seio feminino (a que ele tenta mostrar indiferença); o eros no choque de carapaças de duas tartarugas; os planetas e estrelas, vistos a olho nu; uma osga ou uma revoada de estorninhos; um prado; banha de ganso; queijos; etc.; etc…
E conforme Palomar procura deter-se apenas na superfície das coisas, observando-as do lado de fora, a sua observação conduz-nos às suas próprias indagações e meditações: «Palomar está distraído, deixou de arrancar as ervas daninhas, já não está a pensar no prado: pensa no universo. Está a tentar aplicar ao universo tudo aquilo que pensou a propósito do prado. O universo como cosmos regular e ordenado ou como proliferação caótica. O universo que talvez seja finito mas que é inumerável, instável nos seus confins, que se abre dentro de si a outros universos. O universo, conjunto de corpos celestes, nebulosas, poeiras, campos de força, interseções de campos, conjunto de conjuntos…» (p. 45)
O senhor Palomar é, muito certamente, o autor Italo Calvino – como se afirma aliás na contracapa do livro –, podendo este livro ser uma espécie de testemunho das suas mais ousadas e prementes inquietações existenciais ou meras reflexões levadas ao sabor do vento. Ver artigo
Gabriel planeia celebrar o octagésimo aniversário da mãe e, para isso, terá de contactar as suas duas irmãs Sonia e Andrea, com o propósito de reunir a família para este evento que deveria ser motivo de celebração e alegria. Depois de tanto tempo, um almoço de aniversário afigura-se a ocasião perfeita para se voltarem a juntar todos. Mas esta não é uma família dessa natureza. Se todas as famílias são felizes à sua maneira, esta sabe foçar particularmente bem na infelicidade e no rancor. Por isso mesmo esta sinopse enganosamente simples não pode dar conta da complexidade e singularidade deste romance.
Luis Landero constrói um poderoso romance polifónico, cuja maioria dos capítulos constitui diálogos, sempre por telefone, em que a conversa telefónica do momento alterna ainda, por vezes de modo sobreposto, com conversas anteriores que estão a ser agora relatadas ou recontadas ao telefone, pois quer Sonia quer Andrea, assim que ficam a par da intenção do irmão, ligam para a cunhada Aurora, a mulher de Gabriel, com quem desabafam as suas mágoas e os seus rancores. E é nesses telefonemas de Sonia, Andrea e, por vezes, até da mãe delas para Aurora, a confidente, sempre atenciosa e atenta, que estas mulheres destilam a peçonha que, décadas depois, continuam a conseguir extrair de velhos episódios familiares, retratados conforme a perspectiva de cada uma: «cada qual com a sua história, horas e horas de histórias intermináveis, quase todas cheias de minúcias mil vezes ouvidas e que elas nunca se cansavam de repetir, com as suas versões contraditórias, onde não havia episódio, por mais pequeno que fosse, que não tivesse variantes, que não rebatessem ou negassem entre elas, que não admitissem os mais prolixos e tortuosos comentários, de modo que Aurora tinha a esgotante impressão de estar imersa num pesadelo de que era impossível despertar.
E assim, ano após ano, todos os dias de todos os meses, a qualquer hora, foi ficando a saber o argumento exato das vidas deles.» (p. 195)
Um só acontecimento origina assim várias versões, relatos antagónicos, sentimentos díspares, conforme é lembrado por cada uma das personagens. A narrativa abre e fecha com Aurora, que pelo seu sorriso bonito e triste, o seu ar terno e melancólico, sempre se revelou uma boa confidente para as histórias dos que com ela convivem. Mas Aurora coloca em risco a sua própria inocência e paz de espírito quando finalmente percebe que não há histórias inocentes, enquanto se deixa enredar nas teias de aranha destas histórias familiares: «(…) todas as versões de todas as histórias acabam por confluir em Aurora. Ela é, na verdade, a única dona absoluta da história, aquela que sabe tudo, o enredo e o avesso do enredo, porque só confiam nela e só falam com ela, com todo o tipo de detalhes, sem vergonha nem reparos, todos e cada um dos implicados nesta história, que começou por ser trivial e até festiva e que acabou em ruína e em desastre, como ela intuiu desde o primeiro momento.» (p. 13)
Uma forte particularidade do romance é o modo como a vida das personagens é sempre tratada como uma história, em que todas elas são autoras das suas próprias narrativas, mesmo quando essa é uma narrativa vazia: «Nunca, nunca, mesmo que não aconteça nada, as pessoas param de contar a sua história e, se o Inferno existir, também nele continuarão a contá-la ao longo de séculos e mais séculos, dando corda uma e outra vez ao brinquedo das palavras, tentando compreender minimamente o mundo apalpando o absurdo da vida em busca talvez de um botão que abra o seu fecho cego, como a gruta de Ali Babá ante o conjuro da palavra mágica, revelando-nos o grande tesouro da razão, da luz, do real sentido das coisas…» (p. 199)
A acção decorre ao longo de seis dias apenas, em que os segredos familiares são desenterrados, até que se desvela uma história particularmente macabra em torno de um homem que tem em casa um museu de brinquedos e que trata a mulher como se fosse a sua criança…
Luis Landero, considerado um dos nomes essenciais da literatura espanhola, nasceu em Badajoz, em 1948. Licenciado em Filologia Hispânica pela Universidad Complutense, lecionou Literatura na Escuela de Arte Dramática de Madrid e foi professor convidado em Yale. Estreou-se na literatura em 1989, com o romance Jogos da Idade Tardia (Prémio da Crítica e Prémio Nacional de Narrativa 1990). Chuva Miúda, agora publicado pela Porto Editora e com tradução de Miguel Filipe Mochila, foi considerado pela crítica o Melhor Romance do Ano em Espanha. Ver artigo
Ao fechar este livro a frase que ressoa é: nunca devemos voltar ao lugar onde fomos felizes.
Neste magnífico exercício literário, publicado pela Sextante e com tradução de José Lima, Philippe Besson revela-nos um narrador mentiroso, que facilmente cria histórias e situações em torno das pessoas com que se cruza, pelo que o leitor fica prevenido desde logo para a possibilidade de toda a narrativa ser, também, uma mentira. Mas uma invenção que ainda que falsa nos arrebata completamente, que nos aperta o coração, e cujo final pode provocar lágrimas. Um sentimento de perda tão forte quanto o que o narrador experiencia.
Em França, no ano de 1984, dois jovens de mundos completamente distintos no Liceu acabam por se aproximar, atraídos pela sincronia de olhares fugidios e desencontrados, e apaixonam-se. Vinte e três anos depois, o narrador, agora um conhecido escritor, encontra um jovem que é estranhamente parecido com Thomas, o objecto da sua paixão adolescente.
As mentiras do título parecem adquirir um duplo sentido, conforme prosseguimos a leitura. Se, por um lado, a mãe do narrador, inquieta, o advertia: «deixa-te de mentiras, dizia mentiras em vez de histórias, pois ele sempre gostara de «inventar vidas a desconhecidos» com quem se cruza (p. 9), por outro lado, a mentira pode representar a própria história que alguns homens criam para si próprios, ao seguir os preceitos e expectativas ditados pela família – herdam o seu legado, casam, constituem a sua própria família.
«Penso naqueles com quem me cruzei por ocasião de alguns encontros em livrarias, esses homens que me confessam terem mentido a si próprios durante anos e anos (…).
Aqueles que não deram esse passo, que não procuraram pôr-se de acordo com a sua natureza profunda, não são forçosamente medrosos, serão talvez desamparados, desorientados; perdidos como se está perdido no meio de uma floresta demasiado vasta ou demasiado densa ou demasiado escura.» (p. 155)
Evitando confundir o narrador, também ele escritor, com o autor, Philippe Besson é um romancista francês de renome, nascido em 1967. Este livro, a ser adaptado para o cinema, venceu o Prémio Maison de la Presse, Melhor Livro LGBTQ da Oprah Magazine, Escolha do Editor da New York Times Book Review e Melhor Romance Gay da The Advocate. Ver artigo
O Silêncio das Mulheres, da autoria de Pat Barker, vencedora do Booker Prize, com tradução de Tânia Ganho, foi recentemente publicado pela Quetzal.
Pat Barker dá voz na primeira pessoa a Briseida, rainha de Lirnesso – cidade tomada anos antes de Tróia –, que é reclamada como troféu de guerra por Aquiles, tornando-se sua escrava, e reconta no feminino a Ilíada dos guerreiros gregos e troianos, que conta os feitos e façanhas dos heróis masculinos sobejamente conhecidos, como Aquiles, Pátroclo, Ájax, Odisseu (Ulisses), Páris, Agamémnon, Menelau ou Heitor: «diz-me a experiência que os homens são estranhamente cegos à agressividade nas mulheres. Eles é que são os guerreiros, com os seus elmos e couraças, as suas espadas e lanças, e parecem não ver as nossas batalhas; ou preferem não as ver. Se tomassem consciência de que não somos as criaturas brandas por que nos tomam, talvez isso lhes perturbe a paz de espírito.» (p. 18)
A narrativa flui como se se tratasse de um depoimento prestado por Briseida, em que a interpelam e questionam, e onde não faltam interjeições, como «Ai» e «Oh». Em alguns capítulos, contudo, percebemos que a perspectiva descentra-se de Briseida e centra-se em Aquiles, ainda que a narração seja na terceira pessoa.
A prosa foca-se mais na narração do que na descrição, mas há passagens absolutamente arrebatadoras, mesmo quando se trata de descrever o grotesco da guerra: «Durante uns momentos, os cães arreganhariam os dentes e rosnariam aos pássaros negros, que descreviam círculos no céu,e aos abutres desajeitados e expectantes. De quando em vez, os pássaros erguer-se-iam todos no ar e, depois, pousariam lentamente, assentando como farrapos de tecido queimado, restos carbonizados das sumptuosas tapeçarias que antes forravam as paredes do palácio. Os cães empaturrar-se-iam até vomitarem e, em seguida, escapulir-se-iam da cidade, fugindo dos incêndios a cidade, e então seria a vez dos pássaros.» (p. 30)
Guerra essa que tem tanto de desumano como de entediante, também feita de momentos raros, mesmo quando se arrastam por 10 anos: «Por vezes, em plena batalha, há um momento de acalmia, em que o tempo abranda, os gritos e o clamor esmorecem e uma pessoa vê as veias vermelhas nos olhos de um inimigo e sabe – não é acredita, nem tem esperança – sabe que é impossível falhar. Esses momentos são raros. Nos restantes noventa e cinco por cento do tempo, a guerra não passa de uma labuta entediante e sangrenta, composta em partes iguais de tédio e horror, mas depois surge novamente esse momento brilhante, em que o estridor da batalha se esbate e o corpo se torna uma vara que liga céu e terra.» (p. 234)
O Silêncio das Mulheres reescreve a Guerra de Tróia no feminino. Esta reconstrução de uma das histórias basilares da civilização ocidental, contada a partir da perspectiva da mulher, não é todavia inédita. Tal como fez em As Brumas de Avalon, ao reescrever a lenda do Rei Artur a partir da perspectiva de Morgana, a bruxa, Marion Zimmer Bradley também recontou o mito da guerra de Tróia, em Presságio de Fogo – um romance de grande fôlego, centrando a narrativa em Cassandra, a profetisa, irmã de Páris, o que raptou Helena e desencadeou a guerra dos mil navios, provocando a ruína da cidade de Tróia, que se achava inexpugnável. Ver artigo
Para agradar a um público mais exigente há que ler e conhecer de tudo um pouco, pelo que me aventurei por um género praticamente novo para mim – o romance policial – com Lisboa Reykjavík, da autora islandesa Yrsa Sigurdardóttir – com tradução de Miguel Freitas da Costa. Reeditado pela Quetzal, inicialmente editado com o título O Silêncio do Mar em 2016, é considerado o seu melhor romance – e o mais assustador.
Tudo me cativou no livro: a ambiência misteriosa, a qualidade da prosa, e ter Lisboa como cenário de partida.
O romance reparte-se em 2 planos temporais. Começa pelo fim, quando um iate de luxo chega à marina de Reykjavík sem ninguém a bordo, abalroando a proa contra o pontão, e Thóra, uma advogada, é contratada pelos pais de Ægir, um dos passageiros, a bordo do iate por mero acaso, para tratar da sua apólice de seguro, que é, aliás, bastante avultada. Contudo o valor do seguro é apenas a ponta do icebergue e o interesse de Thóra pelo caso rapidamente ultrapassa o da polícia, enquanto investiga o que aconteceu à tripulação e à família que seguia no Lady K, que zarpou de Lisboa com destino à Islândia com 7 passageiros, mas chega sem um único sobrevivente. Em capítulos alternados, ficamos ainda a conhecer a incrível viagem pela perspectiva de Ægir (na mitologia nórdica, curiosamente, representa o filho dos mares e oceanos).
O policial rapidamente se assemelha a um thriller psicológico ou de terror, conforme, um a um, os passageiros vão aparecendo mortos, e onde não faltam elementos sobrenaturais para desconcertar o leitor, como visões de fantasmas, perfumes fortes no ar, e a criança de dois anos, logo nas primeiras páginas, que ao ver o iate anuncia instintivamente que os pais e as irmãos morreram. A sequência alternada do romance confere-lhe uma natureza cinematográfica, especialmente quando salta certas partes, para surpreender o leitor, ou quando um capítulo da narrativa da investigação de Thóra termina com uma pista que será explicada no capítulo seguinte da narrativa da viagem. Mas vinga a qualidade da prosa, a complexidade das personagens, e uma fina ironia e humor na escrita. Talvez por isso mesmo, o romance foi galardoado com o Prémio Petrona 2015, que distingue literatura policial escandinava (islandesa, norueguesa e sueca). E são mais de 400 páginas de puro deleite e mistério.
Yrsa Sigurdardóttir vive com a família em Reykjavík, diretora de uma das maiores empresas de engenharia da Islândia, e os seus livros estão no topo das listas de bestsellers em todo o mundo, muitos deles adaptados ao cinema e televisão. A Quetzal tem ainda publicados mais 5 romances da autora. Ver artigo
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