Haruki Murakami, autor japonês, supostamente eterno candidato ao Nobel, continua a habituar os seus leitores ao ritmo mais ou menos regular de um livro por ano, todos publicados pela Casa das letras.
Se há fãs que sofrem de uma verdadeira febre de Murakami, a envolvência com que o narrador nos envolve (a narrativa é contada na primeira pessoa) acusa muito mais o próprio prazer que Murakami parece ter em escrever e perder-se nas suas próprias histórias. O ritmo lento e em crescendo na forma como apresenta as personagens, as suas rotinas, a música que ouvem para se poderem ouvir pensar (ou jazz ou música clássica), o ambiente estranhamente melancólico em que o fantástico incorre nunca se sabe bem por que frincha, a hipnose de uma leitura que rapidamente se torna viciante, são alguns dos aspectos com que Murakami nos seduz. E se um livro seu parece ser sempre um eco do anterior, a verdade é que nada será igual.
Neste livro aliás parece que a certa altura estamos a ler sobre a própria narrativa de Murakami:
«Quando a passamos em revista, a nossa vida parece realmente estranha e misteriosa, recheada de coincidências inacreditáveis e desenvolvimentos imprevisíveis e fantásticos. À medida que se desenrolam, torna-se difícil identificar o que têm de bizarro, por mais que olhemos com atenção. Imersos na rotina, essas coisas parecem normalíssimas e perfeitamente naturais. Apesar de não fazerem sentido, o tempo encarrega-se de lhes conferir coerência.» (p. 75)
A Morte do Comendador está repartido em dois volumes e o segundo sai já no dia 12 de Março, pelo que ainda vai a tempo de ler este para depois devorar o seguinte, num intriga que gira em torno de um quadro, de uma ópera e de misteriosas visitas por parte de uma figura anã saída do quadro. O autor é traduzido entre nós a partir do inglês por Maria João Lourenço (agora com uma ajuda) e publicado pela Casa das letras, numa tradução que, tem de ser dito, para muitos leitores peca por não respeitar o original ao incorrer no uso (ainda que agora mais contido) de expressões da gíria portuguesa. Contudo, acto contínuo, os livros de Murakami são sempre intrigantes e difíceis de pousar. Ver artigo
Figura de destaque das letras britânicas, com duas dezenas de romances, além de biografias e ensaios, distinguida com o título Dame Commander of the Order of the British Empire, irmã da escritora A. S. Byatt, Margaret Drabble estreia-se em Portugal com este romance publicado pela Quetzal.
Apesar do título, retirado a uma citação em epígrafe de D. H. Lawrence («O corpo vai morrendo aos bocados e, tímida, a alma vê apagar-se a sua pegada quando sobe a maré negra.»), não se pense, contudo, que há aqui espaço para a melancolia. Quem quiser ler este livro como um canto de cisne desengana-se logo que desvenda as primeiras linhas, face ao humor negro que perpassa a narrativa: «Muitas vezes tem suspeitado que as suas últimas palavras para si e para o mundo virão a ser «Sua grandessíssima tola» (p. 11)
Fran, figura central que aglomera em torno de si directa e indirectamente um significativo rol de outras personagens, «já tem idade bastante para não morrer nova e demasiados anos para escapar aos joanetes e à artrite» (p. 11). Apesar de já poder gozar pacificamente a sua reforma, como algumas das suas amigas fazem, prefere andar constantemente atarefada, numa luta contra o tempo que lhe resta, a atravessar o país de carro a trabalhar para uma ONG preocupada com o alojamento para idosos, e a aproveitar ao máximo cada copo de vinho e cada momento de repouso nalgum quarto de hotel dos lugares por onde passa. Fran recusa-se a abrandar, ainda que veja as suas amizades se ficarem pelo caminho, e continua a intrigar os próprios filhos, ao mesmo tempo que cuida do ex-marido e observa o mundo com algum cinismo: «Podemos abster-nos de convidar pessoas para uma festa de aniversário, mas não podemos banir os membros da família dos funerais.» (p. 340)
A maré crescente das vagas de migrantes oriundos de África e do Médio Oriente, as maravilhas electrónicas e digitais deste Admirável Mundo Novo, o futuro do planeta e dos seus habitantes, os cuidados a prestar à terceira idade, o que fazer na reforma para não enlouquecer, para que serve realmente a literatura ou a arte na vida e para quê ensiná-la ou estudá-la, o criminoso baixo preço do álcool, as mudanças climatéricas, a comida de plástico e os corantes que a tornam irresistível, as relações entre marido e mulher, mãe e filhos, os homens que tomam as cunhadas viúvas como mulheres, a bênção de se morrer jovem e não ter de adoecer e envelhecer, a precariedade de relações entre pessoas do mesmo sexo que se apoiaram mutuamente toda a vida mas não são reconhecidas legalmente como cônjuge e eventual beneficiário, José Saramago e os seus romances em torno de possibilidades improváveis (E se…?)… Todos estes temas se entretecem neste romance onde se unem um sentimento de balanço de final de uma vida e uma arguta reflexão sobre o estado actual do mundo.
A autora esteve em Portugal entre os dias 21 e 23 de Janeiro para promoção do livro e concedeu uma brilhante entrevista a Isabel Lucas, no Público. Ver artigo
Um dos grandes lançamentos de início de ano da Dom Quixote, este livro foi nomeado para o Prémio Internacional Man Booker 2017, Livro do Ano da revista Economist, vencedor do Prémio da Cultura Flamenga para a Literatura, do Prémio Literário AKO, do Prémio do Júri dos Leitores do Golden Book Owl, do Inktaap 2016 (Jovens Leitores), e foi finalista do Prémio Strega Europeo, do Prémio Literário Libris, do Prémio Fintro e do Prémio de História (Davisfond).
Stefan Hertmans nasceu em Ghent, Bélgica, em 1951, e é um dos principais autores flamengos contemporâneos, com romances, contos, ensaios, teatro e poesia, traduzido em várias línguas e vencedor dos prémios mais importantes da literatura flamenga.
Na linha de Sebald, à semelhança de diversos autores portugueses e internacionais, o autor parte da realidade para deambular pela ficção, pela História, pela biografia, de modo a recuperar a memória de Urbain Martien, um soldado flamengo que sobreviveu à Primeira Guerra Mundial, nascido em 1891 e morreu em 1981, com 90 anos, cheios de vida e de dor (…) Ver artigo
Num tempo em que o racismo, talvez sempre latente, parece eclodir e difundir-se, nem sempre sob a forma de violência física, falo deste livro de um autor sobejamente conhecido mas cuja obra só mais recentemente, e em boa hora, começa a ser publicada em Portugal pela Alfaguara.
Como pode ler-se na contracapa do livro: «Se esta rua falasse, esta seria história que contaria: Tish, 19 anos, apaixona-se por Fonny, que conhece desde criança.»
Como um Romeu e Julieta dos tempos que então se viviam (o romance foi originalmente publicado em 1974), o amor de Clementine (Tish) e Fonny será posto à prova assim que desperta e se torna visível para os que os rodeiam. É a profunda ligação que partilham, cuja manifestação viva desse amor é a criança de 3 meses gerada no ventre de Tish e que vai crescendo ao longo dos próximos 6 meses em que decorre a acção (com algumas analepses), que lhes permite fazer frente à injustiça do sistema judicial norte-americano e do «maldito homem branco». Como nos narra Tish: «A mesmíssima paixão que salvou Fonny acabou por lhe arranjar sarilhos e atirá-lo para a cadeia. Porque, sabem, ele tinha encontrado o cerne, o seu próprio cerne, dentro dele: e notava-se. Ele não era o preto de ninguém. E isso é crime nesta porcaria de país livre. Devemos ser o preto de alguém. E, se não formos o preto de alguém, somos um mau preto» (p. 46)
James Baldwin nasceu em Nova Iorque em 1924. Cresceu e estudou no bairro de Harlem. Em 1948 partiu para França fugindo ao racismo e homofobia dos Estados Unidos. Em 1953 publicou o seu primeiro romance, Go tell it on the mountain (que será publicado este ano pela Alfaguara) e cedo se destacou como romancista, ensaísta, poeta e dramaturgo. Foi uma das vozes mais influentes do movimento de direitos civis e o primeiro artista afro-americano a figurar na capa da revista Time. Em 2017, trinta anos após a sua morte, foi profusamente relembrado com I am not your negro, um documentário baseado na sua obra, narrado pela sua própria voz em voz-off.
Se esta rua falasse (If Beale Street Could Talk) é o seu quinto romance, e foi adaptado ao cinema por Barry Jenkins, o realizador de Moonlight, que recebeu o Óscar de Melhor Filme em 2016. A estreia do filme está prevista em Portugal para 21 de Fevereiro. Ver artigo
Cerca de um ano depois da publicação de Semente de Bruxa, em que Margaret Atwood recria a peça A Tempestade, sai agora a recriação de O Rei Lear. A série Bertrand Shakespeare conta com um novo título num projecto lançado pela editora inglesa Hogarth, que chega a mais de 30 países e visa recriar em romance as peças do dramaturgo inglês.
A recriação daquela que é uma das mais aclamadas tragédias de Shakespeare é completamente livre e brilhantemente adaptada aos tempos modernos, em que o rei Lear é agora um multimilionário que dirige um grupo global de comunicações. O fôlego shakespeariano sente-se logo nas primeiras linhas do romance, em que as falas das duas personagens, Dunbar e Peter, um comediante alcoólico, se interpelam e atropelam, como numa peça de teatro, onde não falta o absurdo condizente a alguém que terá perdido o juízo, pois Henry Dunbar foi enclausurado pelas filhas numa casa de repouso. Florence, a Cordélia da peça original, é a filha mais nova e meia-irmã de Abby e Megan, que nunca pretendeu usurpar o trono ou o dinheiro do pai, mas que foi afastada por ele. Tal como Lear vagueia quase enlouquecido numa tempestade, também Dunbar enfrenta um nevão quando consegue juntar os resquícios de força que lhe restam e fugir da sua prisão para tentar recuperar o poder que as filhas planeiam usurpar-lhe na próxima reunião de administração, onde pretendem provar que o pai envelheceu e por conseguinte ensandeceu de vez.
Edward St Aubyn transmite de forma viva e actual os dilemas intrínsecos às tragédias de Shakespeare, dissecando o comportamento das personagens e tornando-as humanas, e não simples joguetes nas mãos dos deuses e das forças do destino: «Ergueu a jarra por cima da cabeça, pronto a lançá-la pela janela daquela prisão, mas foi então que ficou petrificado, incapaz de a partir ou pousar, com toda a acção anulada pela perfeita guerra civil entre omnipotência e impotência que lhe bloqueava o corpo e a mente.» (p. 20)
Não falta também um fino humor, especialmente quando Dunbar se encontra ainda na casa de repouso, como quando a enfermeira o conduz para a mesa comunal: «Enquanto ela o empurrava para aquele precipício de encontros sociais aleatórios, do qual ele tinha até então conseguido manter-se bem distante, Dunbar vislumbrou Peter (…), debaixo de um letreiro verde com as palavras Saída de Emergência ao lado de uma figura a sprintar que devia estar a tentar fugir ao inferno da agência de encontros românticos da enfermeira Roberts.» (p. 34)
Edward St Aubyn chega a recorrer, num jogo literário, a passagens retiradas da obra de Shakespeare – «sono que desenreda o novelo emaranhado das preocupações» (p. 92) – e tal como nas suas tragédias presenteia-nos com um desenlace abrupto que se abate como o destino num final inconcluso e infeliz.
Edward St Aubyn é considerado um dos melhores romancistas britânicos da sua geração e o seu quinteto «A Família Melrose», escrito entre 1996 e 2012, foi adaptado no ano passado a uma mini-série televisiva, de cinco episódios, intitulada Patrick Melrose, com Benedict Cumberbatch no principal papel. Ver artigo
Jonathan Littell nasceu em Nova Iorque em 1967, cresceu nos Estados Unidos da América e em França, vivendo actualmente em Espanha. Venceu o Prémio Goncourt e o Grande Prémio do Romance da Academia Francesa com As Benevolentes, denso e imenso romance escrito em francês e publicado pela Dom Quixote em 2007. É ainda autor de diversas obras de não-ficção, sendo este Uma História Antiga o tão aguardado regresso do autor à ficção, igualmente publicado pela Dom Quixote.
Este romance parte, contudo, e daí o subtítulo Nova Versão, de uma sua novela publicada com o mesmo título em França em 2012, desenvolvendo e aprofundando neste romance ideias aí contidas.
Um narrador, em corpo de homem, sai de uma piscina, troca de roupa e começa a correr, até dar por si num novo cenário, semi-familiar, semi-desconhecido. Ao longo dos sete capítulos do livro, a narrativa estende-se com uma natureza obsessiva, com ecos e imagens que se tornam recorrentes. Uma escrita gráfica, que parece não esquecer nenhuma das mais diversas experiências sexuais, ricamente descritas, uma narrativa quase sem espaço para a ternura, onde também participa a violência, enquanto este narrador na primeira pessoa se desdobra em múltiplos eus e representa diversos papéis como quem veste a condição humana: ora mãe, ora prostituta, ora homem, ora andrógino.
É possível que a natureza do romance, labiríntico, não permita uma leitura de um fôlego só. Tal como o narrador, o leitor dá por si perdido em corredores e espaços que se desdobram invariavelmente de maneira idêntica, enquanto este narrador, ora num corpo de homem ora num corpo de mulher, ora adulto, ora criança, tacteia uma saída, apenas para se reencontrar num novo cenário moderno, invariavelmente cinzento, como a própria roupa que veste, enquanto vivencia situações que variam entre o doméstico e o orgíaco. Ver artigo
Mais conhecido como actor em cerca de 40 filmes, nomeado para um Óscar em 1984, Sam Shepard foi autor de mais de 40 peças teatrais e de 3 colectâneas de contos. Galardoado, em 1979, com o Prémio Pulitzer, finalista do prémio literário W.H. Smith e foi-lhe atribuído o doutoramento honoris causa pelo Trinity College, de Dublin, em 2012.
A narrativa de Espião na Primeira Pessoa inicia com o narrador a observar um homem de idade, um vizinho do outro lado da rua:
«Não tenho a certeza daquilo que ele está a ver agora, o ar está tão turvo, e também não tenho a certeza daquilo que estou a ver. Se está a falar de si para si ou se está a falar com outra pessoa ou o que está realmente a fazer. (…)
Come queijo e bolachas o dia todo. Chá gelado. Beberrica. Mas tem dificuldade com as mãos e os braços, dei-me conta disso. As mãos e os braços não trabalham muito.» (p. 21)
Capítulo a capítulo, o leitor percebe que o fio da consciência corre livre, entre memórias soltas, dispersas, incompletas mesmo, até perceber que afinal esse homem no alpendre da casa em frente é afinal o autor que se espia a si próprio. Como quem se vê à distância, como quem procura reencontrar-se, enquanto assiste ao deteriorar do seu corpo cujos gestos lhe fogem e cujo controlo lhe escapa:
«A coisa de que me lembro melhor é de me sentir mais ou menos desamparado e da força dos meus filhos. Um homem numa cadeira de rodas empurrado pelos filhos de um restaurante à cunha para uma rua vazia.» (p. 97)
Publicado pela Quetzal em Agosto de 2018, um ano depois da sua morte, este livro breve, em pequeno formato (como outros já aqui apresentados), de capítulos muito breves, é a despedida do autor, quase um epitáfio, ou uma revisitação da vida que está prestes a despir. O autor, vítima de Esclerose Lateral Amiotrófica e consciente da sua morte próxima, começou a compor em 2016 os rascunhos iniciais manuscritos, pois já não conseguia dactilografar, até que por fim passou a gravar e depois a ditar o texto, para ser posteriormente transcrito pelas suas irmãs. Ainda chegou a fazer a revisão final do livro com a família e a ditar a sua versão final dias antes de morrer, a 27 de Julho de 2017. O trabalho de edição e revisão do livro foi feito com ajuda da cantora e escritora Patti Smith, antiga amante do autor e sua amiga por mais de 40 anos. Ver artigo
Ann Patchett nasceu em Los Angeles em 1963 e cresceu no Tennessee, onde continua a viver. Publicou o seu primeiro romance em 1992, destacado pelo New Yok Times como um dos melhores do ano. Tem recebido diversos prémios e encontra-se traduzida em mais de trinta línguas.
Bel Canto é um dos poucos romances da autora que se pode encontrar traduzido em português – assim Comunidade (Minotauro), já apresentado aqui – e foi publicado pela Gradiva em 2002, um ano imediatamente após a publicação do original. O romance parece ter passado despercebido por cá, mas recebeu os prémios Orange e Pen/Faulkner, e pode agora ser lido a propósito da adaptação cinematográfica que estreou recentemente nas salas de cinema portuguesas.
O livro começa com um beijo roubado na escuridão, um beijo invisível, mas que todos estão seguros de ter visto. Esse é o primeiro indício de uma estranha realidade que se começa a desenhar no romance, havendo até a sensação de que a narrativa vagabundeia um pouco até se centrar naquilo que se torna a intriga principal. Num país não nomeado da América do Sul, onde se fala espanhol e quechua, o Vice-Presidente dá uma festa na sua casa em honra de Mr. Hosokawa como forma de celebrar o seu aniversário, sendo Roxane Coss, cantora lírica americana, a estrela convidada como forma de aliciar este empresário a estar presente. Foi no seu décimo primeiro aniversário que Mr. Hosokawa foi levado pela mão do pai a ver o Rigoletto em Tóquio e desde então ficou apaixonado pela ópera, descobrindo depois, pela mão da filha que lhe oferece um álbum, a voz daquela que se considera ser a melhor soprano da época e que ele irá seguir incansavelmente ao longo dos próximos 5 anos, assistindo a 18 dos seus espectáculos: «a voz maravilhosa de Roxane Coss está a cantar Gilda para o jovem Katsumi Hosokawa, fazendo vibrar os ossos minúsculos dos seus ouvidos. A voz dela permanece dentro dele, transforma-se nele. Ela está a cantar aquela personagem para ele, e para mais mil pessoas. Ele é anónimo, igual aos outros, amado.» (p. 55)
Contudo, rapidamente o cenário de festa após o concerto se altera, quando os convidados são tomados como reféns por um grupo de guerrilheiros. Mais tarde, mulheres, crianças e alguns homens com a saúde mais debilitada são libertados, restando cerca de 50 reféns, mas os dias sucedem-se, até que duas semanas depois continua a não haver qualquer perspectiva de se superar o impasse deste rapto que começa a ganhar laivos surreais, em que os próprios reféns parecem preferir manter-se dentro daquela casa. O quotidiano na casa e as relações que se estabelecem entre os reféns e com os próprios raptores começam a afigurar-se uma metáfora da vida, à semelhança de Os Inconsolados, de Kazuo Ishiguro. Há alguns elementos pouco “realistas”, como Mr. Hosokawa e o seu intérprete Gen Watanabe, quase um assistente pessoal, serem estranhamente idênticos, na aparência e na voz. Gen Watanabe é o intérprete que estabelece a comunicação entre os diversos reféns, pois são de nacionalidades distintas e estão num país estrangeiro. Há guerrilheiros que revelam ser mulheres. A própria Roxanne Coss, que se julgaria ser a protagonista, dado o fascínio que exerce sobre todos, pela voz e pela presença que o seu canto irradia nela, só “entra em cena” já no terceiro capítulo, o que lembra a Turandot de Puccini, em que a princesa japonesa, apesar de omnipresente, apenas entra (que é como quem diz canta) na segunda cena. E não falta, principalmente nos primeiros capítulos, uma deliciosa ironia que denuncia a intrusão do humor da autora.
Este é um livro sobre o amor e a amizade, em que a música é enaltecida como alimento da alma e como uma magia capaz de quebrar as convenções do real: «Nunca tinha pensado, nem só uma vez, que pudesse existir uma mulher assim, uma mulher que estivesse tão perto de Deus que a voz Dele era decantada através dela. Quão fundo teria ido dentro de si própria para invocar aquela voz. Era como se a voz viesse do centro da Terra, e ela, só com um ligeiro esforço e com a diligência da sua vontade, conseguisse puxá-la através da terra, das pedras, pelo chão da casa, pelos pés, perpassando-a, pairando com o calor do seu corpo, até sair pelo lírio branco da sua garganta directamente para Deus lá no céu. Era um milagre, e a dádiva de o testemunhar fê-lo chorar.» (p. 59)
O filme conta com a interpretação de Julianne Moore e de Ken Watanabe. Ver artigo
Publicado recentemente pela Alfaguara, depois de Canção doce, publicado entre nós em 2017, este é o romance de estreia da autora, que obteve um imediato reconhecimento. Leïla Slimani nasceu em Marrocos em 1981 e aos 17 anos foi para Paris estudar Ciências Políticas, tendo trabalhado como jornalista antes de se dedicar à escrita.
É um romance perturbador, pela frontalidade da linguagem e pelo tema, mas com ressonâncias de clássicos como Madame Bovary ou Anna Karenina. Contudo o adultério é agora contado por uma mulher e o que em Flaubert era tédio burguês, aqui torna-se puro e manifesto desejo, aliás mais do que desejo, uma fome de sexo. Tão voraz como esse fogo que arde na protagonista, é a nossa própria leitura e a nossa própria ânsia de saber um desfecho que por experiência, e segundo a tradição literária, resulta mal.
Poder-se-ia ler esta obra como um libelo feminista de aceitação e glorificação do corpo e do prazer, não fosse Adèle estar num conflito entre si e o seu corpo: «o que excitava a alma era precisamente ser traída pelo corpo que agia contra a sua vontade, e, ao mesmo tempo, assistir a tal traição.» (pág. 104) Ainda que não pareça haver muito espaço para a culpa: « Adèle não retira nem glória nem vergonha das suas conquistas.» (pág. 105)
Uma obra citada em epígrafe, e referida a certa altura na obra, é A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, em que o protagonista coleccionava esgares de prazer em rostos de mulher, numa demanda insaciável por mais e mais mulheres.
Não se sabe se há redenção ou cura da ninfomania da personagem, mas é claro como em toda a narrativa a narradora se exime de emitir juízos de valor sobre o comportamento desta mulher, perseguida pela imagem que guarda de Paris quando tinha 10 anos, onde se confrontou com dezenas de prostitutas: «aquele sentimento mágico de ver claramente o vil e o obsceno, a perversão burguesa e a miséria humana.» (pág. 56) Ver artigo
Num cenário pós-apocalíptico, milénios depois de a Terra ser devastada por terramotos, erupções vulcânicas e a descida para sul dos glaciares, a espécie humana deixou de viver sobre o solo terrestre e todas as cidades, mesmo as metrópoles como Londres, sobrevoam o planeta, numa perseguição incessante, alimentando-se umas das outras, propulsionadas por engenhos de tracção, devorando e desmantelando as suas presas sob a mastigação de enormes mandíbulas hidráulicas.
A trilogia está agora a ser reeditada pela Presença e o filme Engenhos Mortíferos de Peter Jackson estreia dia 6 de Dezembro. Ver artigo
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