Além da Memória, de Sebastian Barry, publicado pela Relógio d’Água, com tradução de José Mário Silva, foi nomeado para o Booker Prize 2023.

Tom Kettle é agora um polícia reformado e prepara-se para passar uma vida tranquila na casa que arrendou, o anexo de um castelo vitoriano com vista para o mar da Irlanda. Leva uma existência pacífica e solitária em que, durante meses, encontra apenas alguns habitantes do lugar, cruzando-se ocasionalmente com o seu excêntrico senhorio e com uma jovem mãe. Mas a memória prega-lhe partidas, e confunde igualmente o leitor, que segue esta narrativa na terceira pessoa, sempre segundo a focalização de Tom.

“Talvez o tempo da memória inalcançável anseie pelo tempo em que foi apenas tempo, matéria dos relógios de parede ou de trazer no pulso. Mas isso não significava que pudesse, ou devesse, ser resgatado. Tinham-lhe pedido para aceder às suas memórias antigas, como se uma pessoa pudesse verdadeiramente fazer isso.” (p. 151)

O fio da história desenrola-se e consegue simultaneamente manter o leitor numa tensão permanente, na ambiguidade e incerteza do que realmente aconteceu a Tom e à sua família, especialmente a sua amada mulher, June, e os seus dois filhos, Winnie e Joe.

A acção decorre agora ou já decorreu? Tom mantém uma mente lúcida ou os constantes saltos ao passado são sintoma de demência? Pode o amor e aquilo que de bom nos acontece sobrepor-se a todas as infelicidades, mesmo quando fomos vítimas de abusos atrozes?

Tudo se complica quando dois antigos colegas chegam a sua casa com perguntas sobre um caso ocorrido décadas antes, em que Tom trabalhou, e que afinal não terá ficado bem explicado.

“Nada correspondia ao que se esperaria que fosse. Incluindo a verdade. A polícia. O país.” (p. 97)

Um romance em que a realidade nunca é o que parece, da mesma forma que as nossas memórias podem ser reinventadas ou dissipar-se na areia do tempo. Um homem que vive emboscado pelas suas memórias, que ora pairam “na sua mente com a força da realidade” ora se desfazem até se tornarem algo vago e obscuro (p. 108). Uma narrativa belíssima que nos mantém no fio da navalha e toca temas delicados de abusos sexuais ocorridos na Irlanda, cometidos ou consentidos por padres e freiras (Claire Keegan também toca este tema numa das suas novelas).

Sebastian Barry é romancista, dramaturgo e poeta irlandês. Foi nomeado Laureado para a Ficção Irlandesa (2018-2021).

Foi duas vezes finalista do Man Booker Prize pelos romances A Long Long Way (2005) e Escritos Secretos (2008), tendo este último obtido o Costa Award de Livro do Ano de 2008 e o James Tait Black Memorial Prize. O seu romance de 2011, Do Lado de Canaã, foi nomeado para o Booker Prize.

Em janeiro de 2017, Barry recebeu o Costa Award de Livro do Ano por Dias sem Fim (publicado pela Bertrand Editora), tornando-se o primeiro romancista a vencer este galardão duas vezes.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.