Os Anos, de Annie Ernaux, publicado pela Livros do Brasil não é um romance convencional. Se nas primeiras páginas, que constituem como que um primeiro capítulo, nos surge um género de inventário de imagens, de instantâneos, como um dicionário que vai do berço à morte, a partir daí as restantes quase 200 páginas do romance desdobram-se como uma crónica dos tempos. Listam-se fotografias, resgatadas a um arquivo familiar, começando pela primeira foto de um bebé, em 1941; recuperam-se, seguidamente, narrativas familiares que são, como se refere, indissociáveis das narrativas sociais; citam-se ocasionalmente frases retiradas de um diário; existem inclusive passagens que desenham o plano do livro que intenta «captar o reflexo projetado pela história coletiva no ecrã da memória individual» (p. 43). Mas a narração destas memórias, que vai de 1941 a 2006, é sempre apresentada na 3.ª pessoa, referindo-se a uma «ela», tecendo uma narrativa distanciada e exterior por ser uma história colectiva e transpessoal, mas também, possivelmente, por ser essa a ideia central representada no romance: a ideia do que realmente fica de nós, ao passar pelo mundo, e o pouco que conseguimos lembrar da pessoa que fomos, conforme passam os anos, tal como «ela» (essa mulher nunca nomeada) não se consegue reencontrar na pessoa que foi e já mal consegue lembrar.
«Gostaria de reunir múltiplas imagens dela própria, separadas, sem relação entre si, ligadas por um fio narrativo, o da sua existência, desde a Segunda Guerra Mundial até aos dias de hoje. Uma existência particular, portanto, mas também incorporada no movimento de uma geração.» (p. 144)
Definir, portanto, esta reconstrução dos 60 anos da vida de uma mulher, que por sua vez se inscreve na história de um país, França, como um romance biográfico seria bastante simplista. Este livro inédito em Portugal, agora publicado na coleção Dois Mundos, recupera mais de meio século da história do mundo, em décadas decisivas, detendo-se muito particularmente no Maio de 68.
Os Anos foi editado em França em 2008, no mesmo ano em que a autora foi galardoada com o Prémio de Língua Francesa pelo conjunto da sua obra. Esta obra confirma Annie Ernaux como uma das mais importantes vozes da literatura francesa, recebeu várias distinções, como o Prémio Marguerite Duras 2008 e o Prémio Strega 2016, e foi finalista do Prémio Man Booker Internacional de 2019. Ver artigo
«Era uma vez, numa grande floresta, uma pobre lenhadora e um pobre lenhador.
Não, não, não, não, tenham calma, isto não é O Pequeno Polegar! De modo nenhum. Tal como vocês, também detesto essa história ridícula. Onde e quando já se viu pais a abandonarem os filhos por não terem o que lhes dar de comer? Vá lá…
Recomeçando: nessa grande floresta reinavam a fome e o frio.»
Assim começa esta breve narrativa, como um conto de fadas.
Era uma vez um casal de lenhadores muito pobres que vivia numa floresta, por onde passava um comboio de mercadorias. Tinham frio, porque se estava no Inverno, e tinham sempre fome, porque grassava uma guerra.
E assim continua a história como um conto de fadas, apesar do narrador que a conta na primeira pessoa, com um registo muito próximo da oralidade, a mesma oralidade que lhe permite brincar com as palavras e com a musicalidade de uma prosa próxima do registo encantatório.
A Mais Preciosa Mercadoria é uma fábula sobre Auschwitz e inspirada num episódio real.
Recorrendo sempre e apenas a alusões, todos os símbolos estão lá, mais ou menos translúcidos, mais ou menos fulgentes: os comboios que circulam sem parar, o xaile precioso com fios de ouro e prata, os gémeos separados, os sem-coração com a sua marca, o bosque proibido, a raça maldita nascida sob a boa estrela amarela, os países ocupados pelos carrascos devoradores de gente estrelada, a ajuda concedida com uma contrapartida… O autor reconta assim a velha história do Holocausto (mas tão presente e angustiante), esse momento da história tão horrível que é sempre reconhecível em que o impossível se fez real.
«Os dias sucederam aos dias, os comboios aos comboios. Nos vagões selados agonizava a humanidade. E a humanidade fazia de conta que não sabia.» (pág. 91)
O autor Jean-Claude Grumberg é um conhecido dramaturgo, nasceu em França em 1939, e assistiu ao momento em que o pai foi levado pelos nazis para o comboio que tinha como destino o seu extermínio, assim como o de um número assombrosamente incontável de judeus. Este livro publicado pela Dom Quixote, com formato de bolso e tradução de Luísa Benvinda Álvares, finalista de vários prémios literários e a ser adaptado a filme de animação, deve ser lido em todas as idades. Ver artigo
A segunda obra de Eleanor Catton, Os Luminares, publicada pela Bertrand Editora, confirmou o seu talento ficcional, que arriscou com um livro denso de 888 páginas, cuja originalidade foi reconhecida com o Man Booker Prize 2013, e faz de si a mais jovem autora de sempre a receber o prémio, ao que acresce que o prémio foi conferido ao romance mais extenso até à data. Ver artigo
Sete Casas Vazias, de Samanta Schweblin, da Elsinore, é um pequeno livro de contos, tão breves quanto tensos, deixando o leitor com o coração na boca. Sete contos, a condizer com o título, que pouco parecem ter em comum, não fosse o vazio destas personagens, confinadas às suas pequenas casas, enredadas nos seus muros de insegurança. Mas mesmo entre quatro paredes, nessas casas onde «com apenas três passos largos atravesso a sala, saio de casa e fecho a porta» (p. 112), estas personagens, mulheres, raramente se sentem seguras. Nessas sete casas vazias, despidas de sentimento, apesar dos objectos, dos móveis, das estantes e louceiros arrumados nos seus lugares, atravancando as vidas de quem ali dorme. Quarenta centímetros quadrados de espaço para viver, pois quando as casas são demasiado grandes perde-se o controlo sobre elas, essas casas despojadas de emoções e vibrações humanas, onde a vida é absorvida numa voragem e se cava um abismo profundo como a morte. Vidas vazias de quem não tem sequer alguém para quem morrer, de seres cuja existência nem enche uma caixa. Essas habitações vivas com a sua própria respiração, onde o vazio ressoa como um vácuo e ameaça tragá-las: «ouviu um som rouco atrás de si. Silencioso, mas percetível para ela, que estava alerta e conhecia o seu espaço. Voltou a ouvi-lo, desta vez vinha do teto, e ouviu outra vez, muito mais perto, rodeando-a totalmente. Ia e vinha, como um ronco áspero e profundo, como a respiração de um grande animal dentro de casa.» (p. 87) O seu estado, esse «insólito estado de alerta» (p. 112) que atravessa as personagens, é também o sentimento com que o leitor vira as páginas, quase a medo, pois predomina, conto a conto, um «receio que alguma coisa se quebre irremediavelmente» (p. 117). Sete narrativas cuja intriga é sempre enigmática, insólita, quase nunca clarificada.
Samanta Schweblin, cujos livros de contos e romances estão publicados na Elsinore, nasceu na Argentina, em 1978, e é uma das vozes mais originais da literatura contemporânea em língua espanhola. Sete Casas Vazias e Pássaros na Boca (2018) venceram prémios internacionais como Casa de las Américas e Juan Rulfo, e em 2017 esteve entre os finalistas para o Prémio Internacional Man Booker com o romance «Distância de Segurança» (2017), a ser adaptado a série pela Netflix. Ver artigo
A LeYa anunciou no Dia Mundial do Livro a criação de um clube de leitura, designado Próximo Capítulo, com o intuito de promover diálogo e partilha em torno de livros de ficção e de não ficção. Com três encontros virtuais por mês para conversar sobre a obra escolhida por votação, a novidade deste Clube é ser preparado e orientado pelos editores assim como pelas equipas editoriais e de marketing da LeYa, permitindo conhecer as obras através de quem as trabalhou a fundo. Isto possibilita a aproximação ao mundo por trás do livro e ao seu percurso até chegar ao leitor, procurando ainda que haja, sempre que possível, uma interacção com o autor. O número de inscrições superou as expectativas e, como puderam inferir, eu ingressei esta comunidade de leitores, pelo que não podia deixar de partilhar aqui um breve texto sobre a primeira leitura escolhida. Ver artigo
Quando surge a quase inevitável questão de os filmes não suplantarem os livros costumo dar 2 exemplos em que, para mim, os filmes são largamente melhores que os livros… ou pelo menos mais empolgantes para mim. Refiro-me à adaptação fílmica do livro As Horas (que filme brilhante, que actrizes, que banda sonora…) e refiro-me à trilogia O Senhor dos Anéis.
Não quero elevar a série Little Fires Everywhere, do canal streaming Hulu, que adapta o livro Pequenos Fogos em todo o lado, de Celeste Ng, ao pequeno ecrã, a uma fasquia tão alta, mas esta é, indubitavelmente, uma adaptação que ultrapassa muito o livro. Percebe-se que havia necessidade de fazer a história render, das 300 páginas do livro aos 8 episódios da mini-série, mas apesar de o essencial da história estar retratado na adaptação, a mini-série explora de forma inovadora e, noutras vezes, mais aprofundadamente os aspectos essenciais do livro.
Uma história que gira, sem muito ruído ou distracção externa, essencialmente em torno da questão da maternidade, como algo instintivo, que está além das regras e formalidades da sociedade, como um fogo que devora tudo. Uma mãe que abandona a filha, uma mãe que não consegue conceber, uma mãe que aborta, uma mãe que se vende como barriga de aluguer, uma mãe que explora a filha da sua inimiga como forma de a atingir, uma mãe que é o espelho negro de outra, uma mãe que não concebe ficar sem a filha e que por isso vive em fuga constante, uma mãe que tem um filho a seguir ao outro, uma mãe que não consegue engravidar. Assim, de rajada, podemos perceber a teia que se estabelece nestas histórias, a da série e a do livro. E as cerejas no topo do bolo são Reese Witherspoon e Kerry Washington, pois da mesma forma que as cerejas surgem sempre em pares, estas duas actrizes surgem como pólos opostos cuja inimizade e diferença ameaçam fazer a casa arder em chamas.
Não é uma série perfeita, não é uma série ligeira, mas é imperdível. E é bem possível que, como aconteceu com Big Little Lies, arranjem forma de criar uma segunda temporada, ainda que a história original contida no livro esteja encerrada.
A loura tem uma interpretação fantástica, acho, aliás, que foi das pessoas que mais batalhou para que se fizesse uma adaptação do livro… Reese revela um lado negro, de forma convincente, como ninguém julgaria possível. Ver artigo
Já não sou um purista, daqueles que fica sempre decepcionado com as adaptações a filme como também ultrajado. Mas continuo a preferir ler sempre o livro antes de ver o filme ou, como agora é mais corrente, a série.
Pequenos Fogos em todo o lado, de Celeste Ng, publicado pela Relógio d’Água, não é uma obra de literatura das que virá a ser discutida ou lembrada na posteridade, mas é um livro de leitura compulsiva, mas não tão leve, cuja prosa é enganadoramente simples. A autora escreve bem, mas fá-lo com precisão cirúrgica, sem usar mais do que as palavras necessárias, da mesma forma que não disseca cenas nem personagens, deixando isso a cargo do leitor. A intriga do livro pode parecer semelhante à de um guião de uma série – e por isso mesmo foi adaptado pela Hulu – mas esta história tem camadas sobre camadas de significado e levanta uma série de questões prementes, que a autora evita explorar, aparentemente, deixando as interpretações e posições a cargo do leitor, como a questão da adopção da bebé Mirabelle/May Ling, se deve ser criada pela mãe que a abandonou ou por um casal branco, rico, que tem todas as condições para a criar, menos a de lhe poder transmitir a sua herança cultural como bebé chinesa que é. Ou como uma mulher acede a ser barriga de aluguer para um casal que não pode conceber mas vê-se ultrapassada pelo seu instinto maternal, possivelmente agudizado pela perda familiar que sofre durante a gravidez.
Mia e Pearl, mãe e filha, raramente permanecem muito tempo no mesmo lugar mas, quando chegam a Shaker Heights onde alugam a casa de Mrs. Richardson, Pearl acalenta a esperança de poder criar raízes naquele pacato subúrbio de Cleveland. E rapidamente começa mesmo a criar laços com a família Richardson…
Shaker Heights é um daqueles subúrbios norte-americanos (não confundir com a nossa Amadora), ao estilo de Donas de Casa Desesperadas, onde todas as casas são geminadas e a relva não pode ultrapassar os 6 cm de altura. Mrs. Richardson é uma daquelas Stepford Wives e note-se que no livro Mrs. Richardson raramente é chamada pelo nome próprio de Elena… ou seja, é sempre conhecida pelo seu “título”, pela sua posição de chefe de família: «A casa dela era grande; os filhos estavam seguros e felizes e bem-educados. Convenceu-se de que isso era o essencial daquilo que planeara há tantos anos.» (p. 103)
Elena Richardson é daquelas pessoas irritantes que gosta de ter tudo no lugar certo e determinada em praticar boas acções (como aquelas pessoas que obrigam a velhinha a atravessar a estrada mesmo quando ela nem queria passar para o outro lado). Por isso mesmo, a renda da casa será muito abaixo do normal e é por isso que Mia se instala aí, apesar das diferenças óbvias entre ambas. Pois Mia é um artista, enquanto que Elena, com a sua família perfeita com um marido perfeito e 4 filhos, vive segura num lugar previsivelmente seguro como Shaker Heights, onde nada acontece: «na sua linda casa perfeitamente ordenada e abundantemente mobilada, em que a relva estava sempre aparada e as folhas eram apanhadas e nunca, nunca havia lixo à vista; no seu lindo bairro perfeitamente ordenado, em que cada relvado tinha uma árvore e as ruas eram curvas para ninguém andar demasiado depressa e cada casa se harmonizar com a seguinte; na sua linda cidade perfeitamente ordenada, em que todos se davam bem e todos cumpriam as regras e tudo tinha de ser útil e lindo por fora, fosse qual a fosse a confusão por dentro.» (p. 300)
E quando além disso Mrs. Richardson propõe, de modo a que seja irrecusável, que Mia faça um part-time como gestora do lar (vulgo politicamente correcto para empregada doméstica), Mia aceita também, até porque isso lhe permitirá acesso aos bastidores da casa da família que Pearl começa a preferir à sua mãe.
Agora, quanto à mini-série: a adaptação do livro Pequenos Fogos em todo o lado, de Celeste Ng, é bastante livre. E sinceramente acho que isso só enriqueceu a minha leitura do livro pois há várias questões que são muito mais exploradas, principalmente, o conflito entre Mia e Mrs. Richardson que é intensificado pela questão cultural, uma vez que na série Mia e Pearl são representadas como “afro-americana”. E é fantástico ver o confronto entre duas boas actrizes: Mia, representada por Kerry Washington (a Olivia Pope de Scandal), e Elena Richardson interpretada por Reese Witherspoon. Há aliás muito mais diálogo entre ambas as mulheres, o que pouco acontece no livro, e a hostilidade muito mais declarada entre uma artista de espírito livre e uma americana loura de boas famílias com um trabalho como repórter em part-time (pois a família é naturalmente a sua prioridade). Só é pena, na minha perspectiva (e se não quiserem um pequeno spoiler do livro aconselho a parar de ler aqui), que na série não se tenha respeitado um aspecto da história original: há uma mulher que é mãe, mas permanece também virgem, enquanto que na série é apresentada como mais promíscua.
As últimas palavras são acerca da minha muito adorada Reese Witherspoon. Mrs. Richardson aparece demasiado caricaturizada na série, como acontece com o seu sistema de organização por cores e os seus calendários para tudo, inclusive para as relações sexuais com o marido que só podem ocorrer às quartas-feiras e sábados. Mas não acho que se possa subestimar a actriz em si, até porque é muito mais exigente do que se possa pensar uma actriz inteligente, ainda por cima com o seu ar de Barbie, conseguir representar convincentemente uma mulher tonta (aqui uma espécie de Legalmente Loura na sua versão adulta) que vê todas as suas certezas arderem. Ver artigo
«Uma das primeiras balas entra pela janela aberta por cima da sanita diante da qual se encontra Luca, de pé.» (p. 6)
A frase inaugural deste romance agarra de imediato o leitor, até porque a história arranca em plena acção, com mãe e filho a procurarem proteger-se de um tiroteio na casa de banho. Luca, o filho de Lydia, tem oito anos. Os dois são os únicos sobreviventes desse ataque dos sicarios naquele que é um bairro bom de Acapulco. Não haverá testemunhas pois apesar do movimento por trás das janelas dos vizinhos, estes já se preparam «para negar credivelmente que viram seja o que for» (p. 12) quando chega a polícia, que também não vai fazer nada, enquanto toda a família (16 pessoas) está morta no quintal das traseiras. A polícia não vai ajudar porque, das mais de duas dúzias de agentes da autoridade e pessoal médico, uma boa parte recebe do cartel da zona 3 vezes o ordenado que o Governo lhes paga. No México, a taxa de crimes por resolver situa-se acima dos 90 %.
Sebastián, marido de Lydia, era repórter num local onde os cartéis assassinam um jornalista de tantas em tantas semanas: «Tudo aconteceu tão depressa nos últimos anos. Acapulco sempre teve pendor para a extravagância, portanto, quando finalmente caiu em desgraça, fê-lo com o espectacular espalhafato que o mundo se habituara a esperar da cidade. Os cartéis entregaram-se à farra e pintaram as ruas de sangue.» (p. 63-64)
Apesar da acalmia que se instalara mais recentemente, Sebastián fora ameaçado, diversas vezes, para parar de escrever sobre os cartéis: «Uma imprensa livre era a última linha de defesa, dizia ele, a única coisa que protegia o povo mexicano da aniquilação total» (p. 42). E este seu idealismo e integridade pareciam a Lydia uma hipocrisia egoísta. O que ela não sabe é que Javier, o cliente que se tornou um visitante regular da sua livraria e um amigo, é o líder do cartel, pelo que, quando a verdade é desvendada, cria-se uma relação de amor-ódio entre ambos (com ecos intertextuais de O Amor nos Tempos de Cólera, de García Máquez).
Ficaremos a saber como esta mãe se sente «esfarrapada como um pedaço de renda, definida não tanto pela matéria de que é feita, mas pelas formas que lhe faltam.» (p. 105), enquanto engole a dor e se empenha em chegar aos E.U.A., o único porto seguro para si e, particularmente, para o seu filho, pois estranhamente parece que é Luca o mais procurado. A forma determinada e calculista, de fria eficácia, com que Lydia supera o trauma e inicia uma fuga pela sobrevivência, pode até desconcertar o leitor mas, como afirma o narrador, «se há uma coisa boa no terror é o facto de ser mais imediato que o luto» (p. 31). Lydia deparar-se-á, por fim, com a única forma possível de migrar para o país vizinho: «Lydia estuda os comboios de mercadorias em que se deslocam os migrantes da América Central, de uma ponta à outra do país. De Chiapas a Chihuahua, agarram-se ao cimo dos vagões. O comboio ganhou o nome La Bestia, porque a viagem é uma missão de terror em todos os sentidos possíveis e imagináveis. A violência e os raptos são endémicos ao longo da linha férrea e, além dos perigos criminais, os migrantes também correm o risco, todos os dias, de ficarem mutilados ou de morrerem, quando caem do alto dos comboios.» (p. 87)
A Besta: uma viagem de comboio a que todos os anos sobrevive meio milhão de pessoas. Nessa viagem, Luca, o nosso pequeno herói, «um homem de idade num corpinho mínimo» (p. 178), e a sua mãe conhecerão ainda personagens fascinantes com quem partilham o fado de terem de mudar de país para se manterem vivos, afastando-se da violência ou da miséria: «é aquilo que todos os migrantes têm em comum, é aquela a solidariedade que existe entre eles, apesar de virem todos de diferentes lugares e diferentes circunstâncias, uns urbanos, outros rurais, uns de classe média, outros pobres, uns educados, outros analfabetos, salvadorenhos, hondurenhos, guatemaltecos, mexicanos, índios, cada um deles carrega uma história de sofrimento em cima daquele comboio rumo ao Norte.» (p. 183)
Terra Americana, de Jeanine Cummins, publicado em Março pelas Edições Asa, também disponível em ebook e com exímia tradução de Tânia Ganho, é um dos livros mais controversos deste ano. A autora foi inclusive acusada de “apropriação cultural” pois é um romance escrito sobre o México por uma autora norte-americana, pelo que não “pode conhecer a fundo a realidade que descreve”.
A leitura deste livro quer-se compulsiva, virando as páginas ao ritmo da tensão, e a prosa é belíssima. É particularmente bem conseguida a forma como a narrativa oscila entre a focalização na perspectiva de Luca e da mãe, sem haver uma alternância sistemática entre as personagens, sendo que essa cisão de perspectiva pode ocorrer subitamente de um parágrafo para o seguinte, conforme aprouver melhor vivenciar a intriga por um dos dois migrantes. Ver artigo
Volto a Elena Ferrante, autora publicada pela Relógio d’Água, quase 4 anos depois. Já o afirmei antes: não digo que não seja de modas mas a febre Ferrante (há até um documentário com este nome, como devem saber) nunca me atingiu fortemente. Talvez isso se verifique agora pelo que estarei atento aos sintomas.
Quando li A Amiga Genial no final de 2016, gostei do livro, depois vi a série mas parei logo nos primeiros episódios – nem sei bem porquê, aliás até sei, achava que não tinha lido as partes da história correspondentes aos episódios seguintes, do final da infância da Elena e Lila. Só depois é que me apercebi que a primeira temporada, e cada uma das seguintes, corresponde a cada um dos livros da tetralogia.
Estou agora na página 100 desta História do Novo Nome, título que parece dever-se ao novo nome tomado pela Lila, e à nova identidade que de alguma forma adopta, agora como mulher casada, enquanto que Elena se sente inferior – sempre este complexo de inferioridade em relação à (outra) amiga genial –, amputada, ao sentir que perdeu a amiga que transpôs o limiar de uma vida nova onde ela não tem lugar, e desamparada, sem saber que caminho seguir, chegando ao ponto de descurar os estudos – a sua oportunidade (sempre presente esta dicotomia) entre o bairro e uma vida fora do bairro que só será possível com os estudos. Vou entretanto começar a (re)ver a temporada um, de que apenas tinha visto 2 episódios, voltar a escutar a banda sonora do meu caro Max Richter, e tentar terminar a leitura do segundo volume para passar à segunda temporada desta série da HBO – cada temporada tem 8 episódios. Ver artigo
Chega-nos agora, pela Alfaguara, Os Informadores, o primeiro romance do premiado autor colombiano Juan Gabriel Vásquez, um dos mais celebrados escritores contemporâneos de língua espanhola, sobejamente conhecido por A forma das ruínas.
O romance de estreia do autor é também a minha estreia na sua obra com esta extraordinária história de traições e segredos de família.
Quando o jornalista Gabriel Santoro – note-se que o protagonista do romance é homónimo do autor e, tal como ele, jornalista – publica o seu primeiro romance, escrito a partir da história pessoal e da memória de Sara Guterman, uma amiga de família, criada com o pai, judia chegada à Colômbia nos anos 30, em fuga à Alemanha nazi e ao eclodir da Segunda Guerra, não pode imaginar que a crítica mais devastadora será escrita justamente pelo pai – crítica essa, aliás, que exacerbou justamente a visibilidade de um livro que provavelmente teria passado despercebido. Uma Vida no Exílio, «uma reportagem com título de documentário para a televisão» (p. 15), é o único livro de Gabriel Santoro filho e representará também o afastamento de Gabriel Santoro pai, que não perdoa ao filho o ir remexer no passado, ao recontar a história de Sara. Até que, 3 anos depois, o pai o convida para ir a sua casa, como forma de se sentir menos sozinho face a uma operação que se torna iminente.
Num fantástico exercício de desvelamento, em que a verdade se vai despindo por camadas como uma cebola, Os Informadores é narrado numa sucessão de versões da história, em que os acontecimentos vão ganhando uma nova luz, e por conseguinte originam uma nova versão de parte da história. Nos 6 meses depois da operação, o pai de Gabriel aproveita a sua segunda vida para sanar erros e falhas do passado, mas não é ao filho que acaba por revelar o verdadeiro motivo da sua irascibilidade perante o livro em que se revelava ao público a história de Sara, que era também a história de um período negro, em que a Segunda Guerra ensombrou a Colômbia, apesar de este parecer ser apenas um país remoto do outro lado do Atlântico. Lembremos as palavras de Gabriel pai numa das suas aulas, quando fala com os seus alunos mas está, na verdade, a dirigir-se ao filho: «Nessa época todos tínhamos poder, mas nem todos sabíamos que o tínhamos. Apenas alguns o utilizaram. Foram milhares, claro: milhares de pessoas que acusaram, que denunciaram, que informaram. (…) o sistema das listas negras deu poder aos fracos, e os fracos são a maioria. Assim foi a vida durante esses anos: uma ditadura da fraqueza.» (p. 63)
Juan Gabriel Vásquez nasceu em Bogotá, Colômbia, em 1973. Estudou Literatura na Sorbonne e viveu em Barcelona mais de dez anos.
Como tradutor, foi responsável pela tradução de obras de John dos Passos, Victor Hugo e E. M. Forster, entre outros. Escreve regularmente em vários jornais. Os seus livros estão publicados em 30 idiomas em mais de 40 países, com extraordinário êxito junto da crítica e do público. Vencedor e finalista de vários prémios: O barulho das coisas ao cair, publicado cá em 2012 (Prémio Alfaguara, English Pen Award, Impac Dublin Literary Award, Premio Gregor von Rezzori-Città di Firenze); As reputações, em 2015 (Prémio da Real Academia Espanhola, Premio Arzobispo Juan de San Clemente, Prémio da Casa da América Latina de Lisboa, finalista dos Prémios Médicis e Femina) e A forma das ruínas, em 2017 (Prémio Literário Casino da Póvoa Correntes d’Escritas; finalista do Prémio Bienal de Novela Mario Vargas Llosa). Venceu por duas vezes o Premio Nacional de Periodismo Simón Bolívar pelo seu trabalho jornalístico. Em 2012 foi-lhe atribuído em Paris o prémio Roger Caillois pelo conjunto da sua obra. Ver artigo
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