Considerando o tema e a dimensão, ou mesmo o peso, deste livro (publicado pela Temas e Debates), não se mergulha de ânimo leve nestas 823 páginas, em que o autor disserta sobre o nascimento de uma nova mentalidade no século XVII. Mas com leveza e até algum humor, aliados à sua erudição e a uma extensa pesquisa, David Wootton acaba por nos levar numa viagem à invenção da ciência moderna, balizada entre o avistamento de uma nova estrela em 1572 e 1704, quando Isaac Newton publica um estudo em que pretende demonstrar como a luz branca é composta por todas as cores do arco-íris em 1704. Considerando como vivemos num mundo quase novo, apesar de a nossa espécie ter já duzentos mil anos, o autor faz uma complexa análise de como o homem teve de inventar novas palavras à medida que se foi criando novo conhecimento, apesar de muitas vezes grandes sábios e filósofos se recusarem a aceitar aquilo que viam porque, simplesmente, ia contra tudo aquilo que os Antigos defendiam. Pode até defender-se, segundo o autor, que a ciência moderna começou com os Portugueses do século XV, na sua navegação rumo à Ásia, que originou o cunho da palavra «descobrimento», que significou exploração e depois descoberta. Numa sociedade onde se cria que o conhecimento era um conjunto estanque de dados assumidos, sem mais nada a aprender, a descoberta de novos continentes, como a América, revelou que o mundo estava ainda todo por descobrir e o conhecimento era um caminho inteiro à espera de ser percorrido. Conforme o racionalismo ceifa o interesse pelo oculto e as crenças no sobrenatural, a sociedade vai sendo encaminhada para a revolução industrial, depois de passar pela revolução cultural.
Esta portentosa obra procura evidenciar como a revolução científica ocorre entre 1572 e 1704 e como a ciência moderna daí decorrente foi o verdadeiro motor de desenvolvimento da revolução intelectual e cultural, conduzindo-nos à atualidade de um mundo inteiramente assente na ciência. Para Wootton, a modernidade começa portanto com a revolução científica, na Europa, e foi a mais importante transformação na história humana, desde a época do Neolítico. Ver artigo
Ungulani Ba Ka Khosa é dos escritores moçambicanos mais reconhecidos da sua geração. Francisco Esaú Cossa nasceu a 1 de Agosto de 1957 em Inhaminga, na província de Sofala, membro da tribo étnica Tsonga e falante da língua Tsonga, e adoptou como “pseudónimo” o seu nome Tsonga. Formado em Direito e em Ensino de História e Geografia, exerce actualmente as funções de director do Instituto Nacional do Livro e do Disco. É membro e secretário-geral da Associação dos Escritores Moçambicanos.
Gungunhana é um livro que reúne Ualalapi, o romance de estreia de Ungulani Ba Ka Khosa, publicado em 1987 e eleito como um dos cem melhores romances africanos do século XX, e As Mulheres do Imperador, uma nova novela deste autor moçambicano que constitui um regresso a este universo romanesco. Este livro assinala assim trinta anos de escrita ao mesmo tempo que o autor parece fechar um ciclo. Ualalapi narra o fim do império de Ngungunhane, último imperador de Gaza que resistiu ferozmente aos portugueses, entre 1884 e 1895, até que foi feito prisioneiro por Mouzinho de Albuquerque, levado para Lisboa e depois exilado para os Açores.
Ungulani Ba Ka Khosa explora nesta obra, na linha dos sul-americanos, o imaginário mítico do seu país. A obra situa-se entre o conto e o romance, constituída por seis partes, mas sem ser uma narrativa fragmentária. As seis narrativas entretecem-se como unidades in(ter)dependentes, cada uma antecedida por um pequeno texto, intitulado «Fragmentos do fim», textos esses que se encontram numerados de um a seis, numeração essa que parece marcar também a própria evolução histórica que se sente até chegar à queda do império. Esses pequenos fragmentos constituem um levantamento feito a partir de fontes históricas, escritas na óptica do colonizador. Contribuem para esta paródia intertextual o acrescento de citações bíblicas (Job 2, Apocalipse 3, Mateus 6), na precedência de quatro dos contos, frases aforísticas referentes a Ngungunhane, citações de fontes fictícias da autoria do próprio autor e um dos textos trata-se de um fragmento mínimo do discurso de Ngungunhane, antes de embarcar para o exílio. Através da intertextualidade entramos assim no domínio da metaficção historiográfica, como modo de questionar o passado e o presente. Há ainda uma valorização da oralidade, patente no próprio facto de o narrador ser um jovem que mexe em papéis e ouve um velho, junto a uma fogueira, a transmitir uma estória que, por sua vez, lhe foi contada pelo avô.
As Mulheres do Imperador, uma novela com pouco menos de cem páginas, é – conforme anunciado na contracapa – um tributo ao papel das mulheres na História, neste caso as favoritas da corte do imperador, «sempre secundarizadas pela História». Mas, na verdade, as mulheres já estavam bem presentes em Ualalapi, até porque é quase sempre a partir da perspectiva do outro que o autor constrói aos nossos olhos a figura do mítico imperador. O que se configura nesta nova novela é o fim definitivo do império, quinze anos depois, quando as mulheres do imperador regressam do seu exílio em S. Tomé a Lourenço Marques, para testemunhar o início de uma nova época, quando os nativos vivem completamente subjugados e dominados pelo colono, e novos bairros começam a surgir em torno da cidade, conforme os pretos vão sendo empurrados para bairros fora da cidade, como o da Mafalala, ao mesmo tempo que assimilam uma nova cultura. O narrador esquece muitas vezes essas mulheres que toma como personagens centrais, para nos dar, uma vez mais, uma perspectiva dispersa e fragmentada ou complementada por diversos olhares. As características que tornam a escrita de Ungulani Ba Ka Khosa tão peculiar e interessante estão também bem presentes nesta obra, como, por exemplo, a forma como muitas vezes recorre a termos das línguas locais para designar algo, explicando depois ao leitor o equivalente semântico da palavra ou qual o significado e/ou origem da palavra, ou ainda os diálogos entre as personagens, que muitas vezes consistem numa réplica sucessiva de provérbios, geralmente alusivos aos animais e à natureza. A linguagem de Khosa é imaginativa, visual, densa, violenta, o que por vezes se revela de forma chocante, de forma a transluzir uma forte carga simbólica e mito-poética, conforme à tecitura poética do maravilhoso e do realismo mágico. Ver artigo
O autor, nascido em Londres em 1967, arquitecto e professor de Artes Visuais, foi finalista do Prémio Leya em 2014 com Perguntem a Sarah Gross, livro que foi depois publicado pela Leya (como tem acontecido com as obras finalistas) e escolhido como Melhor Livro de Ficção Narrativa de 2015 pela Sociedade Portuguesa de Autores. Neste segundo romance, vencedor do Prémio Leya de 2017, João Pinto Coelho regressa à Polónia, país onde integrou já duas acções do Conselho da Europa em Auschwitz, trabalhou proximamente com vários investigadores do Holocausto e realizou intervenções públicas sobre essa matéria.
No Nordeste da Polónia, «numa certa cidade em forma de medalha perdida na floresta» (p. 303), igualmente descrita por vezes como «círculo perfeito» (p. 287) existe um shtetl, termo iídiche para uma pequena cidade do Leste da Europa cuja população é constituída maioritariamente por judeus (p. 29). Este espaço circular, nunca nomeado, surge como alegoria de um lugar que por mais fechado e por muito apartado da civilização sempre resulta como cenário à revelação, esperemos nós, não da verdadeira natureza do homem mas do seu lado mais obscuro e selvagem, num acto fugidio de loucura (para a qual aponta o título) que o tempo não apaga. À luz do que se tem lido ultimamente, e que o autor refere na «Nota do autor», a Polónia parece querer reescrever a sua história de modo a não dar conta da participação polaca nos crimes perpetrados contra concidadãos judeus durante o período da ocupação pela Alemanha nazi. Esta localidade em forma de disco pode representar assim Jedwabne, pequena cidade do nordeste da Polónia, ou, mais livremente, a circularidade da História e de como tantas vezes se cometem os mesmos erros.
A acção tem início em Paris em 2001, quando dois velhos amigos, apesar de os separar agora as largas décadas em que ficaram sem se ver, se reencontram. Yankel é um livreiro cego, que foi belo como um deus, continua bonito, e parece imortal como o tempo, vivendo aliás rodeado de relógios, cuja maior companhia são os romances, e ocasionalmente alguns contos, lidos em voz alta por mulheres que vão ficando «entre as páginas e os lençóis» (p. 10) – a literatura de alcova ganha aqui outro sentido. O melhor da narrativa é a forma como o romance parece escrever-se dentro do próprio romance, e os diálogos entre os dois velhos amigos, quando em 2001 Eryk tenta convencer Yankel a ser o seu “co-autor”, até porque as memórias que pretende deixar escritas não se fizeram sozinhas. Eryk, agora conhecido como Paul Lestrange, tornou-se um escritor famoso e, doente, decide regressar às suas memórias para escrever definitivamente a sua última obra, que o tem acompanhado desde há muito. Vivienne é a editora de Eryk há mais de quarenta anos e a sua mulher, a rasurar a história e a sugerir caminhos. Estabelece-se assim um triângulo amoroso, que alterna com o de há cerca de 70 anos, quando Shionka, a filha da bruxa, toma de assalto a amizade de Eryk, cristão, e Yankel, judeu.
É irónico que Paul Lestrange seja o pseudónimo tomado por Eryk quando começa a escrever, pois é ele quem vê de fora a relação de amizade que resulta em sexo e eventualmente amor de Yankel, cego, e de Shionka, a rapariga muda e quase primitiva. É ainda irónico que Eryk seja assumido como o escritor que decide revisitar a sua infância e reescrever a sua história, quando é Yankel, o cego, que lhe ilumina os recessos da memória, que pode ou não corroborar a sua versão dos factos – sendo que Yankel claramente não viu tudo o que então se passou e não sabe o que Eryk sentiu ou fez – e é ainda a voz de Yankel que podemos ouvir/ler em diversos momentos da narrativa, na primeira pessoa, e surgindo grafada no texto em itálico, numa clara distinção face à tessitura narrativa na terceira pessoa. É essa voz narrativa omnisciente que pretende dar conta de um vasto número de personagens, o que a certa altura pode ser desafiante para o leitor. A complexidade narrativa, repartida por uma pluralidade de vozes e de pontos de vista, chega mesmo, a certa altura, a oferecer-nos a perspectiva de um cão. O que aliás pode fazer todo o sentido, pois nesta narrativa o autor tem a coragem de revelar como a condição humana pode descer ao mais abjecto, quer pelos actos cometidos, quer pela forma como é maltratado e humilhado pelo seu congénere. Os judeus são em diversos momentos, ainda antes do final, encarados e tratados como animais, sendo que um cão pode obter mais simpatia por parte de um cristão do que um judeu. Ver artigo
John Fante não alcançou reconhecimento em vida, mas é hoje considerado um dos grandes autores da sua geração, notabilizado por Charles Bukowski o ter considerado como seu mentor.
É um pequeno livro, com cerca de 100 páginas, cujo discurso entre o lírico e o prosaico fazem desta obra uma pérola literária. Não falta uma boa dose de ironia e de humor, face às situações mais caricatas vivenciadas e provocadas pelo jovem herói. Com 17 anos, a um ano de terminar o liceu, Dominic Molise está desejoso de sair de casa e perseguir os seus sonhos de fama e riqueza como jogador de basebol. Ver artigo
Um livro em formato de bolso, numa belíssima edição de capa dura da Quetzal, fácil de transportar e manusear, como um refúgio a que podemos sempre recorrer durante uma viagem em transportes ou numa pausa no trabalho.
Erling Kagge é um editor norueguês, explorador, montanhista, advogado, coleccionador de arte e pai de três filhas adolescentes. Foi o primeiro ser humano a chegar ao Pólo Norte, Sul e ao pico do Evereste. É ainda autor de livros sobre exploração, sobre filosofia e sobre coleccionismo de arte.
Num livro onde não faltam referências e fontes, partindo de pensadores como Séneca ou Kierkegaard, bem como fotos (ainda que a preto e branco), feito de pensamentos aparentemente soltos, entre o diário e a reflexão, o autor faz uma análise da sociedade moderna, em que o silêncio se tornou um bem precioso. Não somente o silêncio como anulação de ruído, como o do trânsito de quem vive numa grande cidade, mas também o silêncio como espaço interior e mental de tranquilidade.
Convidado a proferir uma palestra numa universidade na Escócia sobre um tema à sua escolha, o autor inspira-se num tema diferente. Tendo caminhado durante cinquenta dias na Antártida com um rádio avariado por companhia, habituado a falar de «viagens em situações extremas até aos confins do mundo», Erling Kagge recorre antes a um assunto que tentou lançar durante um jantar em família, acontecimento cada vez mais raro mesmo a um domingo, com as filhas de 13, 16 e 19 anos, sobre a natureza do silêncio e os segredos que nele residem. Em troca dessa palestra, o autor obtém três perguntas que o perseguirão a partir de então: «O que é o silêncio? Onde é que se encontra? Por que razão é agora mais importante do que era dantes?» (p. 13)
Em Silêncio na Era do Ruído, o autor tenta dar resposta em 33 capítulos, ou «tentativas de resposta», de como é cada vez mais difícil não sermos interrompidos pelo ruído exterior, assim como pelo constante zumbir dos telefones e computadores, que nos puxam para alguma tarefa inadiável, ou, por vezes, num mero reflexo claramente indicador de que é cada vez mais complicado para o ser humano estar quieto e em silêncio, nem que seja uns minutos por dia, pois impera uma noção mais ou menos inconsciente de que temos de estar constantemente ocupados e a fazer algo ou a preencher o vazio da nossa existência… com ruído. Ver artigo
Adoecer (Relógio d’Água, 2010) tem sido extremamente bem recebido e comentado, além de premiado. Esta obra pode ser classificada como uma biografia romanceada, pois a autora parte de uma figura histórica da segunda metade do século XIX inglês. Elizabeth Siddal (Lizzie), uma mulher também ela portadora da marca da diferença, pelo seu ar exangue e pela sua cabeleira ruiva, vive de forma marginalizada, em parte pela sua doença, em parte por ter uma relação que quebrava as convenções da época com Dante Gabriel Rossetti, poeta e pintor excessivo e inconformista. Além disso, Lizzie provinha de origens humildes mas ainda conseguiu frequentar a Escola de Artes de Sheffield, sendo que era quase impossível na altura o acesso das mulheres ao ensino das artes. Foi pintora e poeta, e tornou-se a modelo mais famosa da época e musa inspiradora dos pré-rafaelitas, tendo posado para o quadro Ofélia de John Millais, que a imortalizou. Lizzie foi também poeta. Desta obra pode-se destacar como a autora opta por mais uma vez se focar na figura do artista e do poeta, como alguém à margem da sociedade, e subverte ainda, especialmente no início, as convenções cronológicas do romance, iniciando a narrativa pelo ano de 2005, relatando como visitou o cemitério de Highgate, a fim de visitar a campa de Lizzie, a protagonista do romance que terá iniciado nessa mesma data (o que lembra o início de Lillias Fraser). Hélia Correia não se coíbe de adoptar um tom confessional e confrontar directamente o leitor, além de recorrer a diversos registos, inclusive o diarístico, e constrói um romance que resulta de uma confluência de fontes diversas, como cartas, diários, artigos de jornal, memórias, poemas. São igualmente referidas e aproveitadas como personagens diversas figuras da época vitoriana, como Charles Darwin, Charles Dickens, Byron, a Rainha Vitória, Mary Shelley ou Emily Brontë. Este é o romance mais extenso de Hélia Correia, o mais complexo e ambicioso, numa narrativa extremamente documentada e que requer leitura atenta, até pela prosódia lírica própria da escrita da autora. Ver artigo
O Número dos Vivos (1982), considerado o primeiro romance da autora, sendo as restantes obras usualmente consideradas novelas, situa-se mais uma vez num contexto de província, sendo as personagens principais mulheres, das quais se destacam Romana e Maria Emília, que parecem formar um binómio. Maria Emília recebe de presente da madrinha um espelho aos dezasseis anos, objecto simbólico – «foi aquele pequeno espelho que lhe abriu o destino» (p. 23) – que parece, primeiro, conferir uma nova identidade à jovem, que abandona a vida pobre no campo para passar a viver com uma família em Sangréus, como acompanhante de Romana, a única filha do casal. Maria Emília vai ganhando posição dentro da casa, enquanto que Romana acaba por desaparecer com um grupo de ciganos. Mais tarde, casa-se com Henrique e aos elementos neo-fantásticos do romance alia-se o que pode ser uma reescrita paródica de Madame Bovary. Maria Emília parece condensar em si certos traços de vampira, o que pode ser uma forma de evidenciar a vampirização social que realiza, ao ascender de posição. Entretanto numa atitude de revolta para com aquele mundo de pequena burguesia em que se vê encurralada, entre a sogra e o marido, envolve-se com o sogro, e é também nessa relação incestuosa que parece recuperar do desprezo a que se sentia votada pelo marido, enquanto que o sogro vai definhando. Maria do Rosário, a filha ilegítima, nasce muda, o que Maria Emília acredita ser punição divina, e acaba por enlouquecer – «riso ácido dos loucos» (p. 177) – enquanto crê ser visitada por Romana em visões e aparições. Romana aparece aliás, por diversas vezes, descrita de forma ambígua, como uma presença fantasmática: «Tinha o rosto marmóreo e os olhos parados, muito claros e lisos, como que desprovidos de toda a consistência.» (p. 71); «Por onde ela passava, os móveis, os objectos, os quadros das paredes resplandeciam num luar de fósforo.» (p. 78). Ver artigo
Soma (Relógio d’Água, 1987) traz na contracapa a indicação de que a autora se afasta do seu «universo habitual». A autora afasta-se agora da decadência das famílias burguesas da província para atentar num «desespero recente e urbano». Contudo este desvio é apenas aparente. Os temas caros à autora mantêm-se, como certas formas de neo-fantástico ou a marginalidade e a loucura. António é um homem de 40 anos, professor de História, divorciado e pai de um adolescente, alguém que viveu a febre de mudança dos anos 60 e de Abril, no que aparenta ser uma crise de meia-idade se enamora pela visão da jovem Bárbara. António persegue-a, como Alice atrás do coelho branco, apenas para dar por si a cair num mundo à parte, passando a ser acolhido por uma comunidade marginal, com Carlinhos, um traficante de drogas, e Jonas, jovem imerso no mundo dos computadores, como se essa realidade alternativa fosse uma outra espécie de droga, ao mesmo tempo que o próprio António toma as suas próprias doses de prazer nas noites ocasionais em que Bárbara o visita. O próprio título da obra remete para uma droga de que Aldous Huxley fala, uma droga perigosa mas com efeitos benéficos. Ver artigo
A Casa Eterna, originalmente publicada em 1991 pela Dom Quixote (sendo a obra da autora actualmente publicada pela Relógio d’Água) marca uma cisão na escrita da autora, pois incorre-se aqui numa tentativa de biografia ficcionada, como acontecerá depois em Adoecer ou mesmo em Lillias Fraser. Além da natureza da obra, importa referir que nestas obras a voz narrativa é claramente assumida na primeira pessoa e na voz de uma mulher que se pode confundir com a autora. É um romance de estrutura circular, e por isso se defendeu que a autora recria o mito do eterno retorno, em que um poeta volta à sua terra-natal para morrer: «Ele tentava encontrar o fim da circunferência, o ponto no vazio de onde nascera» (p. 184). O próprio título da obra parte de uma passagem apresentada em epígrafe, retirada do livro do Eclesiastes, que dá conta dessa casa eterna como a morada final à qual o homem regressa. Não é por acaso que se descreve como o poeta Álvaro Baião Roíz terá morrido encostado a uma árvore na margem de um rio, como quem regressa ao útero materno ao largo do rio do tempo que a narradora procurará percorrer às arrecuas: «quero apenas juntar o fim com o princípio para que um ilumine o outro e o esclareça» (p. 126).
A narradora parte para Amorins, aldeia onde nasceu e cresceu o poeta, e aonde regressou para morreu, para tentar perceber o que realmente aconteceu com o poeta Álvaro Roíz cuja morte ocorreu em circunstâncias obscuras. Mais próximo do final da narrativa, encontramos indícios de que o poeta pode ter sido amante da narradora, que aliás ficou com o seu gato azul, Zaratustra.
O livro tem ainda uma natureza fortemente metaficcional que impede o leitor de esquecer que lida com uma biografia ficcionada: «Transformá-lo agora em personagem é não o encontrar e tecer uma espécie de glosa à sua volta» (p. 25). Ver artigo
Kazuo Ishiguro, publicado pela Gradiva e Prémio Nobel de Literatura em 2017, nasceu em Nagasáqui, Japão, em 1954, e vive na Grã-Bretanha desde os 5 anos. De toda a sua obra, Os Inconsolados é muito provavelmente a obra mais complexa e desafiante, podendo ser lido como uma metáfora sobre a vida.
Mr. Ryder é o convidado ardentemente esperado para dar um concerto numa cidade inominada, que pode ser em qualquer ponto da Europa, mas mais provavelmente algures na Alemanha. Sem programa, e com uma memória dúbia do que realmente está ali a fazer, o leitor vai captando o desenrolar da narrativa através da perspectiva amnésica desta personagem, e só gradualmente vamos percebendo que afinal Mr. Ryder, um ilustre maestro, está de regresso àquela que é a sua cidade-natal. As personagens com quem se vai cruzando, e que nunca dá mostras de reconhecer, acabam por se revelar amigos de infância. Nem mesmo quando encontra a mulher e o filho se Ryder demonstra sentir qualquer reconhecimento inicial.
Um livro intrigante, quase kafkiano, até pela forma labiríntica como vamos passando de uma situação para outra, e uma porta leva sempre a um sítio inesperado, como se num edifício desembocassem várias realidades paralelas, com uma natureza que tem tanto de sonho como da ilógica própria de Alice no País das Maravilhas (como quando num enterro a viúva pede que arranjem alguma coisa para servir o chá e os presentes começam a vasculhar os bolsos).
Um tributo à música e à arte. Uma reflexão sobre a vida. Um livro com mais de 400 páginas que se torna desafiante, mas igualmente intrigante, cativando o leitor que vai tentando desfiar o fio desse labirinto por onde o maestro se parece perder ao longo de três dias em que está de regresso à sua cidade-natal, onde irá ser a estrela de um importante concerto ao mesmo tempo que parece imbuído da missão de ajudar a comunidade a reencontrar a verdadeira arte. Ver artigo
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