Depois de se ter aqui apresentado Breviário Mediterrânico, chega a vez deste livro de Paul Theroux, obra inaugural de Terra Incognita, a colecção de literatura de viagens da Quetzal, num formato especial, que muito promete a quem não gosta de turismo, mas fazem da viagem um modo de viver e de conhecer o mundo.
Com dezenas de livros publicados, vários deles publicados em Portugal pela Quetzal, tendo vivido fora dos Estados Unidos por uma década, pela Europa, Ásia e África, como professor ou escritor em serviço, esta é a primeira vez que o autor viaja justamente com o intuito de escrever, mas o risco assumido de escrever sobre uma viagem que não implica ficção, nem autoficção, nem um plano estudado, resultou num êxito de vendas, originalmente publicado entre nós em 2008. Como o próprio autor elucida no prefácio: «O livro de viagens era uma maçada. Era um maçador que o escrevia e eram uns maçadores que o liam.» (p. 11)
Neste denso relato de quase 400 páginas, que intenta tão somente fazer o relato de uma viagem, com partida em Londres no Expresso do Oriente, e atravessando a Turquia, o Irão, o Balochistão, Paquistão, Vietname, China, Mongólia e União Soviética, o autor leva-nos numa delirante viagem feita em 1973 que dura cerca de 4 meses e implica 30 comboios diferentes. A ideia aqui não é aterrar no destino, mas testar-se continuamente e autodescobrir-se numa aventura que lhe pode custar a vida e a sanidade.
Paul Theroux limita-se a narrar factualmente aquilo que presencia, dentro e fora do comboio, em especial os diálogos, em jeito de documentário, que estabelece com as pessoas com quem se cruza ou que vão irrompendo pelo seu compartimento: «Houve um drama perto de Niṧ. Numa estrada perto da linha, uma multidão batia-se para olhar para um cavalo, ainda com os seus arreios e preso a uma carroça sobrecarregada, que jazia morto, de lado, num charco de lama em que a carroça estava obviamente atolada. (…) crianças chamavam os amigos, um homem deixava cair a bicicleta e corria para trás para dar uma olhadela, e mais adiante um homem que urinava contra uma cerca esforçava-se por ver o cavalo. A cena estava composta como uma pintura flamenga em que o homem que urinava era um pormenor realista.» (p. 53)
Paul Theroux cede muito pouco à autocontemplação ou à recriação. Apenas nas páginas finais revela um pouco o que sente, conforme se aproxima o final da sua viagem, onde desvela aquilo que um viajante experiente já sabe: «Toda a viagem é circular. Eu tinha andado aos solavancos pela Ásia, fazendo uma parábola num dos hemisférios do planeta. Afinal, o grande circuito é apenas o modo de o homem inspirado se dirigir a casa.
E tinha aprendido aquilo em que sempre acreditara secretamente, que a diferença entre a escrita de viagens e a ficção é a diferença entre registar o que os olhos veem e descobrir o que a imaginação sabe.» (p. 379)
E assim terminará esta nossa viagem, num círculo fechado, em que se chega ao ponto de partida, como um livro que se fecha para depois voltar a ler, como uma viagem de comboio que se repete mas que será sempre nova apesar de já termos visitado aqueles apeadeiros e estações. Ver artigo
Se o leitor não atender ao título, pode surpreendê-lo que os 16 ensaios e discursos de Jonathan Franzen, reunidos neste volume, publicado no final do ano passado pela D. Quixote, se debrucem não sobre literatura ou escrita, mas essencialmente sobre o meio ambiente; detentor de uma voz pessimista, ou cruamente realista, de que as medidas que sejam tomadas simplesmente já não podem evitar o pior, pois mesmo que tudo se mude, como se defendia há mais de 20 anos, a ideia de que a aceitação universal dos factos e uma acção colectiva à escala mundial pode travar o pior é, afinal, uma ficção (p. 27). Note-se como Moçambique, no espaço de um mês, foi assolado primeiro pelo ciclone Idai (que eu vivi, aqui na Beira) e depois pelo Kenneth, provocando centenas de mortos e dezenas de milhares de desalojados, naquele que já é considerado o pior cenário de catástrofe ambiental do Hemisfério Sul. Ver artigo
Um retrato psicológico, negro, de como as pessoas vivem desencontradas na contemporaneidade e, mesmo com a família ou com quem estabelecem laços afectivos, a ponte que procuram estabelecer com aqueles que os rodeiam é insuficiente e imperfeita. Na relação entre professora e aluno, entre mãe e filho, entre colegas e amigos, entre marido e mulher, há sempre um fosso em que a pessoa está tão embrenhada nas suas próprias profundezas que quase não consegue tocar o outro, por vezes assombrada ainda pela infância, como é o caso de Hélène, e correndo o risco de projectar num aluno aquilo que sofreu na pele.
A narrativa reparte-se entre Hélène, a professora, Théo, o aluno, Mathis, o colega, e Cécile, a mãe de Mathis. Curiosamente, são apenas as mulheres, a professora e a mãe, que ganham voz no romance através do registo na primeira pessoa.
Perpassa neste romance, publicado pela Gradiva, uma forte noção da contemporaneidade, até porque, como se afirma, a certa altura, o tempo da inocência chegou ao fim (p. 93). Théo imagina-se um participante vencedor de um reality show, de modo a transformar o trabalho em divertimento; as fotografias funcionam como mistificações ilusórias; o marido de Cécile revela-se um perfeito estranho quando ela descobre o seu avatar nas redes sociais e num blogue pessoal, em que ataca e contesta «tudo e mais alguma coisa, sem nunca assumir o teor das suas afirmações» (p. 147), de forma anónima, ambivalente ou extremista, sem nunca se dar a conhecer. Um mundo solitário e negro, em que uma criança de doze anos e meio encontra na bebida a única forma de salvação: «Contrariamente à maioria dos alimentos, o álcool não é digerido. Passa directamente do aparelho digestivo para os vasos sanguíneos. (…) É no cérebro que os efeitos se fazem sentir mais depressa. A ansiedade e o medo diminuem, e às vezes chegam mesmo a desaparecer. Dão lugar a uma espécie de vertigem ou excitação que pode durar várias horas.» (p. 107)
Delphine de Vigan é escritora, realizadora e argumentista, com oito romances publicados em França, onde nasceu, e alguns adaptados ao cinema. É especialmente lida entre os mais jovens e detentora de prémios como o Prémio Elle, Fnac, Televisão Francesa, Goncourt e Renaudot. Ver artigo
A. S. Byatt nasceu em Yorkshire, em 1936, e em 1972 tornou-se professora de literatura inglesa e americana na University College em Londres. Em Portugal, tem poucas obras publicadas mas será sobejamente conhecida pelo romance Possessão, vencedor do Booker Prize em 1990, publicado em 2010 pela Sextante, adaptado a filme.
Ragnarök – O Fim dos Deuses é mais um título a integrar a colecção de Mitos que a Elsinore está a publicar entre nós, não sei ainda se de forma sistemática, originalmente publicada pela editora Canongate. Já aqui se apresentaram outros títulos desta colecção, com capas duras, belamente ilustradas por Lorde Mantraste, como A Odisseia de Penélope ou O Mel do Leão, de autores igualmente aclamados. (…)
A autora explica, numa nota final, como escolheu o mito nórdico de Ragnarök porque este representa o último de todos os mitos: «o mito que põe fim aos mitos, o mito em que os próprios deuses são destruídos» (p. 140). Ver artigo
O segundo e último volume de A Morte do Comendador do autor japonês Haruki Murakami foi publicado pela Casa das letras em Março, e depois de se ter apresentado aqui o primeiro volume podemos agora fazer um balanço desta obra, sem repetir as ideias já expressas referentes ao volume anterior, da mesma forma que Murakami continua a publicar regularmente, há mais de 30 anos, e com pelo menos 30 livros já publicados, sem que se repita, mesmo que o seu universo seja relativamente identificável e fiável.
O retratista, ocasionalmente pintor, personagem sem nome, continua a narrar as suas aventuras durante uma espécie de exílio que dura algo como 8 meses, em que ele se isola do mundo na casa de um pintor famoso, pai do seu amigo. Sem incorrer no risco de contar demasiado sobre a narrativa, há sinos que tocam em câmaras de pedra todas as madrugadas por volta das 2 h, existem Metáforas Duplas e as Ideias tornam-se personagens, à semelhança dos modelos saídos de um quadro que ganham vida, e falam de forma rebuscada como nos tempos clássicos, mesmo que não ultrapassem os setenta centímetros de altura. Nesta narrativa, Murakami dá mais ênfase à ópera, talvez por haver um episódio da história da Europa que aqui surge em pano de fundo, muito ao de leve, e por isso não é agora o jazz que serve de banda sonora, mas sim O Cavaleiro da Rosa, de Richard Strauss, enquanto o quadro que dá nome ao livro ressoa ecos de Mozart, com Don Giovanni. Murakami procura cruzar, ainda que de forma muito ligeira, a cidade de Viena quando ocupada pelos nazis com a Noite de Cristal, e enche este romance de homens sofridos que encontraram na arte o seu único escape, como é o caso do protagonista, mas não a salvação, como pianistas que interpretam Chopin ou pintores que dão corpo a episódios de ópera num quadro que o mundo nunca conheceu. À semelhança do nosso herói, que se procura refazer de um divórcio e vive como um eremita, apesar de sempre rodeado de várias pessoas que encontram nele um farol ou um bom ouvinte, Murakami leva-nos a entrar numa toca, como quem segue um coelho branco, e enreda-nos nas suas densas narrativas onde ficam sempre mais perguntas do que certezas e a premonição e as coincidências parecem tecer o véu do real.
O autor continua a ser traduzido a partir do inglês por Maria João Lourenço (agora com uma ajuda de Ana Lourenço), numa tradução que melhorou bastante desde livros anteriores como Kafka à beira-mar. Compreende-se que a tradução procura corresponder a uma leitura dos livros fluída, intentando respeitar o espírito de uma prosa escorreita e oralizante, por vezes, em que o narrador interpela directamente o leitor em vários momentos. Contudo, apesar de já não nos depararmos com expressões como “meter o Rossio na Betesga” e “nos cus de Judas” ainda assim talvez a tradução pudesse fazer um uso menos recorrente de outras expressões coloquiais que podem desvirtuar a narrativa, como “a ponta de um corno”, “acto contínuo” ou “dar um abalo ao pífaro”… Ver artigo
«A vida de Agustina era a escrita» – Entrevista a Isabel Rio Novo Ver artigo
Susan Sontag, uma das mais importantes intelectuais norte-americanas da segunda metade do século xx, é conhecida sobretudo pelos seus ensaios. Nasceu em 1933, em Nova Iorque, onde viveu até à data da sua morte, 2004. Várias vezes premiada e amplamente traduzida, foi professora e uma activista na defesa dos direitos das mulheres e dos direitos humanos em geral. Escreveu nas mais prestigiadas publicações norte-americanas, como The New Yorker, The New York Review of Books, The New York Times, The Times Literary Supplement, Art in America, Antaeus, Par-nassus, The Nation e na Granta.
Histórias (Stories) reúne toda a ficção breve deixada pela autora, publicada pela Quetzal, e consiste em 11 textos, traduzidos por Vasco Teles Menezes, originalmente publicados em revistas como The New Yorker ou Playboy, entre as décadas de 60 e 80. Alguns destes contos chegam às 50 páginas, em que a autora ora põe a nu o seu lado íntimo, podendo nós assumi-los como textos autobiográficos, ora aposta em textos mais ambíguos, próximos da alegoria, segundo a contra-capa, ou de uma ambiguidade difícil de definir, a que só os bons autores nos conseguem transportar sem risco de perder o leitor.
Deste volume, podemos destacar «Peregrinação», a minha história favorita, em que a autora conta como em 1947, com 14 anos, depois de descobrir A Montanha Mágica, tem a oportunidade de conhecer Thomas Mann que na década de 40 vivia, assim como outras celebridades, no sul da Califórnia. Mas este episódio em que a jovem leitora conhece um grande escritor também é imbuído de algum desencanto: «Não me teria importado se ele tivesse falado como um livro. Queria que ele falasse como um livro. O que me estava a começar obscuramente a incomodar era o facto de (coisa que eu não teria conseguido verbalizar à época) ele falar como uma crítica a um livro.» (p. 37); «O homem que conheci não tinha mais do que fórmulas sentenciosas para dar, embora fosse o homem que escrevera os livros de Thomas Mann. E eu proferi apenas ingenuidades arrancadas a ferros, embora me encontrasse repleta de sentimentos complexos. Nenhum de nós esteve ao melhor nível.» (p. 42)
Alguns destes contos são mais experimentais, mas ainda assim revelam-nos dados sobre a infância e juventude da autora, como «Projeto para uma viagem à China». Mas, na sua maioria, estas histórias tocam momentos mais dramáticos de uma vida humana, como o suicídio de uma amiga, a doença de um amigo próximo – nos primórdios da epidemia da SIDA –, a morte de um filho (aqui a roçar a sátira) ou o desaparecimento de um pai.
O filho de Susan Sontag, David Rieff, foi o editor dos seus diários inéditos, publicados pela Quetzal, com o título Renascer. Susan Sontag viveu os últimos anos da sua vida com a fotógrafa Annie Leibovitz. Ver artigo
«Um diário de bordo, uma narrativa de viagem, um livro de aforismos ou de orações, um atlas, um romance ilustrado do século XX, um tratado poético-filosófico, um livro de História Antiga», conforme reza a contracapa do livro. Um livro difícil de definir, mesmo que tenhamos todo um paratexto para nos guiar, pois a obra conta ainda com uma nota introdutória de Francisco José Viegas, uma introdução do autor Claudio Magris e um posfácio de Robert Bréchon, onde não faltam gravuras, além de que toda a segunda parte do livro consiste numa exploração de cartas (mapas).
Predrag Matvejevitch, eminente ensaísta eslavo nascido na Bósnia-Herzegovina, discorre entre o ensaio e o caderno de apontamentos, entre o diário de bordo e a crónica, no que se afigura um poema épico, com uma bela tradução de Pedro Tamen, onde tudo conflui para dissertar sobre o Mare Nostrum, conforme apelidado pelos romanos. Este livro «não é nem um estudo objetivo (tratado, tese, ou aquilo que é uso chamar erradamente ensaio), nem uma sequência de impressões, de considerações ou de divagações. O Breviário situa-se na faixa estreita que permaneceu livre entre o discurso académico e o discurso «poetizante», ameaçado pelo kitsch. O que define o género pouco habitual a que pertence é a maneira de o escritor se situar relativamente ao conteúdo e à forma da sua obra.» (p. 273-274)
O mosaico mediterrânico, as suas fronteiras, os molhes e portos, as ilhas e as gentes insulares, as penínsulas, os cemitérios, as ondas, os ventos, as correntes, a espuma do mar, as costas, os seixos que cabem na palma da mão, os golfos, as grutas marinhas, as nascentes, os faróis, as gentes costeiras, as imprecações e as línguas, os mercados, os pesos e as medidas, as salinas, o artesanato, os azeiteiros e os salineiros, os tanoeiros, os barcos, a natação, o mergulho, a pesca das esponjas, os apanhadores de corais, os rios, as árvores, da figueira à oliveira, e os povos que se centram em torno deste mar…
O autor escreve com exuberância e ligeireza poética, a partir da sua memória e vivência, com erudição e fantasia, guiando o leitor num fabulosa viagem através da faixa litoral do Mediterrâneo, percorrendo-o de lés a lés, no espaço e no tempo, e leva-nos a navegar com ele: «Há viagens depois das quais o nosso olhar deixa de ser o mesmo e outras em que até o nosso passado se transforma: essas abrem ou concluem as histórias do Mediterrâneo.» (p. 87)
Com este livro e outro que apresentaremos depois, de Paul Theroux, inaugura-se Terra Incognita, a colecção de literatura de viagens da Quetzal, num formato especial, que muito promete a quem não gosta de turismo, mas fazem da viagem um modo de viver e de conhecer o mundo. Ver artigo
Não é por acaso que escolho este livro para retomar a rubrica da Leitura da Semana depois de um interregno de 3 semanas. Nunca aqui surgiu em conversa, creio, nem quero fazer desta rubrica uma crónica mas não posso deixar de dar aquilo que pode parecer uma desculpa descabida. Este silêncio de 3 semanas em que não vos pude deixar aqui as minhas sugestões de leitura prende-se com o facto de não ter lido uma única linha neste espaço de tempo, depois de ter vivenciado a passagem do ciclone Idai na cidade da Beira, em Moçambique, onde resido há ano e meio. Face a uma situação destas, em que uma cidade fica devastada, e a nossa vida profissional e pessoal, sem casa, sem trabalho, sem condições de saúde ou de segurança, sem rotina, é difícil manter a calma e o foco. Mas o cérebro humano, ou a alma humana, surpreende-nos, e quase sempre pela positiva, permitindo manter o foco nas situações mais difíceis.
O livro Resiliência integra a colecção Inteligência Emocional da Harvard Business Review (HBR), lançada pela Actual Editora (chancela da Almedina), e é uma obra que revela isso mesmo: as chaves para o sucesso na vida profissional, que é como quem diz na vida em geral, revelando quais as características ou atitudes que permitem emergir de situações de emergência em que aquilo que conhecíamos fica virado do avesso.
«Assumimos muitas vezes uma perspectiva «dura», militarista da resiliência e da coragem. Imaginamos um fuzileiro a avançar através da lama, um pugilista a disputar mais um assalto, ou um jogador de futebol a levantar-se do relvado para uma nova jogada. Acreditamos que quanto mais tempo aguentamos, mais fortes somos, e que por isso seremos mais bem-sucedidos. Porém, toda esta conceção é cientificamente incorreta.» (p. 102)
São 6 artigos breves, sucintos, que se lêem numa pausa para um café ou num transporte público, de autores de renome como Daniel Goleman, psicólogo e autor do best-seller Inteligência Emocional, que apresentam investigações e casos de figuras que se tornaram conhecidas pelas piores e pelas melhores razões. Há diversas dicas lançadas ao leitor como manter uma rotina, assegurar intervalos para repouso, munir-se de acontecimentos e memórias positivas para aumentar a sua moeda do optimismo, saber construir relações e fazer-se rodear de conhecidos úteis que podem ser mais eficazes na reconstrução de uma carreira do que os amigos e familiares, enfrentar a realidade com alguma dose de humor negro…
A coleção Inteligência Emocional consiste em artigos acessíveis, que vão além do papaguear dos livros de auto-ajuda, com informações essenciais sobre o lado humano da vida profissional e com base em investigações comprovadas que mostram como as emoções são determinantes na nossa vida profissional. Especialmente direccionado para gestores, diretores de recursos humanos, psicólogos, e para todos aqueles com ambição profissional e pessoal de chegar mais longe e fazer melhor. Ver artigo
O livro Comportamento – A biologia humana no nosso melhor e pior não é propriamente recente, pois foi publicado em Outubro do ano passado, pela Temas e Debates, mas será certamente intemporal, até que algum estudo mais completo o possa complementar. Procurando responder à questão «Porque fazemos o que fazemos?», e recorrendo ao resultado de mais de uma década de trabalho, Robert Sapolsky tenta responder a esta pergunta centrando-se, sobretudo, no «conjunto confuso de sentimentos e pensamentos sobre violência, agressividade e competição» que a maioria dos seres humanos carrega (p. 10).
«Pondo as coisas de forma mais óbvia, a nossa espécie tem problemas com a violência. Possuímos os meios para criar milhares de cogumelos atómicos; chuveiros e sistemas de ventilação subterrânea já disseminaram gases venenosos, cartas levaram anthrax, aviões de passageiros foram transformados em armas; violações em massa podem constituir uma estratégia militar; bombas explodem em mercados, crianças com armas massacram outras crianças; há bairros onde todos, dos que entregam pizas aos bombeiros, temem pela sua segurança. E há as formas mais subtis de violência: digamos, uma infância inteira de abusos, ou as consequências para uma população minoritária quando os símbolos da maioria exalam dominação e ameaça. Estamos sempre à sombra do perigo de ter outros seres humanos a magoar-nos.» (p. 10-11)
Mas o problema e o ponto central deste livro é que ao contrário de outros flagelos que a Humanidade procura erradicar do Mundo, como doenças crónicas, ou aquecimento global, ou meteoros, a violência não parece preocupar ninguém: «Odiamos e tememos o tipo errado de violência, aquela que ocorre no contexto errado. Porque a violência no contexto certo é diferente. Pagamos bom dinheiro para vê-la num estádio, ensinamos os nossos filhos a responder-lhe e orgulhamo-nos quando, numa meia-idade já meio decrépita, conseguimos atingir o adversário com um desonesto golpe de cintura durante um jogo de básquete de fim de semana.» (p. 11)
Com irreverência e sentido de humor, suficientes para amenizar uma leitura de um livro que se estende por quase 900 páginas, e daí o seu pedido recorrente ao leitor “para que não mude de canal”, Sapolsky procura contar a história do comportamento humano por etapas, recuando no tempo: «Um comportamento acaba de ocorrer. Porque ocorreu?» (p. 14)
Neurobiólogo – aquele que estuda o cérebro – e primatologista – aquele que estuda macacos de todo o tipo –, o autor começa por analisar o que se passou no cérebro da pessoa um segundo antes de o comportamento se manifestar, recuando consecutivamente: segundos a minutos antes, horas a dias antes, dias a meses antes, recua à adolescência do sujeito, ao berço, ao útero, ao óvulo fertilizado, até chegar aos séculos e milénios antes que testemunharam o início da espécie humana e o nosso legado evolucionista.
A primeira categoria de explicação é neurobiológica mas Sapolsky adopta uma visão holística, multidisciplinar, consciente de que não é possível explicar o comportamento humano sem ir além da neurobiologia e da endocrinologia.
«Portanto, algumas vezes, o desafio intelectual é compreender o quanto somos semelhantes a animais de outras espécies. Noutros casos, o desafio é reconhecer como, apesar de a fisiologia humana manter semelhanças com a de outras espécies, nós a utilizamos de maneiras diferentes.» (p. 19)
Explora-se neste livro a biologia da violência, da agressividade e da competição, analisando os comportamentos e os impulsos que as motivam, mas este é também um tratado de psicologia sobre como as pessoas são ainda capazes de cooperação, afiliação, reconciliação, empatia e altruísmo: «procuraremos entender o virtuosismo com que nós, seres humanos, nos agredimos ou cuidamos uns dos outros, e o quão interligada é a biologia de ambos.» (p. 21)
Diz ainda o autor na Introdução que «às vezes a única forma de entender a condição humana é levar em conta apenas os seres humanos, pois as coisas que fazemos são únicas. Enquanto poucas outras espécies pratiquem o sexo não reprodutivo, nós somos os únicos que depois conversamos sobre como foi.» (p. 19)
Robert M. Sapolsky é autor de várias obras de não-ficção, como A Primate’s Memoir, The Trouble with Testosterone e Why Zebras Don’t Get Ulcers. É professor de Biologia e Neurologia na Universidade de Stanford e foi premiado pela MacArthur Foundation. Ver artigo
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