Ian McEwan é um dos grandes autores ingleses da actualidade. De entre a sua obra podemos destacar livros como A Criança no Tempo (Whitbread Award 1987) ou Amesterdão (Booker Prize 1998). É ainda autor de um libreto de ópera e de vários argumentos para cinema (como o do recente filme O Jogo da Imitação). As obras O Inocente, Estranha Sedução, O Fardo do Amor e Expiação foram adaptadas ao cinema.

A Balada de Adam Henry, o seu último livro, revela uma linguagem cinematográfica, numa espécie de zoom contínuo sobre o espaço e a personagem em cena que o observa: «Londres. O último período do ano judicial começou há uma semana. Junho com um tempo implacável. Fiona Maye, juíza do Supremo Tribunal, em casa num fim de tarde de domingo, deitada de costas numa chaise longue, a olhar o extremo da sala para além dos seus pés revestidos de collants, a contemplar uma perspectiva parcial da estante embutida junto da lareira e, de um lado, junto de uma janela alta, uma minúscula litografia de Renoir representando uma banhista, que ela comprara por cinquenta libras há três anos. Provavelmente uma falsificação. Por baixo dessa imagem, no centro de uma mesa redonda, de nogueira, uma jarra azul. Não se recorda de como lhe foi parar às mãos. Nem de quando lhe pôs flores pela última vez. A lareira não é acesa há um ano.» (pág. 9). A descrição continua num ritmo fluído que entretece o banal e o íntimo, onde se desenha um quadro realista mas a partir do qual serão lançadas pinceladas que permitem entrar na mente da personagem.

Fiona Maye é essa personagem central, a partir da qual entramos nessa sala, uma juíza do Supremo Tribunal que julga casos do Tribunal de Família. Se nos primeiros momentos em que a personagem se começa a desvelar esta pode parecer-nos fria, Fiona é acima de tudo um ser humano que mesmo lidando com os mais variados casos consegue manter a sua natureza humana. Pode-se perceber que ainda existe bondade e generosidade em si quando nos é dado a ler que Fiona tem entre a sua lista de afazeres escrever uma carta de recomendação para o filho autista da sua empregada de limpeza ser admitido numa escola. Mas esse cenário de calma aparente é manchado pelas recordações de Fiona enquanto passa mentalmente em revista a discussão recente com o marido. Tal como Fiona parece viver e envolver-se de forma apaixonada no seu trabalho, o que lhe pode ter retirado a capacidade de se ligar emocionalmente da mesma forma a alguém, o marido é, de modo diametralmente simétrico, bastante frio e prático na forma como lhe apresenta os seus motivos para querer o divórcio de modo a poder tentar uma segunda vida com a sua amante bastante mais nova:

«-Preciso disto. Tenho cinquenta e nove anos. Esta é a minha última oportunidade. Ainda tem de haver quem me convença de que há vida depois da morte.

Uma observação pretensiosa para a qual não encontrara resposta. Limitou-se a fitá-lo, talvez com a boca aberta. Só agora, deitada na chaise longue, lhe ocorria uma resposta. «Cinquenta e nove, Jack? Mas tu tens sessenta! É patético, é banal.»

Mas o que de facto disse, sem convicção, foi:

– Isto é demasiado ridículo.

– Fiona, quando fizemos amor pela última vez?

Quando teria sido? Ele já lhe tinha feito aquela pergunta antes, com estados de espírito que iam do lamuriento ao rezingão. Mas o passado recente sobrecarregado pode ser difícil de recordar.» (pág. 10-11).

«A Divisão da Família pululava de estranhos diferendos, alegações especiais, meias-verdades íntimas e acusações exóticas.» (pág. 11). Sem nunca sabermos se é o narrador que tece considerações se é a própria Fiona, numa corrente de consciência em que o leitor se vê mergulhado, não se afigura simples lidar com casos verdadeiramente complexos que surgem entre outros mais rotineiros: «discórdias de rotina relativas a residência de filhos, casas, pensões, rendimentos, heranças» (pág. 11). Numa das passagens podemos mesmo ler como Fiona parece até apreciar essas situações límite que, afinal, são o quotidiano de certas profissões de grande responsabilidade social: «Toda essa mágoa, com temas comuns e uma uniformidade humana, continuava a fasciná-la. Ela estava convencida de que introduzia razoabilidade em situações desesperadas.» (pág. 11).

É particularmente interessante a forma como no romance parecem surgir certas máximas ou pensamentos assertivos que procuram definir o contexto social e cultural de uma sociedade em ebulição, pois da mesma forma que Fiona dita sentenças no seu tribunal, encontramos ainda noções ou constatações críticas como: «Na maior parte dos casos, a riqueza não conseguia proporcionar felicidade. Os pais depressa aprendiam o novo vocabulário e os pacientes procedimentos em matéria de legislação, e ficavam aturdidos ao verem-se envolvidos num combate perverso com aquele a quem outrora amavam.» (pág. 11).

Em alguns momentos adensa-se ainda mais esta aparente intenção crítica ou busca de minudenciar a realidade de outras formas de viver que, todavia, têm de ser julgadas pela mesma lei, mesmo que se tratem de outros povos ou etnias a viver em solo inglês. Note-se quando Fiona tem de julgar um caso cujas partes envolvidas são ambas provenientes da comunidade haredi, ultra-ortodoxa, do norte de Londres: «Os homens também não tinham grande instrução. A partir do meio da adolescência, deviam dedicar a maior parte do seu tempo ao estudo da Tora. De um modo geral, não iam para a universidade. Em parte devido a essa razão, muitos haredi eram gente modesta. (…)/ Os rapazes e as raparigas haredi eram educados em separado a fim de preservar a sua pureza. Roupas na moda, televisão e Internet eram proibidas, tal como o convívio com crianças a quem fossem permitidas tais distracções. As famílias que não observavam as estritas normas kosher eram marginalizadas.» (pág. 16-17). É nestas digressões que o livro fica mais enriquecido, preparando o leitor de forma gradual para um caso ainda mais complicado e urgente, em suma, fatal. O caso de Adam Henry, aquele que dá nome ao romance, implica um jovem que tal como os pais é Testemunha de Jeová e que apoiados na sua fé recusam o tratamento que o hospital quer aplicar ao rapaz: uma transfusão de sangue.

Mas Adam Henry mais do que um jovem é um belo rapaz de 17 anos, a pairar entre a vida e a morte e no limiar da vida adulta, quase a atingir a maioridade que o torna legalmente responsável por si próprio, sem interferência de pais, e parece ainda representar para Fiona o filho que nunca teve bem como um estranho flirt amoroso que pode vir compensar a ruptura recente que o marido procurou impor ao seu casamento de trinta anos.

A Balada de Adam Henry é o mais recente romance de Ian McEwan, publicado entre nós bem como as restantes obras pela Gradiva, cuja coleção abrange até ao momento 17 títulos. É um livro pequeno, tal como outros deste autor, mas que não desilude de prosa fluída, em que se delineam personagens intensas, abordando temas complexos e adensando mistérios da natureza humana.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.