Um Lugar ao Sol seguido de Uma Mulher, de Annie Ernaux, volta a estar disponível no mercado português, depois de esgotado há 20 anos. Comprova-se também a qualidade das publicações e reedições da Livros do Brasil.

Este livro, com tradução de Eduardo Saló, reúne os dois textos de Annie Ernaux, premiada este ano com o Nobel da Literatura, sobre a perda dos pais. Um Lugar ao Sol, sobre o pai, foi publicado em 1984 e vencedor do Prémio Renaudot, e Uma Mulher, sobre a mãe, foi lançado quatro anos depois.

Como normalmente faço, li o livro antes ainda de olhar para a sinopse. O tom é autobiográfico, narrado na primeira pessoa, e as duas histórias encaixavam, pelo que não foi surpreendente quando li que se tratavam de textos pessoais.

Um Lugar ao Sol inicia quando a autora passa nos exames finais para se tornar professora. Dois meses depois, o pai morre. Mais do que uma coincidência, há aqui uma estranha sincronia, uma vez que, ao longo da sua memória, se torna nítida a luta constante entre a condição da classe de que a autora provém, a que o pai se sabe votado, e o destino para o qual impele a filha. O que é peculiar nestas narrativas é como, a um tempo, se entrelaça a memória agridoce de um afecto que se tornou cada vez mais ambíguo e uma condição familiar da qual a autora se sente ter-se distanciado cada vez mais, conforme se tornou, com os estudos e depois com o casamento, uma burguesa. Da mesma forma, afinal, que em tempos os pais se esforçaram por deixar se ser operários para se tornarem pequenos comerciantes. Note-se como um dos motivos de cólera do pai é ver alguém a ler um livro… mas é também ele o primeiro a impelir a filha a estudar… Ainda que, aos olhos do pai, saber a filha aos 20 anos nos bancos da escola tenha algo de bizarro, de irreal…

É também pela linguagem que a clivagem social entre pai e filha se tornará mais nítida.

“Eu talvez escreva porque não tínhamos nada para dizer um ao outro.” (p. 59)

No fim, o seu maior feito talvez seja conseguir que a filha passasse a pertencer ao mundo que o rejeitou.

Uma Mulher inicia com a morte da mãe, dois anos depois de ter sido internada num lar, com demência. Escrever sobre a mãe, revisitar a sua memória, torna-se mais difícil, pois para a autora ela era apenas uma figura sólida sempre presente, sem história.

“Parece-me agora que escrevo sobre a minha mãe para, por minha vez, a trazer ao mundo.” (p. 105)

A relação com a mãe é ainda mais complexa e violenta do que com o pai. Oscilando entre os excessos de ternura ou o querer proporcionar tudo o que não teve, e a censura ou a violência, encarando a filha como uma inimiga de classe.

Em 1979, a mãe é atropelada e embora pareça recuperar bem, inicia-se um processo de decadência e doença prolongada.

Diz-nos a autora que durante os dez meses de escrita desta narrativa sonhou quase todas as noites com a mãe.

Como é usual na escrita da autora, “Isto não é uma biografia, nem um romance”, “talvez algo entre a literatura, a sociologia e a história” (pág. 145).

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.