Da Meia-Noite às Seis, de Patrícia Reis, autora publicada pela Dom Quixote, é um romance claramente inscrito no contexto pandémico que se tem vivido nestes dois anos. Contudo esta não é uma história que se detém na pandemia mas sim no demais que a vida comporta. Uma tessitura narrativa feita de várias vidas um pouco desencontradas, que se encaixam de modo a compor um mosaico que reflecte as nossas próprias vidas nestes tempos. Ver artigo
«Ninguém quer uma criança crescida»
Entrevista a Patrícia Reis sobre As Crianças Invisíveis
Entrevista a Patrícia Reis sobre As Crianças Invisíveis
Escrevi em tempos que A Construção do Vazio, o anterior romance de Patrícia Reis fechava um tríptico constituído por No Silêncio de Deus (2008) e Por Este Mundo Acima (2011), todos publicados pela Dom Quixote. Ressalve-se que esta conclusão não é minha mas surgia no próprio paratexto do livro, provavelmente na sinopse da contracapa. Atrevo-me, sim, a afirmar que com o seu mais recente As Crianças Invisíveis, essa trilogia converte-se em tetralogia (a suspeita parece confirmar-se na última linha, aliás palavra, do romance) e pode ainda continuar. Em A Construção do Vazio, ficámos a conhecer Sofia, uma mulher que se remete a um silêncio que nem uma terapia de sete anos consegue romper, vítima de maus tratos, violada pelo pai e agredida pela mãe, numa narrativa crua e dura. Em As Crianças Invisíveis, a história centra-se em torno de M., uma criança invisível, que vive «na sombra da vigilância do Estado» (p. 210), devolvida já por duas vezes pelas famílias adoptivas, sendo a razão apontada o facto de sofrer de uma condição cardíaca (o seu coração sente demais), se bem que chega também a ser maltratada: «Ninguém quer uma criança crescida», como se pode ler neste livro.
M. volta assim à Casa, uma instituição de acolhimento, onde convive com outras crianças igualmente rejeitadas com as suas próprias histórias, no seu único refúgio do mundo real. Num registo literário notável, em que consegue uma proeza linguística e narrativa singular, de que nos aperceberemos ao longo do livro mas que infelizmente vem anunciada na sinopse do livro pelo que podem sempre optar por ignorá-la (como eu costumo fazer antes de terminar o livro ou estar já bastante adiantado na leitura), como devem também ignorar o próximo parágrafo isolado em que explico essa singularidade narrativa do romance:
Da mesma forma que M. e as outras crianças, dada a sua invisibilidade, uma vez que não passam de números e de processos, não têm nome, sendo designadas apenas pelas iniciais, também nunca se percebe qual o género de cada uma destas crianças.
Como se na ausência de um nome se reflicta a própria identidade truncada, o vazio das suas vidas suspensas na ilusão de uma família, de uma pessoa a que possam chamar mãe. Apenas os adultos têm nomes. Saberemos, portanto, como é a relação de M. com S., Z., H., conforme esta criança primeiro com 2 anos vai crescendo até atingir a maioridade, e por conseguinte não poder continuar na Casa, tendo de enfrentar o mundo real de uma vida normal, mesmo sem ter tido as ferramentas emocionais que lhe dêem estabilidade e força. Mas M., e aqui reside uma das poucas notas de esperança do livro, tem o apoio e o amor dos adultos que fazem daquela instituição um lar, como a assistente social Conceição, que aprendeu a ler os silêncios de M.. Da mesma forma que M. se irá apaixonar e perceber como a vida pode ser gloriosa e dolorosa.
A violência e a desumanidade da histórias destas crianças ultrapassam a ficção, pelo que custa a crer que haja tantos casos como estes na realidade. Houve investigação feita por parte da autora, o que aliás se pode pressentir no próprio tema da narrativa, uma vez que ainda há dias circulava uma notícia, que já era de 2017, em que se dava conta de como em pouco mais de um ano, mais de 40 crianças cujo processo de adopção tinha sido iniciado (o processo de pré-adopção dura 6 meses, um “tempo de experiência” que as crianças passam com as famílias ou pais singulares adoptivos) foram devolvidas, em diversos casos por causa de condições de saúde.
Patrícia Reis é jornalista, cronista, editora da revista Egoista desde 2000, e estreou-se na ficção em 2004.
A infância é a geografia inicial
Depois de um mundo pós-apocalíptico visto pelos olhos de uma criança em Por Este Mundo Acima (2011); da história de Sofia em A Construção do Vazio (2017), sobre uma mulher que se remete a um silêncio e um vazio que nem uma terapia de sete anos consegue romper, vítima de maus tratos, violada pelo pai e agredida pela mãe; silêncio de uma humanidade em busca de redenção já narrado em No Silêncio de Deus (2008), podemos considerar este romance um novo exercício literário em torno da infância como um tempo precioso que dificilmente se cura? Penso que a infância é, aliás, um universo a que voltas frequentemente.
A infância é a geografia inicial, é aí que está o todo, seja por ser o começo da construção da identidade, seja pelo reconhecimento de emoções tantas vezes negativas. Nada é mais complexo do que crescer, do que ajustarmo-nos ao mundo. O que me importa verdadeiramente são as questões de identidade e as questões relacionais. Tudo na nossa vida nasce ali, na infância, e é definitivo a muitos níveis, mesmo que possamos invocar evolução e desenvolvimento pessoal. Regresso a esse tempo para entender o tempo da idade adulta.
Fala-se muito do trabalho sobre a linguagem neste romance, numa escrita que aborda temas sérios e dolorosos com admirável contenção, distanciamento, numa “escrita límpida, poderosa e cirúrgica”. Inclusivamente conseguiste fazer o que acho que não tinha sido ainda feito na nossa língua, que é escrever um romance sobre uma personagem sem género… Mas mais admirável ainda, na minha óptica, foi conseguires narrar de forma convincente a partir do olhar e sentir de uma criança.
A plasticidade da língua foi um desafio, reconheço, contudo importava que o género não fosse determinante na forma como o leitor pode entender as personagens. O que queria sublinhar é o facto do espectro emocional ser o mesmo, ser para homens ou mulheres exactamente o mesmo: alegria, tristeza, dor, solidão. Nada disto tem género. A língua portuguesa, na sua infinita beleza, permitiu-me fazer este jogo. Foi muito difícil de apurar, não posso dizer que não o foi. O que me importa, na escrita, é a escrita “no osso”, como diria José Cardoso Pires. O vestir a pele da criança, a voz da criança, não é um feito, muitos o têm feito, é apenas o tal regressar à geografia inicial.
Se bem que a leitura de A Construção do Vazio (2017) era já por si um murro no estômago, fizeste aqui uma intensa pesquisa para dar corpo ao romance, fazendo jus à tua carreira de jornalista. Podes descrever os passos que deste?
Ouvi muito. Ouvir é crucial, diria mesmo que é a função primordial do jornalista, que é a minha formação, e é também uma das funções do escritor. Ouvir. Observar. Conheci pessoas que viveram em instituições, profissionais que aí trabalham, pais e mães que adoptaram. Mergulhei no ambiente para melhor entender como fazer a personagem M. seguir o processo de invisibilidade para o de visibilidade, a sua construção de identidade a partir de uma cicatriz, de um trauma. Não foi uma pesquisa jornalística, não o é para a ficção, não tomo notas, não faço perguntas como faria se estivesse a preparar uma reportagem, as coisas que me interessam são outras. Preciso de sentir na pele e de me pôr no lugar do outro.
A imaginação é terrível
Foi tão duro ouvir essas histórias como foi passá-las ao papel?
A imaginação é terrível, é perturbadora, pode potenciar o horror de uma maneira quase violenta. E eu vivo nesse caldo de imaginação, por isso a escrita é, tantas vezes, acompanhada de lágrimas. As histórias que eu ouvi não as declinei directamente para o livro, nem isso faria sentido. As histórias inspiraram a criação de outras histórias. Certas opções narrativas, temáticas, são muito exigentes emocionalmente.
Num ano foram devolvidas mais de 40 crianças com processo de adopção iniciado
Achei curiosa a sincronia de que o livro, publicado em Junho, saiu justamente quando também se anunciava números chocantes de que, num ano, mais de 40 crianças cujo processo de adopção tinha sido iniciado (o processo de pré-adopção dura 6 meses, um “tempo de experiência” que as crianças passam com as famílias ou pais singulares adoptivos) foram devolvidas, em diversos casos por causa de condições de saúde, como é o caso de M..
É uma realidade. O problema é a frieza dos números e o que escondem. Precisamos de proteger estas crianças, é evidente, mas são histórias sem rosto, nesse sentido invisíveis, que talvez não tenham o impacto que podiam ter se fossem desvendados todos os pormenores. Devo dizer que parti para este romance considerando chocante a devolução; depois de tudo que li e ouvi, não sou tão radical, existem circunstâncias.
Leio na condição de M., com o seu problema de coração, uma alegoria a uma criança com falta de amor e que por isso mesmo se torna dura e quase fria…
Achas M. uma personagem dura, quase fria? É engraçado porque a minha leitura é outra, é uma criança sobrevivente e todas as crianças sobreviventes são, em certa medida, crianças com um estrago, uma cicatriz, o que as impele a comportamentos defensivos, mas não frios. O facto de ter optado por uma criança com um problema de saúde, para mais ao nível cardíaco, era também uma metáfora e, em simultâneo, um reflexo da condição humana. Não somos perfeitos. Nenhum de nós. E todos podemos ser olhados de lado, julgados, criticados, descartados com facilidade. Importa sobreviver a essa realidade, encontrar caminhos.
Ao contrário de Sofia, do teu romance anterior, que ficou de tal forma quebrada que dificilmente se poderá reinventar…
A tristeza é uma escolha, uma opção de cada um, sendo que é mais poderosa do que a alegria. É mais fácil ser triste. É mais fácil a queixa ou a crítica, o festejar o outro é mais complicado. O problema é que a tristeza engole as pessoas e isso foi o que sucedeu a Sofia, ela não quis, deliberadamente, fazer nada e, ao mesmo tempo, a vida proporcionou-lhe isso, tinha dinheiro para viver sem precisar de se mexer. A Sofia é uma personagem com outra complexidade, diria que ainda hoje a tento perceber na totalidade.
Neste romance há pelo menos duas surpresas e um piscar de olho aos teus leitores, se bem que devo confessar que não fui propriamente surpreendido. Apercebi-me primeiro que a narrativa era feita com a tal neutralidade de género, mas depois senti, mais e mais, que M. só podia ser um rapaz… Quando o escreveste já tinhas em mente algum desfecho? E quando percebemos, também no final, quem é S., foi algo que eu já pressentia… Ou estarei a tergiversar?
Muitas pessoas acharam que as personagens eram dois rapazes, muitas pessoas achavam que eram raparigas. Houve, aliás, uma amiga que ficou zangada comigo porque tinha entendido como um universo feminino e o fim veio estragar esse cenário que compôs na sua leitura. Portanto, diria que depende do leitor. Eu sabia que M. era menino e só decidi mais tarde o que seria S., sendo que S. é, na maioria das análises, entendida como rapaz por ir parar às oficinas, por trabalhar com madeira, o que prova o meu ponto de que temos ideias feitas e preconceitos que importam deitar por terra.
o ser humano é capaz do bom e do mau, tem de escolher
Daquilo que ouviste e descobriste no teu processo de pesquisa, achas que se pode afirmar que há pais que são intrinsecamente maus?
Como há filhos intrinsecamente maus. Os violadores ou assassinos são filhos de alguém. Acontece apenas que o ser humano é capaz do bom e do mau, tem de escolher e, muitas vezes, a infância já dá pistas nesse sentido. Existem pais que têm as melhores intenções e que não são compreendidos pelos filhos e existem pais que são apenas pessoas más.
Achei ainda curioso a forma como te debruçaste tanto sobre a assistente social Conceição, o adulto que forma a ligação mais forte com M.. Vejo em Conceição o teu cuidado em dar voz à mulher e à dificuldade de a mulher, ao contrário do homem, poder ser julgada quando se dedica demasiado ao trabalho…
A Conceição era a ponte para a realidade exterior à instituição, era a mulher profissional dedicada que falha no casamento e, porventura, no exercício da maternidade. Era a mãe que poderia ser e não foi. E é ainda uma homenagem a muitas mulheres que vi em instituições, profissionais que enfrentam esta realidade diariamente e que ajudam na construção de um futuro.
Já tens em curso o teu próximo trabalho?
Digamos que tenho umas páginas. Nunca entrego um livro à editora sem ter começado outro, preciso de saber que já tenho outro território narrativo no qual navegar, que não fico sozinha, sem personagens na cabeça a pedirem coisas.
A desconstrução do silêncio
A Construção do Vazio, último romance de Patrícia Reis fecha um tríptico do qual faz parte No Silêncio de Deus (2008) e Por Este Mundo Acima (2011), todos publicados pela Dom Quixote. O Vazio de que a obra trata também pode ser interpretado como um silêncio. O silêncio declarado ou camuflado, através daquilo que se tenta abafar com palavras que são ruído a ocultar a verdade, é um dos fortes aspectos da obra, da mesma forma que predomina a noção do som. O som na forma de música, no seu efeito catártico de exprimir emoções ou libertar repressões, na ária Casta Diva de Bellini interpretada por Maria Callas, ou na música de piano que tantas vezes acompanha a escrita da autora, aqui com Ludovico Einaudi, ou nas palavras doces de um amigo que faz as vezes de amante. Como nos escreve Sofia: «O poder do som. O som como veículo emocional. O som no tom certo que é a voz de Deus. Pode ser.» (p. 109). Ou como quando refere que «O corpo pode ter uma voz, um som, uma música. O meu só tinha conhecido o silêncio, e depois a dor e o grito.» (p. 65). Até porque a única pessoa que a poderia ter salvo, e que a deveria ter amado e protegido acima de tudo, é essa mãe bonita que aparenta fragilidade, mas fria e distante: «Não se podia falar com ela. Tudo lhe fazia dores de cabeça e, na presença do meu pai, mirrava, um corpo a esforçar-se por desaparecer» (p. 11). O silêncio de Sofia é de tal forma que ela anuncia mesmo, apesar de entretanto já estar em terapia há sete anos, que «Não há palavras para a solidão a que cheguei.» (p. 133) enquanto ouve o seu corpo a envelhecer. E enquanto o ruído parece ser uma constante da Humanidade: «O barulho é infernal, uma cacofonia que agride.» (p. 109), é sem palavras que Sofia se fecha no seu mutismo e guarda o seu segredo, talvez apenas adivinhado pela amiga ao ver as suas nódoas, vendo-se a si própria como uma menina-desastre e depois como uma menina-tesoura para «cortar, cortar, cortar. Sempre a direito.» (p.60). E é a cortar o silêncio que a narradora (certamente ao serviço da autora) não está com rodeios no que respeita a descrever a violência de que Sofia é vítima. A linguagem, sempre tão pensada, chega a ser crua ao narrar sem rodeios a violação de Sofia pelo pai o que pode atingir os leitores como um murro no estômago: «Via as minhas cuecas, eu de pernas para o ar, eu a vê-las no chão e o meu pai a lamber-me na casa de banho, o sexo imberbe, e eu a perguntar, isto serve para quê? É suposto dizer o quê?» (p. 22). Sofia sem palavras para construir um sentido do que lhe está acontecer, entre um pai que a viola e uma mãe que a ignora ou agride. De joelhos no chão da casa de banho, sem um som nem mesmo para exprimir a sua angústia e dor pois se o pai cheirasse o seu medo, num instinto animal, seguia-se «a estalada e o silêncio. Sim, porque eu não chorava. Não valia a pena. Só gritei uma única vez. Um dia em que o meu corpo não podia enfiar-se no corpo dele ou o contrário, a guerra é estranha e já não sabemos onde estamos. Até se ter deitado comigo, depois de os dedos me terem aberto, o meu pai falou-me sempre baixinho, como se me dissesse um segredo. E eu calada. Sempre calada.» (p. 22). Sofia tenta tornar-se transpararente, mas «Apesar disso, dessa minha capacidade para o alheamento, passei a ser o escape dos dois. O meu pai violentava-me, a minha mãe ignorava e batia-me. Não havia a quem pedir socorro. Nunca o fiz.» (p. 29).
Fechar o ciclo
Ler Por Este Mundo Acima (obra já aqui apresentada no Cultura.Sul) ajudará ainda a compreender como esta narrativa que vem no fim pode afinal ser a primeira: «Vamos falar do passado para resolver o futuro?» (p. 149). Em A Construção do Vazio refere-se o ano de 2018 e que Lisboa vive um recolher obrigatório mas pouco mais saberemos. É apenas consoante nos aproximamos do final que percebemos como se fecha o ciclo enquanto Sofia vai desfiando o curso dos acontecimentos num encadeamento que poderia servir a uma qualquer distopia das várias que por aí proliferam agora mas que está sempre muito próximo da lógica irracional dos dias que se vivem nos nossos dias: «E, de repente, o Presidente dos Estados Unidos da América torna-se uma saudação tenebrosa de outros tempos. Os ataques começaram devagar e depois foram acontecendo, matemáticos, certeiros, explosivos. Há dois meses, o parlamento inglês fechou as portas. Foi declarado o estado de sítio. É certo que será permanente. Como se a esperança tivesse apagado a chama e o optimismo não tivesse mais argumentos. Vive-se a medo, come-se a medo, respira-se a medo. Ninguém grita.» (p. 141). A enumeração e a gradação que per dão conta de um clímax que se cria nestas últimas páginas que anunciam claramente que «estamos a chegar ao fim do mundo.» (p. 140). Cenário pós-apocalíptico que é o que encontramos nas páginas de Por Este Mundo Acima.
Porque Sofia é uma boneca quebrada e que faz dos seus cacos uma armadura mas, ainda assim, não deixa de estar revestida apenas e simplesmente por porcelana. O abuso que sofreu em criança marca-a (e divide-a) de tal forma que permanece em Sofia a recusa de cumprir o que o corpo lhe pede: «Era o meu corpo a pedir que lhe desse um outro uso. Era a minha cabeça a ver se tinha resolução. Um filho seria uma história necessariamente feliz.» (p. 136). Dividida entre o sentir e o pensar, Sofia escolhe a solução que acha mais lúcida: «nunca teria uma criança que pudesse ser abusada e, não sendo possível proteger os filhos da totalidade dos perigos do mundo, a ideia de os ter para o mundo era impensável.» (p. 136). A mácula que Sofia carrega em si, que parece criar uma visão deturpada no modo como percepciona o seu corpo, cresce até se tornar um cancro que a suprime, tornando-a frágil e vazia ao ponto de recusar conceber uma vida nova em si, acto supremo de amor que, como se percebe nas passagens anteriores, poderia significar, ao gerar uma nova vida, a renovação da sua própria vida. Esta sua história é inclusivamente contada numa sucessão de vazios, pelos hiatos que temos entre os vários capítulos onde acompanhamos o crescimento de Sofia em várias etapas muitas vezes apresentadas em saltos temporais: na infância, na juventude, depois aos vinte e seis, aos trinta e oito, aos cinquenta e cinco.
E é no final que nos deixa este testemunho escrito onde pela primeira vez rompe o silêncio dos muros que foi construíndo em torno do seu vazio, ao assumir pela primeira vez, com estas páginas que nos ficam como o seu legado, a sua história e o passado que vê como mácula, apesar de ser completamente inocente face a uma corrupção que lhe foi forçada a partir do exterior. É curioso que Sofia perceba, ainda assim, que a dor foi uma opção sua. Quando escreve sobre Lourenço e nos diz que, «se for sincera, teria sido um companheiro de vida se não fossem os conflitos que tive de ultrapassar, sobreviver, essa marca ou cicatriz que escolhi carregar.» (p. 72). E pouco depois, lemos como Sofia ouve como um eco mental o aviso da sua amiga Sara: «O sofrimento é opcional, Sofia, é opcional, opcional…» (p. 82).
Eduardo, o editor, o mesmo homem que encontraremos em Por Este Mundo Acima a relembrar permanentemente os amigos que perdeu é aqui esse amigo “especial” de Sofia que irá preservar a memória e identidade da amiga e guarda com desvelo a sua fotografia e as suas cartas. Nessa outra obra deste tríptico, ficamos a saber que Pedro, o jovem que acompanha Eduardo, «tem uma ideia muito vaga da mãe mas em contrapartida sabe tudo sobre Sofia» (p. 168) e quando pergunta se ela não era feliz, Eduardo responde-lhe: «Não, Pedro, nunca foi feliz. Ela dizia que não possuía essa vocação. Eu acredito que Sofia se limitou a deixar-se arrastar, com uma eficácia tremenda, para o lado mais triste da vida.» (p. 170). Paradoxalmente, Eduardo que parece escrever exclusivamente apenas para Sofia será talvez a única pessoa a descobrir o segredo dela ao ler os seus escritos. Esse testemunho que Sofia deixa sob a forma deste livro a Cecília, a sua terapeuta, que a acompanha ao longo de sete anos de psicanálise e a quem contou apenas mentiras a tentar ludibriar o caroço da verdade com cascas de mentiras e fantasias. Porque há verdades que continuam a cortar e a ferir mas mesmo quando reveladas em busca de uma justiça de pouco adiantam, como o caso referido da «mulher que fora abusada pelo marido – um pai é sempre uma espécie de marido – e que fora a tribunal, com testemunhas das sucessivas agressões, pronta para a humilhação de dar a cara. Perdera o caso por o júri ter considerado que “a provocação era feminina”.» (p. 50).
(texto publicado no Cultura.Sul Junho 2017)
A construção do vazio, de Patrícia Reis (autora já aqui apresentada) chega às livrarias no dia 21 de Março e fecha um tríptico iniciado com Por Este Mundo Acima (2011) (um magnífico livro que foi recenseado para o Cultura.Sul – cujo texto podem consultar no blog). A obra da autora, jornalista e directora da Revista Egoísta, tem sido publicada pela Dom Quixote.
A obra já chegou mas ainda terá de sobrevoar o Atlântico pelo que deixamos o texto de apresentação da obra:
«Sofia é uma menina-tesoura que sobrevive a uma relação de violência e abuso e cresce com a convicção de que a maldade supera tudo.
Será possível atenuar a dor?
Como se resiste ao fantasma real da infância?
Que decisões partem dessa memória e podem limitar a vida?
Sofia abriga-se na amizade de três homens, Eduardo, Jaime e Lourenço, e vive sem desejo, sem vontade, de construção em construção, sendo o vazio o objectivo final.
Esta personagem surge pela primeira vez no livro Por Este Mundo Acima (2011) e faz parte do território ficcional da autora que, com A Construção do Vazio, termina um ciclo de três narrativas independentes iniciado em 2008, com o romance No Silêncio de Deus.»
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