«O amor, dizem, escraviza, a paixão é um demónio e muitos se perderam por amor. Eu sei que isso é verdade, mas também sei que, sem amor, andamos às cegas no túnel das nossas vidas e nunca vemos o Sol.» (p. 199) Ver artigo
Pode dizer-se de um livro que é claustrofóbico?
O livro História da Violência, publicado pela Elsinore, é uma narrativa de pendor autobiográfico em que Édouard Louis narra a violência de que foi vítima. Mas conforme a narrativa se reparte em múltiplas vozes – com a irmã de Édouard a contar ao marido a sua versão da história pontuada pelos seus apontamentos sobre o que pensa e sente em relação ao irmão, os polícias que tomam nota da queixa com o seu indisfarçado preconceito, os próprios apartes de Édouard que surgem aqui e ali entre parênteses, como se não fosse ele o narrador e autor, mas sim alguém que ao coligir uma série de fragmentos que compõem a versão oficial dos factos não consegue impedir a deixar os seus comentários – percebemos que este relato não é uma confissão mas quase uma carta de amor.
Édouard foi, lamentavelmente, uma vítima. Um jovem homossexual que foi abordado na rua por Reda, um estrangeiro sedutor que o ilude. Esta é a sua história de como uma noite de um amor fugaz entre dois homens estranhos se transforma num pesadelo, de uma noite de amor consentido, pelo menos no início, cujo acto se repete por várias vezes, se converte numa violação e numa violentação que deixa marcas. Mas, e é aí que o livro oprime, Édouard também se apaixona pelo seu agressor, nessa noite em que fizeram amor – é mesmo assim que o acto sexual é designado. Lê-se na contracapa do livro: «A história de Édouard é difícil, íntima e dolorosa; tanto que, sem espaço para devaneios da imaginação, lhe resta apenas o relato agitado, por vezes, implacável, daquilo que a realidade um dia lhe trouxe». Mas na verdade Édouard ilude-se. Ao ponto de inventar pedaços da história do homem que o violentou. De criar histórias que insere na infância do homem que lhe deu atenção naquele dia e que o fez sentir-se especial.
A narrativa de Édouard é narrada de forma honesta e crua, como uma confissão pessoal.
«Nessa noite, não percebia como é que a minha história podia já não me dizer respeito (isto é, que eu estava excluído da minha própria história e que, simultaneamente, estava incluído nela à força, uma vez que me obrigavam a falar ininterruptamente dela, isto é, que a inclusão era a condição da exclusão, que ambas eram uma coisa só (…), a história da qual já não tinha o direito de sair).» (p. 41)
Mas da mesma forma que a história de Édouard rapidamente lhe escapa, o relato do que lhe sucedeu converte-se num retrato da actualidade, em que explora o ódio racial e o mal-estar da França e da Europa de hoje. Porque Reda é cabila (argelino)…
«Mataram-no, foi uma agressão, um árabe estrangulou-o, foi estrangulado por um filho da puta de um árabe» (sempre a mesma tendência para chamar árabe a tudo o que se situa para lá da Espanha, incluindo os portugueses, os gregos e até os espanhóis)» (p. 134)
Releve-se a passagem em que o autor-narrador afirma a sua necessidade de uma clivagem social, de se demarcar da família (o que lembra Regresso a Reims, de Didier Eribon).
«Reda quis saber porque é que, com pouco mais de vinte anos, tinha deixado a família e sobretudo porque é que não passava o Natal com ela. (…) Respondi-lhe que para mim os estudos tinham sido para mim mais uma consequência da minha fuga. Que primeiro tinha fugido. Os estudos, a ideia de estudar tinha surgido muito mais tarde, quando compreendi que esse seria o único caminho possível, ou pelo menos o único caminho que me permitiria afastar-me não só geograficamente, mas também simbolicamente, socialmente, e, portanto, totalmente do meu passado. Podia tornar-me operário, como o meu irmão, numa fábrica a trezentos quilómetros de casa dos meus pais e nunca mais os ver; essa fuga seria parcial. A presença dos meus tios, dos meus irmãos ficaria em mim: o mesmo vocabulário, as mesmas expressões, os mesmos hábitos alimentares e de vestuário, os mesmos interesses e mais ou menos o mesmo modo de vida.» (p. 71)
Édouard Louis nasceu em Hallencourt, França, em 1992. Estudou História na Universidade de Picardia e Sociologia na Escola Normal Superior de Paris. Venceu o Prémio Goncourt para Primeiro Romance com a publicação do seu livro de estreia, Acabar com Eddy Bellegueule (Fumo Editora, 2014 – actualmente esgotado), onde se unem o pendor autobiográfico confessional e a força do romance moderno.
Uma nota acerca da tradução ou revisão do livro: não deixa de ser estranho que a obra de estreia do autor seja mencionada neste romance (aparentemente escrita um mês antes), referindo-se o título original (pág. 82) sem qualquer alusão ao facto de haver edição do mesmo em Portugal. Ver artigo
Mesmo quando iniciamos a leitura de um livro em branco (leia-se in tabula rasa), como normalmente opto por fazer, há ainda assim uma certa expectativa subjacente, um horizonte que criamos mais ou menos involuntariamente e talvez até de modo inconsciente. Pelo título apenas presumi que se tratasse de um romance biográfico que desse conta do processo de escrita de Frankenstein, um dos livros que mais me marcou na adolescência. A narrativa inicia justamente com um cenário idilíco e uma prosa lírica, quando Mary Shelley caminha nua nas margens do Lago de Genebra em 1816. Contudo, no capítulo seguinte, num Reino Unido pós-Brexit, encontramos Ry Shelley, um médico, numa espécie de convenção ou feira de robótica, que pretende estudar de que forma os robôs afectarão a saúde mental e física dos humanos. Ao longo do livro, as duas histórias alternam, e as personagens de uma época encarnam noutra.
Este romance pretende romper com as convenções, ao mesmo tempo que intenta uma crítica mordaz, divertida, ao limiar da realidade que conhecemos, num mundo que se aproxima cada vez mais do imprevisível. Victor Stein (que partilha o nome do médico do clássico de Mary Shelley), é um investigador da Inteligência Artificial; Ry Shelly, outrora mulher, é um médico transgénero, que fornece partes de corpos humanos a Victor, com quem se envolve numa relação amorosa e sexual que não se pretende classificar; Ron Lord, um empresário que tem em mente criar uma inovadora gama de sex dolls; Polly D, uma jornalista em busca de um furo; e Claire, uma cristã evangélica que consegue ver no trabalho de Victor algo de religioso.
É muito particularmente em Ry que parece recair a simpatia da autora, um transgénero que pode aliás ser tomando como transhumano: «Não sou muito alto, com 1,72 metros. A minha constituição é magra. Tenho ancas estreitas e pernas compridas. Quando fiz a mastectomia, não havia muito a remover, e as hormonas já me tinham alterado o peito. Gosto do meu peito como o tenho agora: forte, suave, plano. Uso o cabelo puxado para trás num rabo-de-cavalo, como um poeta do século XVIII. Quando me olho ao espelho, vejo alguém que reconheço. Foi por isso que escolhi não fazer a cirurgia genital. Sou aquilo que sou, mas aquilo que sou não é uma só coisa, um só género. Vivo com a duplicidade.» (p. 84)
Jeanette Winterson entretece neste livro diversas questões actuais, cada uma por si só suficientemente problemática e passível de se ramificar em diversas perguntas existenciais, mas sem querer deter-se demasiado para as aprofundar. A autora pretende sim brincar com este admirável mundo novo onde homens e mulheres preferem robôs que fazem a vez de brinquedos sexuais e de parceiros perfeitos; em que o alcance da imortalidade é uma possibilidade, como em Frankenstein, através da criogenética ou com um simples download dos nossos cérebros para uma cópia de segurança que sobreviva ao nosso corpo e permita um futuro upload num corpo de carbono; em que uma mulher consegue alterar a sua biologia e transformar-se num homem; onde a incerta perfeição da Inteligência Artificial não será, ainda assim, pior que a inteligência humana, até porque num mundo pós-humano, a inteligência artificial vence a raça humana, pois por não ser sentimental tende para os melhores resultados possíveis (p. 71).
«Li hoje que os seres humanos dizimaram 60 por cento da vida selvagem desde 1970. No Brasil, temos um ditador a fazer-se passar por presidente democraticamente eleito que está a abrir a Amazónia aos interesses comerciais. Os seres humanos não têm mesmo melhor hipótese do que a IA. É demasiado tarde para outras opções.» (p. 232)
Contudo, um leitor atento consegue perceber que a narrativa se contradiz, e daí a sua complexidade ou não fosse este livro também uma paródia, pois noutra passagem Victor proclama, numa declaração de amor a Ry, que «Os seres humanos evoluíram. Estão a evoluir. A única diferença, aqui, é que estamos a pensar e a desenhar uma parte da nossa própria evolução. Deixámos de esperar pela Mãe Natureza. Temos todos de crescer. Não é a sobrevivência do mais apto – é a sobrevivência do mais esperto. Nós somos os mais espertos. Nenhuma outra espécie é capaz de interferir com o seu destino.» (p. 140)
Voltando à história de amor entre Victor e Ry, uma pequena nota sobre a tradução do livro. Intitulado, no original, Frankissstein: A Love Story, a Elsinore optou por simplesmente suprimir o subtítulo. É certo que este pouco parece acrescentar, mas se olharmos o grafismo do título, quer no original, quer na capa da tradução portuguesa, com o jogo de cores, percebemos que este contém também um jogo de palavras, pois podemos separá-lo em 3 palavras: Frank kiss Stein. Ver artigo
«Há muito tempo, na ilha de Creta, uma mulher engravidou e, quando se avizinhava a data do parto, o marido, que era um homem de boa índole, foi ao seu encontro e disse: se for menino, podemos ficar com ele; mas, se for menina, não.» (p. 75) A mulher aterrorizada com a ideia de ter de matar a sua filha, foi ao templo de Ísis rezar, e a Deusa apareceu-lhe, confortando-a de que tudo iria correr bem. Quando a criança nasceu era uma menina e a mãe criou-a como se fosse um rapaz, baptizando-a com o nome Ífis, comum a ambos os sexos.
Volto a esta fantástica colecção da Elsinore de Mitos reescritos por grandes autores. Rapariga encontra Rapaz é uma reinvenção do mito de Ífis, incluído nas Metamorfoses de Ovídio, transpondo essa história para a contemporaneidade e para os seus problemas.
Anthea e Imogen Gunn são duas irmãs que vivem em Inverness, na Escócia, mas completamente diferentes. Anthea é idealista, ao ponto de não conseguir permanecer a trabalhar na empresa Pura, que faz da água potável o seu negócio, até porque é um bem essencial e um produto perfeito por estar a esgotar-se. E no dia em que um rapaz começa a grafitar a placa com o logótipo da marca com a mensagem «A água é um direito humano. Vendê-la seja de que maneira for é moralmente condenável.» e assina como Ifís, Anthea não resiste a ir ao seu encontro apenas para ser avassalada por uma tempestade interior quando ele se vira de frente para ela:
«Era o mais belo rapaz que alguma vez vira.
Mas parecia mesmo uma rapariga.
Aquela rapariga era o mais belo rapaz que alguma vez vira.» (p. 44)
Imogen é a irmã que permanece na empresa, a dar o seu melhor desempenho, envergonhada por Anthea que entretanto se torna lésbica. Até que o chefe a promove para o Departamento da Narrativa Dominante da Pura, onde «Desmentir Desacreditar Reformular» será a sua função, de modo a desacreditar notícias, com estudos fundamentados e estatísticas fidedignas, que contestem o produto que comercializam, acusando-as de terrorismo cibernético.
O trabalho de Ali Smith sobre a linguagem é, como sempre, de elevada beleza, transpondo a força do mito e o sentimento da poesia para o nosso quotidiano, contrabalançando o perigo em que colocamos o mundo:
«Graças a nós, as coisas fundiam-se numa só. Tudo era possível.
Antes de nós, desconhecia que cada veia no meu corpo era capaz de transportar luz, como um rio visto de um comboio esculpe na paisagem um canal de céu. Na verdade, desconhecia que podia ser muito mais do que eu própria. Desconhecia que um outro corpo podia fazer isto ao meu.
Agora tornara-me um rastilho ambulante, como naquele poema sobre a flor, e a força, e o verde rastilho através do qual a força impede a flor; a força que arranca as raízes das árvores arrancava agora as raízes de mim, era como uma espécie que nem se dera conta de que vivia num quase-deserto até ao dia em que a sua raíz mestra achou a água.» (p. 71) Ver artigo
Encontrei finalmente coragem e tempo para me aventurar nesta viagem no tempo, um livro que vai já na sua 17.ª edição, com mais de 46 000 exemplares vendidos em Portugal, apenas para descobrir que esta leitura é verdadeiramente viciante e aprazível. Além da erudição do autor, estas páginas estão repletas de uma fina ironia e um saudável humor sobre o percurso da Humanidade. Yuval Noah Harari não tem pejo em contestar conhecimentos e ideias que se possam ter instituído como verdades científicas sobre a vida, o homem, e o seu papel no mundo. Historiador, investigador e professor de História do Mundo na Universidade Hebraica de Jerusalém, uma das melhores no mundo, Yuval Noah Harari (com 3 obras publicadas pela Elsinore) leva-nos a pensar como aquilo que se entende como evolução pode ter sido uma regressão, e não se coíbe de julgar o homem como um macaco cujos saltos evolutivos que nos transformaram em deuses foram também letais para o mundo e para as outras espécies com que o partilhamos, extinguindo desde o início dos tempos centenas de espécies, até porque a história da humanidade é ainda bastante recente e os poucos milénios que distam entre a Revolução Agrícola – que serviu sobretudo para nos prender e escravizar sob o jugo da roda do tempo – e os impérios e cidades que se foram alastrando não foram suficientes para permitir a «evolução de um instinto de cooperação em massa» (p. 128), pelo que ainda hoje pode parecer contraprodutivo vivermos num pequeno espaço enquanto não aprendermos verdadeiramente a viver em sociedade e quando o fazemos é porque seguimos mitos, como a igreja ou o Estado, que têm muito pouco de credíveis. Ver artigo
Jay Parini é poeta, romancista biográfico e autor de biografias de autores de relevo, como John Steinbeck, Robert Frost e William Faulkner. A sua obra A Última Estação retrata os últimos dias de Tolstoi, e foi adaptada ao cinema. A Travessia de Benjamin de Jay Parini, obra publicada pela Elsinore, segue o mesmo modelo dessa obra (e de outra ainda não publicada entre nós sobre Herman Melville), mas agora com maior profundidade, ao narrar os últimos meses da vida de Walter Benjamin, quando em 1940 este alemão de origem judaica, que se faz acompanhar constantemente de uma mala onde transporta a sua obra de uma vida, um manuscrito com cerca de 100 páginas e outros textos, se vê enclausurado com a sua irmã numa Paris cercada pelos nazis.
Neste romance biográfico, vamos seguindo o percurso de Walter Benjamin, um homem com os seus cinquenta anos, desfasado da realidade, desde os dias que passa numa biblioteca, onde fica conhecido como «o homem que se senta na Bibliothèque Nationale e nada produz» (p. 204), passando por um período em que esteve detido num centro de recolha (quase como um campo de concentração) onde é instado a dar prelecções como forma de ocupar o tempo e as mentes de uma série de refugiados, também eles intelectuais, até ao dia que é atirado, com a sua omnipresente pasta e manuscrito, borda fora de um barco onde tentava fugir, para por fim tentar uma travessia por terras de Espanha que o levem até Portugal.
«Atravessaríamos Espanha e entraríamos em Portugal, que era considerado um local mais adequado do que Marrocos para esperar pelo fim da guerra. Portugal manter-se-ia, certamente, uma zona neutra, e o nível de vida lá era razoavelmente elevado.» (p. 197)
A personagem de Walter Benjamin, uma das mentes mais brilhantes de uma geração de intelectuais e de um círculo de figuras com que conviveu, como Bertolt Brecht ou a sua prima Hannah Arendt, é sabiamente refractada através da perspectiva de outros que com ele conviveram, e poucas vezes a uma luz abonatória: «Ouvir um homem como aquele punha à prova a paciência de uma pessoa. Tudo lhe fazia recordar um livro, uma personagem de um livro ou o autor de um livro. No seu leito de morte, haveria de gritar: «Lembro-me de uma cena num livro onde acontece assim!» Só com a sua morte cessariam as referências, provavelmente tanto para ele como para toda a gente.» (p. 213)
O autor recorre ainda a fragmentos escritos da obra de Walter Benjamin no início de cada capítulo, traduzidos por si mesmo, e na própria narrativa não se inibe em, por vezes, levar-nos em dissertações filosóficas que equivalem a entrar na cabeça do nosso protagonista. Os eventos, locais e datas são fiéis à realidade, e o autor baseou-se ainda em cartas bem como testemunhos escritos e escutados de quem conviveu com Benjamin, figuras essas também convertidas nesta obra em personagens. Ver artigo
A. S. Byatt nasceu em Yorkshire, em 1936, e em 1972 tornou-se professora de literatura inglesa e americana na University College em Londres. Tem poucas obras publicadas em Portugal mas é sobejamente conhecida pelo romance Possessão, vencedor do Booker Prize em 1990, publicado em 2010 pela Sextante, e adaptado a filme.
Ragnarök – O Fim dos Deuses é mais um título a integrar a colecção de Mitos da Elsinore, originalmente publicada pela editora Canongate. Já aqui se apresentaram outros títulos desta colecção, como A Odisseia de Penélope ou O Mel do Leão, de autores igualmente aclamados. São livros de capa dura, belamente ilustradas por Lorde Mantraste.
A narrativa, a não confundir com um romance, é contada a partir da perspectiva de uma «criança magra», cujo sexo nunca é designado, que devora histórias com grande avidez, durante a noite com uma lanterna sob os lençóis, e que descobre dois livros que a marcam particularmente, Asgard e os Deuses e O Caminho do Peregrino. É a partir dessas histórias que nasce em si o desejo de escrever, num mundo ele próprio perto do fim, quando as bombas da Blitz arrasam a cidade de Londres, e o pai da criança desapareceu. São estes os elementos de Ragnarök que se percebem autobiográficos, enquanto a autora recria de forma poética os mitos nórdicos do Crepúsculo dos Deuses – como em Wagner – e cria um paralelismo entre esse fim dos tempos e a destruição dos recursos do planeta pelo homem.
O livro, originalmente publicado em 2011, reflecte seriamente sobre a sensação de fim dos tempos que se vive na nossa contemporaneidade, pois esta criança que vivia no campo, apesar do espectro dos bombardeamentos aéreos e de se fazer acompanhar de uma máscara de gás, lê agora (em adulta), todos os dias, sobre «uma nova extinção, o branqueamento dos corais, o desaparecimento do bacalhau que a criança magra pescava à linha no Mar do Norte, numa altura em que os peixes abundavam. Leio sobre projetos humanos que destroem o mundo, poços de petróleo habilidosa e avidamente construídos em águas profundas, uma estrada atravessando as rotas de migração no parque do Serengeti, o cultivo de espargos no Peru, balões de hélio para transportar as colheitas de forma menos dispendiosa, emitindo menos carbono, enquanto as próprias explorações agrícolas esgotam perigosamente a água que alimenta os vegetais, os seres humanos e outras criaturas. (…) Quase todos os cientistas que conheço acreditam que estamos a forjar a nossa própria extinção a um ritmo cada vez mais acelerado.» (p. 142) Foi aliás notícia, recentemente, a percentagem assustadora de espécies animais que se extinguiram devido à acção humana nas últimas décadas…
Neste livro inclui-se uma nota da autora, intitulada «Pensamentos sobre os mitos», que faz luz sobre esta obra e o porquê de ter sido este o mito a recriar escolhido pela autora, professora durante largos anos da disciplina «Mito e Realidade no Romance». Podemos alegar que os mitos, bíblicos ou gregos, não têm o fôlego dos grandes romances, mas é também nas linhas das grandes obras da literatura que perpassam diversos ecos míticos; da mesma forma que os heróis míticos não se comparam com personagens de romances, pois faltar-lhes-ia serem dotados de verdadeira densidade psicológica; antes parecem joguetes nas mãos dos deuses, eles próprios tão caprichosos e incautos como crianças. O único deus nórdico que merece alguma simpatia por parte desta crítica literária e romancista é Loki, o endiabrado irmão de Thor, o único deus inteligente e trocista, mas também irresponsável e caprichoso como os demais.
A. S. Byatt entretece estas questões complexas nesta preciosa nota, de como os deuses nórdicos são «peculiarmente humanos (…) porque são limitados e pouco inteligentes. São gananciosos, divertem-se a lutar e a brincar. (…) Sabem que o Ragnarök está a chegar , mas são incapazes de imaginar uma forma de o evitar ou de mudar a história. Sabem morrer destemidamente, mas não sabem tornar o mundo melhor.» (p. 144). A autora explica, em suma, como escolheu o mito nórdico de Ragnarök porque este representa o último de todos os mitos: «o mito que põe fim aos mitos, o mito em que os próprios deuses são destruídos» (p. 140). Ver artigo
Publicado pela Elsinore, em 2015, este pequeno livro de um designer editorial explora de forma irreverente e original a relação do leitor com a literatura, das imagens que podemos formar a partir do pouco ou nada que o livro nos dá, ou de como por vezes o rosto de um actor na adaptação cinematográfica do livro pode ficar indelevelmente gravada na mente do leitor e dificilmente volta a ser suprimida, mesmo quando a actriz escolhida nada tem a ver com a personagem que encorpora.
Num livro que se constrói ele próprio a partir do jogo entre a palavra e a imagem, entre o texto e a mancha gráfica, o autor disserta em torno de diversos tópicos como: Imaginar a «imagem»; Representação; Olhos, Visão ocular & Meio ou Sinestesia.
Mendelsund alega que, tal como na música, as notas e os acordes definem as ideias, assim como o silêncio das pausas, na literatura as personagens são fisicamente vagas, com poucas características pertinentes, que ajudam mais a «aperfeiçoar o significado de uma personagem» do que a imaginar uma pessoa (p. 30). Os bons livros, como Anna Karenina, sugestionam mais do que desenham, pelo que quando um filme nos mostra uma determinada actriz (uma Isabelle Adjani ou uma Keira Knightley, por exemplo), essa é uma forma de roubo, não propriamente da propriedade intelectual do autor mas do direito de o leitor incitar a sua imaginação à cocriação de uma personagem. Porque quem ler o livro atentamente pode lembrar apenas o adjectivo «roliça», ou a sua bolsa vermelha… Como Homero usava epítetos para melhor nos relembrarmos das várias personagens…
Quando uma obra de ficção é adaptada ao grande ecrã, o filme suprime as nossas visões de leitores. E talvez por isso há sempre tantos leitores descontentes com as adaptações fílmicas. Eu, por exemplo, nunca perdoei a Morgana de As Brumas de Avalon representada por Julianna Margulies, embora a adore na série The Good Wife. Conto apenas dois filmes que para mim suplantaram os livros: são eles As Horas e O Senhor dos Anéis. E isto é algo muito pessoal e indefensável, claramente.
Numa era dominada pela imagem, quer na fotografia quer no filme, é possível que os músculos da nossa imaginação estejam a atrofiar, como já aconteceu com a nossa capacidade mnemónica (ou será que ainda há professores por aí que incentivam os alunos a memorizar poemas?). Contudo esta proliferação rápida da imagem não nos afasta totalmente do mundo da escrita e ler ainda pode ser um prazer único: «Os livros permitem-nos algumas liberdades: somos livres para sermos mentalmente activos quando lemos; participamos plenamente na relização (na imaginação) de uma narrativa.» (p. 192)
Alega ainda o autor que quando lemos alguma passagem, mesmo que seja de autores de outros tempos, como Dickens, preenchemos as descrições com o material da nossa própria memória. E eu dou-lhe razão, pois se ler sobre um farol ou uma praia, sei exactamente qual é o farol ou a praia que a minha memória recupera para preencher a ficção como um vislumbre involuntário do nosso passado (p. 300): «As palavras são eficazes não pelo que transportam com elas, mas pelo seu potencial latente de libertar a experiência aculumada do leitor. As palavras «contêm» significados, mas, mais importante, as palavras potenciam o significado…» (p. 302) Até quando lemos, por exemplo, a descrição de um cheiro (lembro-me desse fabuloso e insuperável livro que é O Perfume, cujo cheiro nauseabundo das primeiras páginas quase nos obriga a pousar o livro, sendo que no filme esse efeito é aproximado mediante a sobreposição de imagens…), não sentimos esse cheiro como tal a evolar-se das palavras na página mas sim mediante uma «transformação sinestésica», invocando não tanto uma experiência ou recordação real mas um instantâneo da nossa memória que terá deixado «uma ligeira imagem residual» (p. 342). Ver artigo
A. S. Byatt nasceu em Yorkshire, em 1936, e em 1972 tornou-se professora de literatura inglesa e americana na University College em Londres. Em Portugal, tem poucas obras publicadas mas será sobejamente conhecida pelo romance Possessão, vencedor do Booker Prize em 1990, publicado em 2010 pela Sextante, adaptado a filme.
Ragnarök – O Fim dos Deuses é mais um título a integrar a colecção de Mitos que a Elsinore está a publicar entre nós, não sei ainda se de forma sistemática, originalmente publicada pela editora Canongate. Já aqui se apresentaram outros títulos desta colecção, com capas duras, belamente ilustradas por Lorde Mantraste, como A Odisseia de Penélope ou O Mel do Leão, de autores igualmente aclamados. (…)
A autora explica, numa nota final, como escolheu o mito nórdico de Ragnarök porque este representa o último de todos os mitos: «o mito que põe fim aos mitos, o mito em que os próprios deuses são destruídos» (p. 140). Ver artigo
A obra da autora canadiana Margaret Atwood continua a ser relançada em Portugal, depois do sucesso de A História de uma Serva, que deu origem ao sucesso televisivo da série The Handmaid’s Tale, do canal Hulu.
À semelhança de outras obras publicadas pela Elsinore, já apresentadas aqui na rubrica da Leitura da Semana do Postal do Algarve, como Uma Odisseia ou O Mel do Leão, A Odisseia de Penélope recupera esse misto de anonimato e colectivo que vive num mito e dá-lhe nova vida, neste caso, uma nova voz, a da mulher de Ulisses.
Sempre irreverente, no seu humor e ironia, a autora recupera aqui a figura de Penélope e tece a sua própria teia narrativa: «as pessoas diziam-me que eu era bonita, mas, também, que remédio tinham senão dizê-lo sendo eu uma princesa, e, em pouco tempo, uma rainha, mas a verdade é que, embora não fosse aleijada nem feia, não era nada de especial. Em todo o caso, era esperta, muito esperta até, se tivermos a época em conta. Parece ser por isso que sou conhecida: por ser esperta. Isso e a minha tecelagem, a dedicação ao meu marido, e a minha discrição.» (p. 29)
A partir do reino de Hades, perfeitamente consciente de que os tempos são outros, até porque Ulisses entretanto tem vivido várias encarnações, entrando e saíndo do reino dos Infernos, Penélope conta a sua própria versão dos acontecimentos imortalizados na Odisseia de Homero: como casou tão jovem, aos quinze anos, e foi viver para Ítaca, ao contrário dos costumes da época; como ela própria tinha de ser sagaz como a raposa do marido e safar-se com o subterfúgio de tecer uma mortalha que desfazia durante a noite; a sua difícil relação com Telémaco, um jovenzinho que começa a querer afirmar-se, achando a mãe incapaz de continuar a governar o reino que é dele por direito; a ambiguidade em torno do seu comportamento num palácio com mais de 100 homens que lhe disputavam a mão e, por conseguinte, o leito conjugal; os rumores que corriam das aventuras do próprio Ulisses com feiticeiras e deusas; as complicações de se relacionar com Euricleia, ama de Ulisses, que se impõe como uma “sabe-tudo” ou não tivesse ela criado o rei; e a sua animosidade para com a sua bela prima Helena, cuja face foi capaz de lançar mil navios para a guerra.
Mas nesta teia em que Margaret Atwood nos enleia nem tudo é mera fantasia e capricho de escrita, pois sente-se como a autora estudou os mitos e avança as suas próprias hipóteses de reinterpretação dos mesmos, narrando sempre a partir da voz e perspectiva de uma Penélope que não está de todo votada ao passado e que se dirige directamente ao leitor:
«A mortalha em si tornou-se numa história quase instantaneamente. «A teia de Penélope», chamavam-lhe; as pessoas costumavam dizer isso de qualquer trabalho que fosse misteriosamente infindável. Eu não gostava do termo «teia». Se a mortalha era uma teia, então eu era uma aranha. Mas não fora tentada a apanhar homens como quem apanha moscas; pelo contrário, andara só a ver se me escapava a ser enredada.» (p. 93) Ver artigo
Pesquisar:
Subscrição
Artigos recentes
Categorias
- Álbum fotográfico
- Álbum ilustrado
- Banda Desenhada
- Biografia
- Ciência
- Cinema
- Contos
- Crítica
- Desenvolvimento Pessoal
- Ensaio
- Espiritualidade
- Fantasia
- História
- Leitura
- Literatura de Viagens
- Literatura Estrangeira
- Literatura Infantil
- Literatura Juvenil
- Literatura Lusófona
- Literatura Portuguesa
- Música
- Não ficção
- Nobel
- Policial
- Pulitzer
- Queer
- Revista
- Romance histórico
- Sem categoria
- Séries
- Thriller
Arquivo
- Março 2025
- Fevereiro 2025
- Janeiro 2025
- Dezembro 2024
- Novembro 2024
- Outubro 2024
- Setembro 2024
- Agosto 2024
- Julho 2024
- Junho 2024
- Maio 2024
- Abril 2024
- Março 2024
- Fevereiro 2024
- Janeiro 2024
- Dezembro 2023
- Novembro 2023
- Outubro 2023
- Setembro 2023
- Agosto 2023
- Julho 2023
- Junho 2023
- Maio 2023
- Abril 2023
- Março 2023
- Fevereiro 2023
- Janeiro 2023
- Dezembro 2022
- Novembro 2022
- Outubro 2022
- Setembro 2022
- Agosto 2022
- Julho 2022
- Junho 2022
- Maio 2022
- Abril 2022
- Março 2022
- Fevereiro 2022
- Janeiro 2022
- Dezembro 2021
- Novembro 2021
- Outubro 2021
- Setembro 2021
- Agosto 2021
- Julho 2021
- Junho 2021
- Maio 2021
- Abril 2021
- Março 2021
- Fevereiro 2021
- Janeiro 2021
- Dezembro 2020
- Novembro 2020
- Outubro 2020
- Setembro 2020
- Agosto 2020
- Julho 2020
- Junho 2020
- Maio 2020
- Abril 2020
- Março 2020
- Fevereiro 2020
- Janeiro 2020
- Dezembro 2019
- Novembro 2019
- Outubro 2019
- Setembro 2019
- Agosto 2019
- Julho 2019
- Junho 2019
- Maio 2019
- Abril 2019
- Março 2019
- Fevereiro 2019
- Janeiro 2019
- Dezembro 2018
- Novembro 2018
- Outubro 2018
- Setembro 2018
- Agosto 2018
- Julho 2018
- Junho 2018
- Maio 2018
- Abril 2018
- Março 2018
- Fevereiro 2018
- Janeiro 2018
- Dezembro 2017
- Novembro 2017
- Outubro 2017
- Setembro 2017
- Agosto 2017
- Julho 2017
- Junho 2017
- Maio 2017
- Abril 2017
- Março 2017
- Fevereiro 2017
- Janeiro 2017
- Dezembro 2016
- Novembro 2016
- Outubro 2016
Etiquetas
Akiara
Alfaguara
Annie Ernaux
Antígona
ASA
Bertrand Editora
Booker Prize
Bruno Vieira Amaral
Caminho
casa das Letras
Cavalo de Ferro
Companhia das Letras
Dom Quixote
Editorial Presença
Edições Tinta-da-china
Elena Ferrante
Elsinore
Fábula
Gradiva
Hélia Correia
Isabel Rio Novo
João de Melo
Juliet Marillier
Leya
Lilliput
Livros do Brasil
Lídia Jorge
Margaret Atwood
New York Times
Nobel da Literatura
Nuvem de Letras
Patrícia Reis
Pergaminho
Planeta
Porto Editora
Prémio Renaudot
Quetzal
Relógio d'Água
Relógio d’Água
Salman Rushdie
Série
Temas e Debates
Trilogia
Tânia Ganho
Um Lugar ao Sol