Chega-nos agora, pela Alfaguara, Os Informadores, o primeiro romance do premiado autor colombiano Juan Gabriel Vásquez, um dos mais celebrados escritores contemporâneos de língua espanhola, sobejamente conhecido por A forma das ruínas.
O romance de estreia do autor é também a minha estreia na sua obra com esta extraordinária história de traições e segredos de família.
Quando o jornalista Gabriel Santoro – note-se que o protagonista do romance é homónimo do autor e, tal como ele, jornalista – publica o seu primeiro romance, escrito a partir da história pessoal e da memória de Sara Guterman, uma amiga de família, criada com o pai, judia chegada à Colômbia nos anos 30, em fuga à Alemanha nazi e ao eclodir da Segunda Guerra, não pode imaginar que a crítica mais devastadora será escrita justamente pelo pai – crítica essa, aliás, que exacerbou justamente a visibilidade de um livro que provavelmente teria passado despercebido. Uma Vida no Exílio, «uma reportagem com título de documentário para a televisão» (p. 15), é o único livro de Gabriel Santoro filho e representará também o afastamento de Gabriel Santoro pai, que não perdoa ao filho o ir remexer no passado, ao recontar a história de Sara. Até que, 3 anos depois, o pai o convida para ir a sua casa, como forma de se sentir menos sozinho face a uma operação que se torna iminente.
Num fantástico exercício de desvelamento, em que a verdade se vai despindo por camadas como uma cebola, Os Informadores é narrado numa sucessão de versões da história, em que os acontecimentos vão ganhando uma nova luz, e por conseguinte originam uma nova versão de parte da história. Nos 6 meses depois da operação, o pai de Gabriel aproveita a sua segunda vida para sanar erros e falhas do passado, mas não é ao filho que acaba por revelar o verdadeiro motivo da sua irascibilidade perante o livro em que se revelava ao público a história de Sara, que era também a história de um período negro, em que a Segunda Guerra ensombrou a Colômbia, apesar de este parecer ser apenas um país remoto do outro lado do Atlântico. Lembremos as palavras de Gabriel pai numa das suas aulas, quando fala com os seus alunos mas está, na verdade, a dirigir-se ao filho: «Nessa época todos tínhamos poder, mas nem todos sabíamos que o tínhamos. Apenas alguns o utilizaram. Foram milhares, claro: milhares de pessoas que acusaram, que denunciaram, que informaram. (…) o sistema das listas negras deu poder aos fracos, e os fracos são a maioria. Assim foi a vida durante esses anos: uma ditadura da fraqueza.» (p. 63)
Juan Gabriel Vásquez nasceu em Bogotá, Colômbia, em 1973. Estudou Literatura na Sorbonne e viveu em Barcelona mais de dez anos.
Como tradutor, foi responsável pela tradução de obras de John dos Passos, Victor Hugo e E. M. Forster, entre outros. Escreve regularmente em vários jornais. Os seus livros estão publicados em 30 idiomas em mais de 40 países, com extraordinário êxito junto da crítica e do público. Vencedor e finalista de vários prémios: O barulho das coisas ao cair, publicado cá em 2012 (Prémio Alfaguara, English Pen Award, Impac Dublin Literary Award, Premio Gregor von Rezzori-Città di Firenze); As reputações, em 2015 (Prémio da Real Academia Espanhola, Premio Arzobispo Juan de San Clemente, Prémio da Casa da América Latina de Lisboa, finalista dos Prémios Médicis e Femina) e A forma das ruínas, em 2017 (Prémio Literário Casino da Póvoa Correntes d’Escritas; finalista do Prémio Bienal de Novela Mario Vargas Llosa). Venceu por duas vezes o Premio Nacional de Periodismo Simón Bolívar pelo seu trabalho jornalístico. Em 2012 foi-lhe atribuído em Paris o prémio Roger Caillois pelo conjunto da sua obra. Ver artigo
Se o disseres na montanha foi o romance de estreia de James Baldwin, publicado em 1953 e só agora traduzido por Isabel Lucas e publicado entre nós pela Alfaguara. O autor nasceu em 1924 em Nova Iorque, cresceu no bairro de Harlem, e viajou para Paris em busca de liberdade para se poder encontrar como homem negro e homossexual.
A narrativa centra-se no dia do décimo quarto aniversário de John Grimes, dia em que se cumpre também o vaticínio de que John um dia quando crescesse seria pregador tal como o seu pai (na verdade, o padrasto), que lhe diz ser feio, o mais baixo da turma, o rapaz que não tem amigos.
«A John, que se destacava na escola – mas não em matemática nem em basquetebol, como Elisha -, foi dito que teria um grande futuro. Que poderia tornar-se o Grande Líder do Povo de Deus. John não estava assim tão interessado no seu povo e menos ainda em liderá-lo no que quer que fosse, mas a frase tantas vezes repetida surgiu na sua mente como um grande portão de ferro que se abre para ele e dá para um mundo onde as pessoas não viviam na escuridão do pai (…)» (p. 22)
Na manhã de um sábado de Março, em 1935, John reflecte na admoestação pública que o seu amigo Elisha e Ella Mae receberam num sermão de domingo, acusados de corporizarem o pecado entre a congregação. No momento dessa denúncia pública termina a possibilidade de estes dois jovens continuarem a encontrar-se, ainda que de forma inocente, a não ser um dia mais tarde ao abrigo do casamento, para terem filhos e educá-los na igreja. E é também nesse domingo, dias antes do seu aniversário, que «John percebeu que aquela era a vida que o esperava – que teve realmente consciência de alguma coisa não muito distante, mas iminente, a aproximar-se de dia para dia» (p. 20).
Inspirada na sua própria vida, esta história retrata a luta interior de um jovem que teme e odeia o padrasto, ele próprio um homem imperfeito e violento, enquanto simultaneamente o encara como um modelo a seguir. Aliado a esse dilema, persiste ainda outra clivagem maior, um segredo ainda inominável mas que é já perceptível ao longo deste romance, mas que apenas irrompe numa outra obra do autor, que será publicada ainda neste ano de 2020 pela Alfaguara – O Quarto de Giovanni. Nunca é expresso de forma absoluta e incontornável, mas ao longo deste livro, especialmente na primeira parte, mais centrada na perspectiva de John, os indícios homoeróticos na relação entre John e Elisha são vários. John pensa em Elisha «que era alto e belo, que jogava basquetebol e que aos onze anos tinha sido salvo das impensáveis plantações do Sul» (p. 20). John assume que pecou. «Apesar dos santos, do pai e da mãe, dos avisos que ouviu desde o princípio dos seus dias. Pecara com as suas mãos um pecado difícil de perdoar. Na casa de banho da escola, a pensar em rapazes, mais velhos, maiores, valentes, que faziam apostas uns com os outros sobre quem conseguia o maior arco de urina, e viu acontecer em si uma transformação de que não se atrevia a falar.» (p. 21) Porém, a par da consciência de John do pecado que o marca, e que o diminui aos olhos dos outros, em particular do padrasto, reside também em si a percepção de que se demarca dos outros por motivos diferentes, como aconteceu um dia quando aos 5 anos a directora da escola vê a sua caligrafia no quadro e lhe diz «És um rapaz muito esperto, John Grimes» (p. 23)
Um rapaz esperto num mundo de brancos, em que para combater a injustiça, como a falsa acusação que recai sobre Richard, o verdadeiro pai de John, Elizabeth, a sua mãe, mantinha «a cabeça levantada, o olhar em frente e sentia a pele assentar sobre os ossos como se usasse uma máscara» (p. 189).
«Olhou para as ruas calmas e soalheiras e, pela primeira vez na vida, odiou aquilo tudo – a cidade branca, o mundo branco. Naquele dia, não foi capaz de pensar numa única pessoa decente no mundo inteiro. Sentou-se ali e esperou que um dia Deus, através de torturas inconcebíveis, os levasse à humilhação total e lhes fizesse saber que os rapazes negros e as raparigas negras, que tratavam com tanta condescendência, tanto desdém, e tão bom humor, tinham corações como os seres humanos, corações mais humanos do que os deles.» (p. 193)
Um mundo fechado, em que um homem não pode fugir ao isolamento e à diferença que a cor da sua pele lhe impõe, John carrega ainda essa outra cruz, a de amar o seu semelhante.
Go tell it on the mountain é o nome de uma música gospel, sobre o nascimento de Cristo, aqui possivelmente associada à conversão de John, ao seu renascimento em Cristo. E como é próprio de um sermão, como o Sermão da Montanha que disserta sobre os valores e princípios de uma vida cristã, a prosa de James Baldwin entretece simbolismo e lirismo. E, neste caso, a fúria sexual de um jovem a desabrochar é temperada pelo erotismo da sublimação do desejo. Ver artigo
Se não leu Manual para Mulheres de Limpeza ou Anoitecer no Paraíso, é possível que este livro lhe pareça incompleto, até porque é uma colação de fragmentos. Mas se conhece os contos desta autora nascida no Alasca em 1936 e que alcançou notoriedade 11 anos após a sua morte, com a publicação em 2015 dos seu contos escolhidos em Manual para Mulheres de Limpeza, vai gostar de devassar um pouco da intimidade desta autora, cuja vida, percebe-se aqui, serviu de cenário à sua escrita.
Na primeira parte, que dá nome ao livro, a autora rememora uma série de instantâneos da sua vida, ilustrados com fotos do álbum de família. São breves reminiscências das inúmeras moradas por onde passou, desde a casa onde viveu nos primeiros anos de vida, passando pela sua primeira memória, até à última frase incompleta de um manuscrito inacabado (em consequência da sua morte em 1965), em que relatava uma viagem pelo México com o marido e os filhos. A escrita é clara, contida, como quem põe em ordem o registo de uma vida, ocasionamente iluminada por passagens em que explana a sua paixão pela escrita, como quando visitava com o pai um velhote e colava nas paredes páginas de revistas, dispostas aleatoriamente, como um texto fragmentado que era preciso repôr para dele retirar sentido: «Creio que esta foi a minha primeira lição sobre literatura, sobre as infinitas possibilidades da criatividade.» (p. 31)
A segunda parte do livro consiste numa selecção de cartas – Berlin escrevia imensas –, numa escrita torrentosa, quase desconexa, até porque não se sabe ao que responde a autora, mas também muito autocentrada, pondo a nu uma vida turbulenta que parece nunca lhe pesar. A sua honestidade é desarmante, expondo sem comiseração o esboço de uma autobiografia possível, em que alude ao marido toxicodependente, ao seu alcoolismo, a uma das suas várias passagens pela prisão, depois de passar a infância e juventude em dezenas de casas diferentes, pois mudava constantemente de cidade e até de país, como quando viveu no Chile, e no México já em adulta. As próprias memórias que lhe ficaram, entre uma mãe que mal saía da cama e uma avó que também não era boa dona de casa, não são as mais luminosas: «A casa cheirava a enxofre, roupa suja húmida, cigarros, uísque, insecticida Flit, comida estragada. Não havia frigorífico, só uma geladeira que tinha sempre qualquer coisa podre lá dentro.» (p. 41)
Entre 1971 e 1994, Lucia Berlin trabalhou como professora, mulher de limpeza, telefonista e assistente médica, sem nunca parar de escrever, nomeadamente pelas noites dentro, sentada à mesa da cozinha, depois de deitar os seus 4 filhos. O poeta Edward Dorn, a quem dirige a maioria das suas cartas, foi uma forte influência na sua vida e escrita, e concedeu a Lucia a oportunidade de trabalhar como escritora convidada e depois como professora na unversidade, tendo-se tornado «extraordinariamente popular e acarinhada entre os alunos» (p. 193)
Nesta sua viagem, Lucia Berlin conviveu com inúmeros escritores e artistas, cuja identidade a tradutora Tânia Ganho teve o cuidado de elucidar em diversas notas explicativas que enriquecem o texto. A obra da autora está publicada pela Alfaguara. Ver artigo
Todas as Almas, de Javier Marías, o mais recente livro de um dos mais destacados escritores espanhóis da actualidade, cuja obra tem vindo a ser publicada pela Alfaguara, é um canto melancólico de amor, de solidão, da sensação de ser estrangeiro.
O narrador sem nome, por vezes apelidado de «o espanhol», é professor de Tradução na universidade de Oxford e, dois anos depois, casado e pai de um menino, descreve-nos os dois anos que lá viveu, à semelhança do autor – pois aqui funde-se, ainda que apenas ligeiramente, autobiografia e ficção. Além de que mesmo enquanto divaga e relembra, a própria memória do narrador parece iludi-lo, como quando descreve um possível reencontro com uma jovem: «acho que me cruzei», «apercebi-me de que era ela – ou julguei aperceber-me», «não tenho a certeza se era ela» (p. 124).
Ainda que este romance evoque o ambiente de campus de outros romances académicos, onde se retratam figuras académicas com os seus tiques e idiossincrasias, Marías pinta um cenário onde todas as almas se cruzam e desencontram, como acontece, por exemplo, com a jovem da estação de comboio de Didcot, onde todos os encontros se revestem de uma aura de mistérios, pois em Inglaterra os desconhecidos não falam entre si. O narrador é um dos solteiros que predominam em Oxford, «outro perpetuador da velha tradição secular clerical daquele lugar imutável e inóspito e conservado em calda» (p. 156), e vive uma relação fugaz com Clare Bayes (uma das poucas mulheres professoras na universidade), medida a toques de sino e despertadores, por vezes uma «turbulenta e rápida meia hora entre duas aulas» (p. 97), nem sequer o suficiente para se despirem.
Esta não é uma história de amor, mas de desejo e solidão, pois este estrangeiro vive mais intensamente a lembrança e a expectativa de um encontro fugaz com a sua amante do que a relação amorosa que estabeleceu com ela. Um amante é sobretudo um ouvinte da nossa história, o reconhecimento de um eu num tu, contudo «os amantes são parcimoniosos, voluntariosos e entusiasmados, mas não durante muito tempo, e é assim que deve ser. Essa é a vossa função e também a vossa graça. (…) A nossa missão não é durarmos muito, não persistirmos, não permanecermos, porque se durarmos um pouco mais do que é suposto então lá se vai a graça e começam os sofrimentos e acontecem tragédias.» (p. 188) Ver artigo
Michel Houellebecq é provavelmente dos autores franceses mais lidos e mais polémicos dos últimos tempos. Nascido na Ilha Reunião, em 1956, tem a sua obra publicada em Portugal pela Alfaguara e está traduzido em mais de quarenta línguas. Venceu em 2010 o Prémio Goncourt com O mapa e o território e este ano foi condecorado com a Legião de Honra, coincidentemente com a publicação do seu mais recente romance, Serotonina – título familiar, e infelizmente actual, para quem já se viu confrontado com a triste notícia de que o seu sistema endócrino não está a produzir serotonina suficiente.
Florent-Claude Labrouste, funcionário do Ministério da Agriculta, de quarenta e seis anos, descontente com o seu nome próprio e com a vida em geral, é um cidadão vulgar e anódino, não fosse ter uma namorada japonesa mais nova de quem descobre uns vídeos pornográficos chocantes para o leitor comum… Numa fuga à sociedade em geral, o nosso anti-herói deixa a namorada, a casa, o emprego e passa a viver de quarto em quarto de hotel, movido a Captorix, um antidepressivo que, supostamente, deveria libertar serotonina. Mas as melhoras são poucas, apesar de ironicamente serem bem manifestos os efeitos secundários como a total inibição de desejo sexual e a disfunção eréctil, mesmo quando a dosagem excede o que seria aconselhável. Ou, por outro lado, talvez seja o Captorix que lhe permitirá ver sem paliativos a realidade desastrosa e desesperançada que se vive, com uma França e uma Europa que ameaçam ruir, num mundo todo ele às avessas.
Politicamente incorrecta, com afirmações imbuídas de machismo e chauvinismo, a prosa de Michel Houellebecq raia o pornográfico ao mesmo tempo que ainda assim disseca, igualmente sem freio na língua, a nossa realidade. Para dar um exemplo mais suave, leia-se a seguinte passagem quando o narrador aceita ficar numa casa sem internet:
«Respondi-lhe que já sabia, que já estava preparado para isso. Vi então passar-lhe pelos olhos um breve momento de temor. Não devem faltar os depressivos que se querem isolar, que querem passar uns meses nos bosques «para fazer um ponto de situação»; mas pessoas que aceitam ficar sem internet, sem pestanejar, por tempo indefinido é porque estão nas últimas, li-lhe no olhar ansioso.
– Não me vou suicidar – disse-lhe, com um sorriso que esperava desarmante, mas que na realidade devia ser suspeito. – Enfim, não agora – acrescentei, como concessão.» (p. 221) Ver artigo
Num tempo em que o racismo, talvez sempre latente, parece eclodir e difundir-se, nem sempre sob a forma de violência física, falo deste livro de um autor sobejamente conhecido mas cuja obra só mais recentemente, e em boa hora, começa a ser publicada em Portugal pela Alfaguara.
Como pode ler-se na contracapa do livro: «Se esta rua falasse, esta seria história que contaria: Tish, 19 anos, apaixona-se por Fonny, que conhece desde criança.»
Como um Romeu e Julieta dos tempos que então se viviam (o romance foi originalmente publicado em 1974), o amor de Clementine (Tish) e Fonny será posto à prova assim que desperta e se torna visível para os que os rodeiam. É a profunda ligação que partilham, cuja manifestação viva desse amor é a criança de 3 meses gerada no ventre de Tish e que vai crescendo ao longo dos próximos 6 meses em que decorre a acção (com algumas analepses), que lhes permite fazer frente à injustiça do sistema judicial norte-americano e do «maldito homem branco». Como nos narra Tish: «A mesmíssima paixão que salvou Fonny acabou por lhe arranjar sarilhos e atirá-lo para a cadeia. Porque, sabem, ele tinha encontrado o cerne, o seu próprio cerne, dentro dele: e notava-se. Ele não era o preto de ninguém. E isso é crime nesta porcaria de país livre. Devemos ser o preto de alguém. E, se não formos o preto de alguém, somos um mau preto» (p. 46)
James Baldwin nasceu em Nova Iorque em 1924. Cresceu e estudou no bairro de Harlem. Em 1948 partiu para França fugindo ao racismo e homofobia dos Estados Unidos. Em 1953 publicou o seu primeiro romance, Go tell it on the mountain (que será publicado este ano pela Alfaguara) e cedo se destacou como romancista, ensaísta, poeta e dramaturgo. Foi uma das vozes mais influentes do movimento de direitos civis e o primeiro artista afro-americano a figurar na capa da revista Time. Em 2017, trinta anos após a sua morte, foi profusamente relembrado com I am not your negro, um documentário baseado na sua obra, narrado pela sua própria voz em voz-off.
Se esta rua falasse (If Beale Street Could Talk) é o seu quinto romance, e foi adaptado ao cinema por Barry Jenkins, o realizador de Moonlight, que recebeu o Óscar de Melhor Filme em 2016. A estreia do filme está prevista em Portugal para 21 de Fevereiro. Ver artigo
Publicado recentemente pela Alfaguara, depois de Canção doce, publicado entre nós em 2017, este é o romance de estreia da autora, que obteve um imediato reconhecimento. Leïla Slimani nasceu em Marrocos em 1981 e aos 17 anos foi para Paris estudar Ciências Políticas, tendo trabalhado como jornalista antes de se dedicar à escrita.
É um romance perturbador, pela frontalidade da linguagem e pelo tema, mas com ressonâncias de clássicos como Madame Bovary ou Anna Karenina. Contudo o adultério é agora contado por uma mulher e o que em Flaubert era tédio burguês, aqui torna-se puro e manifesto desejo, aliás mais do que desejo, uma fome de sexo. Tão voraz como esse fogo que arde na protagonista, é a nossa própria leitura e a nossa própria ânsia de saber um desfecho que por experiência, e segundo a tradição literária, resulta mal.
Poder-se-ia ler esta obra como um libelo feminista de aceitação e glorificação do corpo e do prazer, não fosse Adèle estar num conflito entre si e o seu corpo: «o que excitava a alma era precisamente ser traída pelo corpo que agia contra a sua vontade, e, ao mesmo tempo, assistir a tal traição.» (pág. 104) Ainda que não pareça haver muito espaço para a culpa: « Adèle não retira nem glória nem vergonha das suas conquistas.» (pág. 105)
Uma obra citada em epígrafe, e referida a certa altura na obra, é A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, em que o protagonista coleccionava esgares de prazer em rostos de mulher, numa demanda insaciável por mais e mais mulheres.
Não se sabe se há redenção ou cura da ninfomania da personagem, mas é claro como em toda a narrativa a narradora se exime de emitir juízos de valor sobre o comportamento desta mulher, perseguida pela imagem que guarda de Paris quando tinha 10 anos, onde se confrontou com dezenas de prostitutas: «aquele sentimento mágico de ver claramente o vil e o obsceno, a perversão burguesa e a miséria humana.» (pág. 56) Ver artigo
A ingressar num género que leio muito pouco, o policial, este livro, de peso, promete ainda assim ser uma leitura leve e ágil, pois os capítulos são curtos e a intriga é veloz, em capítulos que se sucedem inclusivamente numa contagem decrescente, a começar 33 dias antes da estreia do 21.º festival de teatro da (outrora) pacata cidade de Orphea.
Jesse Rosenberg é um ainda jovem capitão, com apenas 45 anos mas a poucos dias de se reformar com uma taxa de 100% de sucesso, quando é confrontado pela jornalista Stephanie Mailer de que um dos seus primeiros casos foi mal resolvido…
Fico sempre com a sensação que estou a ler um mero argumento de filme – o que retira grande prazer da leitura, apenas contrabalançado pelo ritmo frenético em que a escrita nos leva.
Joël Dicker, publicado pela Alfaguara, tornou-se um fenómeno literário global de sucesso de vendas com A verdade sobre o caso Harry Quebert (2013). Este é o seu quarto romance e tem criado grande burburinho (em Barcelona lembro-me que invadiu todos os escaparates). Ver artigo
Nascido em Nápoles, em 1943, foi professor e escreveu para um suplemento cultural, autor de vários romances e contos, alguns adaptados a filmes e séries televisivas. Laços foi distinguido como melhor livro do ano por vários jornais internacionais (The New York Times, Kirkus Reviews, The Sunday Times) e venceu o Prémio Bridge de melhor romance.
São 141 páginas, numa história repartida em três partes, ou livros. No primeiro livro, que parece constituir um breve prólogo, é a mulher abandonada e traída que se lamenta e apela ao marido uma explicação. É no fundo o discurso na primeira pessoa que compôs diversas cartas escritas ao marido, e às quais percebemos que ele foi respondendo. No segundo livro, curiosamente bastante mais extenso, é o marido que discorre sobre aquilo que foi para ele o casamento e como deu por si a “estar com outra mulher” ainda antes de “se apaixonar” por essa mulher, num tempo (quarenta anos antes) em que o divórcio era ainda inconcebível, apesar do adultério e de os homens deixarem mesmo a sua mulher e filhos para começar de novo com outra. No terceiro livro, fala-nos um dos filhos deste casal.
Aldo, agora um «senhor falsamente distraído de setenta e quatro anos», casado com Vanda «uma senhora falsamente enérgica de setenta e seis anos», regressam de férias a uma casa que foi vandalizada, apesar de nada existir para roubar (uma metáfora de um casamento vazio onde tudo foi destruído). Ao arrumar os destroços espalhados pela casa, Aldo dá por si a relembrar o que aconteceu no seu casamento, que dura há cinquenta e dois anos, «um longo fio de tempo encolhido», e relembra o tempo em que era um «assistente sem futuro de Gramática Grega» e se apaixona por Lidia, uma estudante de Economia (p. 32).
Este livro, publicado pela Alfaguara, reflecte sobre os frágeis laços de família e heranças que se transmitem ou inventam, como forma de confortar e aproximar entes tão distintos, mesmo quando partilham o mesmo sangue. Um retrato sublime de uma história banalizada, quando um homem sai de casa para se juntar com uma mulher, ao mesmo tempo que traça uma história do casamento e do adultério ao longo das últimas décadas, e do que se tornou comum ou aceitável, mesmo quando contra a norma: «Estar casado, ter família própria numa idade novíssima, tornara-se um sinal não de autonomia, mas de atraso. Com menos de trinta anos, sentia-me velho, e parte – à minha revelia – de um mundo, de um estilo que, no ambiente político e cultural a que aderia, era considerado iminentemente acabado. Pelo que, embora tivesse uma relação forte com a minha mulher e as duas crianças, depressa me deixei fascinar por modos de vida que programaticamente suprimiam todos os vínculos tradicionais.» (p. 63) Ver artigo
Nascido em Washington em 1977, este autor é uma das jovens vozes proeminentes da literatura norte-americana. Extremamente Alto e Incrivelmente Perto (2012) foi um sucesso inclusivamente adaptado ao cinema, apesar de abordar um tema delicado, pois trata de uma criança cujo pai foi vítima do 11 de Setembro. Sem querer entrar em comparações e superlativações, podem encontrar-se ecos na sua escrita de Jonathan Franzen e de um Philip Roth mais jovem. Neste Aqui Estou, o autor regressa à questão do judaísmo, como aconteceu em Está Tudo Iluminado, o seu primeiro romance, escrito aos 24 anos.
O título Aqui Estou é enganosamente simples, como a certa altura se explica, em referência ao episódio bíblico de Abraão. Quando Deus testa Abraão e o chama, este responde: «Aqui estou.»
«A maior parte das pessoas pensa que o teste é aquilo que se segue: Deus a pedir a Abraão que sacrifique o filho, Isaac. Mas acho que também podemos fazer a leitura de que o teste aconteceu quando Deus o chamou. Abraão não disse: «O que queres?» Não disse: «Sim?» Respondeu com uma afirmação: «Aqui estou.» Seja o que for que Deus queira ou precise, Abraão está inteiramente presente para ele, sem condições ou reservas ou necessidade de explicação.» (p. 134)
É um livro cujo tamanho pode assustar mas que se lê com leveza e divertimento, escrito com sensibilidade, ironia e humor. Por vezes uma crítica corrosiva ao modo de vida americano: «os Chineses são suficientemente espertos para saber que os Americanos são suficientemente estúpidos para comprar seja o que for» (p. 246).
Tragicomédia moderna, assente em parte numa revisão da cultura judaica ou de como se pode continuar a ser judeu nos dias que correm, numa América ela própria desamparada em termos de identidade, mesmo que não se entre em críticas directas a Trump – apenas surge a referência a um «presidente saloio de cabeça gigante» (p. 256).
Jacob é um escritor frustrado, resignado a escrever o guião de uma qualquer série de sucesso com dragões, seguida por 4 milhões de pessoas, e Julia, uma arquitecta que nunca viu um edifício desenhado por si construído, quarenta e três anos e uma mãe de sucesso, com três filhos, aliás, quatro, contando com o marido. Até que após quase vinte anos de vida em conjunto tudo é posto em causa por causa de umas mensagens pornográficas encontradas num telemóvel que surge no chão da casa de banho, onde um marido hipocondríaco e aparentemente recalcado se refugia todas as noites para enfiar supositórios.
Os diálogos de família são absolutamente caóticos, o que só retrata como tantas vezes a vida em família é feita de conversas cruzadas, em que todos falam em simultâneo e as falas encadeiam-se umas nas outras, e de desentendimentos que nos aproximam.
Este é também um livro sobre uma crise de fé no casamento, pois a resposta «Aqui Estou» pode ser igualmente aplicada a uma relação conjugal que é constantemente posta à prova e ainda assim encontra forma de sobreviver, perante a rotina, a apatia, a insegurança de cada um, ou a traição, quando, subitamente, um casamento pode tornar-se uma guerra civil:
«Ao décimo dia, Jacob abriu a porta da casa de banho e viu Julia a secar-se depois de ter tomado duche. Ela cobriu-se. Ele já a tinha visto sair de centenas de banhos, já tinha visto três bebés saírem do corpo dela. Tinha-a visto despir-se e vestir-se milhares e milhares de vezes (…). Tinham feito amor em todas as posições, com todas as partes do corpo vistas de todas as perspectivas possíveis.
– Desculpa – disse ele, sem saber a que se referia a palavra, sabendo apenas que o seu pé carregara ao de leve na espoleta de uma mina.» (pág. 168) Ver artigo
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