Não é por acaso que escolho este livro para retomar a rubrica da Leitura da Semana depois de um interregno de 3 semanas. Nunca aqui surgiu em conversa, creio, nem quero fazer desta rubrica uma crónica mas não posso deixar de dar aquilo que pode parecer uma desculpa descabida. Este silêncio de 3 semanas em que não vos pude deixar aqui as minhas sugestões de leitura prende-se com o facto de não ter lido uma única linha neste espaço de tempo, depois de ter vivenciado a passagem do ciclone Idai na cidade da Beira, em Moçambique, onde resido há ano e meio. Face a uma situação destas, em que uma cidade fica devastada, e a nossa vida profissional e pessoal, sem casa, sem trabalho, sem condições de saúde ou de segurança, sem rotina, é difícil manter a calma e o foco. Mas o cérebro humano, ou a alma humana, surpreende-nos, e quase sempre pela positiva, permitindo manter o foco nas situações mais difíceis.
O livro Resiliência integra a colecção Inteligência Emocional da Harvard Business Review (HBR), lançada pela Actual Editora (chancela da Almedina), e é uma obra que revela isso mesmo: as chaves para o sucesso na vida profissional, que é como quem diz na vida em geral, revelando quais as características ou atitudes que permitem emergir de situações de emergência em que aquilo que conhecíamos fica virado do avesso.
«Assumimos muitas vezes uma perspectiva «dura», militarista da resiliência e da coragem. Imaginamos um fuzileiro a avançar através da lama, um pugilista a disputar mais um assalto, ou um jogador de futebol a levantar-se do relvado para uma nova jogada. Acreditamos que quanto mais tempo aguentamos, mais fortes somos, e que por isso seremos mais bem-sucedidos. Porém, toda esta conceção é cientificamente incorreta.» (p. 102)
São 6 artigos breves, sucintos, que se lêem numa pausa para um café ou num transporte público, de autores de renome como Daniel Goleman, psicólogo e autor do best-seller Inteligência Emocional, que apresentam investigações e casos de figuras que se tornaram conhecidas pelas piores e pelas melhores razões. Há diversas dicas lançadas ao leitor como manter uma rotina, assegurar intervalos para repouso, munir-se de acontecimentos e memórias positivas para aumentar a sua moeda do optimismo, saber construir relações e fazer-se rodear de conhecidos úteis que podem ser mais eficazes na reconstrução de uma carreira do que os amigos e familiares, enfrentar a realidade com alguma dose de humor negro…
A coleção Inteligência Emocional consiste em artigos acessíveis, que vão além do papaguear dos livros de auto-ajuda, com informações essenciais sobre o lado humano da vida profissional e com base em investigações comprovadas que mostram como as emoções são determinantes na nossa vida profissional. Especialmente direccionado para gestores, diretores de recursos humanos, psicólogos, e para todos aqueles com ambição profissional e pessoal de chegar mais longe e fazer melhor. Ver artigo
O livro Comportamento – A biologia humana no nosso melhor e pior não é propriamente recente, pois foi publicado em Outubro do ano passado, pela Temas e Debates, mas será certamente intemporal, até que algum estudo mais completo o possa complementar. Procurando responder à questão «Porque fazemos o que fazemos?», e recorrendo ao resultado de mais de uma década de trabalho, Robert Sapolsky tenta responder a esta pergunta centrando-se, sobretudo, no «conjunto confuso de sentimentos e pensamentos sobre violência, agressividade e competição» que a maioria dos seres humanos carrega (p. 10).
«Pondo as coisas de forma mais óbvia, a nossa espécie tem problemas com a violência. Possuímos os meios para criar milhares de cogumelos atómicos; chuveiros e sistemas de ventilação subterrânea já disseminaram gases venenosos, cartas levaram anthrax, aviões de passageiros foram transformados em armas; violações em massa podem constituir uma estratégia militar; bombas explodem em mercados, crianças com armas massacram outras crianças; há bairros onde todos, dos que entregam pizas aos bombeiros, temem pela sua segurança. E há as formas mais subtis de violência: digamos, uma infância inteira de abusos, ou as consequências para uma população minoritária quando os símbolos da maioria exalam dominação e ameaça. Estamos sempre à sombra do perigo de ter outros seres humanos a magoar-nos.» (p. 10-11)
Mas o problema e o ponto central deste livro é que ao contrário de outros flagelos que a Humanidade procura erradicar do Mundo, como doenças crónicas, ou aquecimento global, ou meteoros, a violência não parece preocupar ninguém: «Odiamos e tememos o tipo errado de violência, aquela que ocorre no contexto errado. Porque a violência no contexto certo é diferente. Pagamos bom dinheiro para vê-la num estádio, ensinamos os nossos filhos a responder-lhe e orgulhamo-nos quando, numa meia-idade já meio decrépita, conseguimos atingir o adversário com um desonesto golpe de cintura durante um jogo de básquete de fim de semana.» (p. 11)
Com irreverência e sentido de humor, suficientes para amenizar uma leitura de um livro que se estende por quase 900 páginas, e daí o seu pedido recorrente ao leitor “para que não mude de canal”, Sapolsky procura contar a história do comportamento humano por etapas, recuando no tempo: «Um comportamento acaba de ocorrer. Porque ocorreu?» (p. 14)
Neurobiólogo – aquele que estuda o cérebro – e primatologista – aquele que estuda macacos de todo o tipo –, o autor começa por analisar o que se passou no cérebro da pessoa um segundo antes de o comportamento se manifestar, recuando consecutivamente: segundos a minutos antes, horas a dias antes, dias a meses antes, recua à adolescência do sujeito, ao berço, ao útero, ao óvulo fertilizado, até chegar aos séculos e milénios antes que testemunharam o início da espécie humana e o nosso legado evolucionista.
A primeira categoria de explicação é neurobiológica mas Sapolsky adopta uma visão holística, multidisciplinar, consciente de que não é possível explicar o comportamento humano sem ir além da neurobiologia e da endocrinologia.
«Portanto, algumas vezes, o desafio intelectual é compreender o quanto somos semelhantes a animais de outras espécies. Noutros casos, o desafio é reconhecer como, apesar de a fisiologia humana manter semelhanças com a de outras espécies, nós a utilizamos de maneiras diferentes.» (p. 19)
Explora-se neste livro a biologia da violência, da agressividade e da competição, analisando os comportamentos e os impulsos que as motivam, mas este é também um tratado de psicologia sobre como as pessoas são ainda capazes de cooperação, afiliação, reconciliação, empatia e altruísmo: «procuraremos entender o virtuosismo com que nós, seres humanos, nos agredimos ou cuidamos uns dos outros, e o quão interligada é a biologia de ambos.» (p. 21)
Diz ainda o autor na Introdução que «às vezes a única forma de entender a condição humana é levar em conta apenas os seres humanos, pois as coisas que fazemos são únicas. Enquanto poucas outras espécies pratiquem o sexo não reprodutivo, nós somos os únicos que depois conversamos sobre como foi.» (p. 19)
Robert M. Sapolsky é autor de várias obras de não-ficção, como A Primate’s Memoir, The Trouble with Testosterone e Why Zebras Don’t Get Ulcers. É professor de Biologia e Neurologia na Universidade de Stanford e foi premiado pela MacArthur Foundation. Ver artigo
Se na obra A Vegetariana, da autora coreana Han Kang, a personagem começa pelo vegetarianismo para depois passar a querer anular-se enquanto mulher ou ser humano e transformar-se numa árvore, numa fuga ao real e numa oposição aos valores da sociedade contemporânea, neste romance de Sayaka Murata, Uma Questão de Conveniência, a protagonista é vista como estranha, mediante os padrões da sociedade dita normal, por levar uma vida pacata, simples e regrada, como empregada de uma loja de conveniência. Keiko tem 36 anos de idade, trabalha nessa loja há 18 anos, há 157 800 horas desde a sua primeira manhã, quando a loja abriu ao público, e não aspira a mais nada, para grande desconcerto da família e dos amigos, que também nunca lhe conheceram um namorado.
«Dentro da pequena caixa iluminada que é a loja, sinto a manhã fluir com normalidade. Do lado de fora dos vidros reluzentes e sem uma única dedada, vejo as pessoas caminharem apressadas. Mais um dia que começa. É esta a hora a que o mundo acorda e todas as suas engrenagens se põem a girar. Também eu estou em movimento, como uma dessas engrenagens. Sou uma peça no mecanismo do mundo, a rodar dentro desta manhã.» (p. 12)
Aquilo que em A Metamorfose, de Kafka, se prende com a diferença e com o desconcerto do mundo, é aqui vertido em desejo de ordem e normalidade. A loja de conveniência é como um aquário a partir do qual se avista o mundo exterior, mas sem nele se fundir, onde tudo é fácil de gerir, em gestos de autómato, que pretendem servir o outro, e o consumismo, pois o outro é aqui um cliente, que apenas está de passagem, a comprar algum bem descartável para uma necessidade imediata, seja um chocolate, um bolinho de arroz, ou uma bebida em lata.
«A campainha que avisa quando alguém entra na loja de conveniência ressoa nos meus ouvidos como o sino de uma igreja. É a certeza de que, sempre que eu abrir a porta, esta caixa envidraçada e iluminada estará à minha espera. Um mundo necessário, sólido e constante, que nunca para de funcionar. Tenho fé no mundo que há dentro desta caixa repleta de luz.» (p. 38)
O romance ganha contornos de alegoria dos tempos modernos, de uma vida anódina, em que multidões se confundem num único indivíduo, e os estereótipos abolem a singularidade de cada um, numa escrita que ganhava mais, há que dizer, em ser menos autoexplicativa, enquanto aborda temas como o papel das mulheres na sociedade, a maternidade/paternidade, a assexualidade ou o celibato voluntário.
«O padrão do mundo é rígido e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. Os seres humanos fora do padrão acabam por ser ajustados e corrigidos.» (p. 83)
A vida é portanto feita de uma cadeia de expectativas a que temos de corresponder, sob risco de sermos alienados ou excluídos: «As pessoas continuam a meter-se nas nossas vidas mesmo depois de nos casarmos. Se não estivermos de algum modo a contribuir para a sociedade, mandam-nos procurar emprego. Se arranjamos emprego, querem que ganhemos bem. Se já estamos a ganhar bem, mandam-nos arranjar uma mulher e filhos… Somos toda a vida avaliados.» (p. 90)
A certa altura, Keiko aprende a defender-se, copiando os modelos das colegas, arrastando a voz, imitando-lhes a roupa e os acessórios, quase se confundindo com elas, mas não deixa de ser vista como alguém que vive de forma estranha. Até que ao conhecer um colega contestatário, inapto para funcionário da loja, e que passa a aproveitar-se de Keiko como um parasita, a jovem, na verdade já uma mulher, sente finalmente que a normalidade tão desejada pelos outros para si pode agora ser alcançada na sua vida, mesmo que isso implique abdicar daquilo que dá sentido à sua existência.
Uma Questão de Conveniência, publicado pela Dom Quixote, venceu o prémio Akutagawa e foi traduzido em mais de vinte países. Publicado em 2016, a edição portuguesa foi adaptada a partir da tradução brasileira feita por Rita Kohl, tradutora do japonês formada em Letras pela Universidade de São Paulo, com mestrado em Literatura Comparada pela Universidade de Tóquio.
Sayaka Murata nasceu em Inzai, no Japão, em 1979. É uma das vozes mais originais da ficção contemporânea japonesa, e uma das mais mediáticas romancistas da actualidade, escreveu para a revista Granta e foi nomeada Mulher do Ano pela revista Vogue japonesa em 2016. Trabalha a tempo parcial numa loja de conveniência, na cidade de Tóquio, alegando que a observação do quotidiano das pessoas que frequentam a loja é inspiradora para a sua obra. Ver artigo
A obra da autora canadiana Margaret Atwood continua a ser relançada em Portugal, depois do sucesso de A História de uma Serva, que deu origem ao sucesso televisivo da série The Handmaid’s Tale, do canal Hulu.
À semelhança de outras obras publicadas pela Elsinore, já apresentadas aqui na rubrica da Leitura da Semana do Postal do Algarve, como Uma Odisseia ou O Mel do Leão, A Odisseia de Penélope recupera esse misto de anonimato e colectivo que vive num mito e dá-lhe nova vida, neste caso, uma nova voz, a da mulher de Ulisses.
Sempre irreverente, no seu humor e ironia, a autora recupera aqui a figura de Penélope e tece a sua própria teia narrativa: «as pessoas diziam-me que eu era bonita, mas, também, que remédio tinham senão dizê-lo sendo eu uma princesa, e, em pouco tempo, uma rainha, mas a verdade é que, embora não fosse aleijada nem feia, não era nada de especial. Em todo o caso, era esperta, muito esperta até, se tivermos a época em conta. Parece ser por isso que sou conhecida: por ser esperta. Isso e a minha tecelagem, a dedicação ao meu marido, e a minha discrição.» (p. 29)
A partir do reino de Hades, perfeitamente consciente de que os tempos são outros, até porque Ulisses entretanto tem vivido várias encarnações, entrando e saíndo do reino dos Infernos, Penélope conta a sua própria versão dos acontecimentos imortalizados na Odisseia de Homero: como casou tão jovem, aos quinze anos, e foi viver para Ítaca, ao contrário dos costumes da época; como ela própria tinha de ser sagaz como a raposa do marido e safar-se com o subterfúgio de tecer uma mortalha que desfazia durante a noite; a sua difícil relação com Telémaco, um jovenzinho que começa a querer afirmar-se, achando a mãe incapaz de continuar a governar o reino que é dele por direito; a ambiguidade em torno do seu comportamento num palácio com mais de 100 homens que lhe disputavam a mão e, por conseguinte, o leito conjugal; os rumores que corriam das aventuras do próprio Ulisses com feiticeiras e deusas; as complicações de se relacionar com Euricleia, ama de Ulisses, que se impõe como uma “sabe-tudo” ou não tivesse ela criado o rei; e a sua animosidade para com a sua bela prima Helena, cuja face foi capaz de lançar mil navios para a guerra.
Mas nesta teia em que Margaret Atwood nos enleia nem tudo é mera fantasia e capricho de escrita, pois sente-se como a autora estudou os mitos e avança as suas próprias hipóteses de reinterpretação dos mesmos, narrando sempre a partir da voz e perspectiva de uma Penélope que não está de todo votada ao passado e que se dirige directamente ao leitor:
«A mortalha em si tornou-se numa história quase instantaneamente. «A teia de Penélope», chamavam-lhe; as pessoas costumavam dizer isso de qualquer trabalho que fosse misteriosamente infindável. Eu não gostava do termo «teia». Se a mortalha era uma teia, então eu era uma aranha. Mas não fora tentada a apanhar homens como quem apanha moscas; pelo contrário, andara só a ver se me escapava a ser enredada.» (p. 93) Ver artigo
Numa cidade nunca designada, onde existem grandiosas torres e parques exuberantes, mas onde as fachadas dos prédios vivem cada dia como se tivesse o peso de dez anos, onde há um recolher obrigatório, postos de controlo e as janelas são partes da casa a evitar, pois a qualquer momento podem explodir e desfazer-se em múltiplos projécteis mínimos de vidro ou deixar entrar alguma bala, Saeed conhece Nadia e apaixonam-se.
A partir da fórmula “rapaz conhece rapariga”, assistimos ao eclodir da guerra civil, às restrições acrescidas à plena vivência deste amor juvenil, até que a única esperança parece mesmo ser Saeed e Nadia ganharem coragem de modo a deixar para trás o mundo que conhecem e a família que lhes resta para escaparem por uma de entre as várias portas que se diz existir pela cidade, pois ao contrário das janelas, a «fronteira através da qual a morte tinha maiores probabilidades de chegar» (p. 64), as portas podem trazer a salvação.
O romance ganha aí contornos mais próximos do realismo mágico, pois os refugiados aqui não partem dentro de barcos mas sim através de portas «nas quais a maioria das pessoas parecia agora acreditar» que os levam aos recantos mais inesperados nas várias capitais do mundo e que «estavam a ser debatidas pelos líderes mundiais como uma grande crise global» (p. 77).
Um pouco ao jeito de José Saramago, esta breve narrativa, que se lê de um fôlego, estende-se em frases extensas, onde a ironia também tem parte activa, e o fantástico serve para extrapolar a realidade e delinear as possibilidades da história, narrando o terror de viver num país em conflito, o impacto das vagas de migrantes, os campos de contenção construídos nos arredores das cidades, e as revoltas dos nativistas contra os migrantes.
Mohsim Hamid nasceu em Lahore, no Paquistão, e viveu em Londres, Nova Iorque e na Califórnia. Os seus livros são bestsellers, alguns adaptados ao cinema, nomeados para o Man Booker Prize, vencedores ou finalistas de vários prémios e estão traduzidos para 35 línguas. Considerado como um dos melhores livros de 2017 para a Time e o The New York Times, este livro publicado pela Saída de Emergência (curiosamente, a lembrar as portas de escape dos refugiados) cabe no rol dos melhores romances publicados em 2018. Ver artigo
Haruki Murakami, autor japonês, supostamente eterno candidato ao Nobel, continua a habituar os seus leitores ao ritmo mais ou menos regular de um livro por ano, todos publicados pela Casa das letras.
Se há fãs que sofrem de uma verdadeira febre de Murakami, a envolvência com que o narrador nos envolve (a narrativa é contada na primeira pessoa) acusa muito mais o próprio prazer que Murakami parece ter em escrever e perder-se nas suas próprias histórias. O ritmo lento e em crescendo na forma como apresenta as personagens, as suas rotinas, a música que ouvem para se poderem ouvir pensar (ou jazz ou música clássica), o ambiente estranhamente melancólico em que o fantástico incorre nunca se sabe bem por que frincha, a hipnose de uma leitura que rapidamente se torna viciante, são alguns dos aspectos com que Murakami nos seduz. E se um livro seu parece ser sempre um eco do anterior, a verdade é que nada será igual.
Neste livro aliás parece que a certa altura estamos a ler sobre a própria narrativa de Murakami:
«Quando a passamos em revista, a nossa vida parece realmente estranha e misteriosa, recheada de coincidências inacreditáveis e desenvolvimentos imprevisíveis e fantásticos. À medida que se desenrolam, torna-se difícil identificar o que têm de bizarro, por mais que olhemos com atenção. Imersos na rotina, essas coisas parecem normalíssimas e perfeitamente naturais. Apesar de não fazerem sentido, o tempo encarrega-se de lhes conferir coerência.» (p. 75)
A Morte do Comendador está repartido em dois volumes e o segundo sai já no dia 12 de Março, pelo que ainda vai a tempo de ler este para depois devorar o seguinte, num intriga que gira em torno de um quadro, de uma ópera e de misteriosas visitas por parte de uma figura anã saída do quadro. O autor é traduzido entre nós a partir do inglês por Maria João Lourenço (agora com uma ajuda) e publicado pela Casa das letras, numa tradução que, tem de ser dito, para muitos leitores peca por não respeitar o original ao incorrer no uso (ainda que agora mais contido) de expressões da gíria portuguesa. Contudo, acto contínuo, os livros de Murakami são sempre intrigantes e difíceis de pousar. Ver artigo
Se o nome causa alguma estranheza é por causa da sua herança galega.
A autora nasceu em 1937 no Rio de Janeiro. Formou-se em Jornalismo em 1956 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Colaborou em vários jornais e revistas literários e foi correspondente no Brasil da revista Mundo Nuevo, de Paris. Publicou o seu primeiro romance, Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, em 1961.
Actualmente com 81 anos, este é o primeiro livro que a autora publica depois de ter recebido o Prémio Vergílio Ferreira 2019. Um livro intimista, feito de memórias, pensamentos soltos, reflexões, aforismos.
«Escrever é o que sei fazer. Narrar me insere na corrente sanguínea do humano e me assegura que assim prossigo na contagem dos minutos da vida alheia. Pois nada deve ser esquecido, deixado ao relento. Há que pinçar a história dos sentimentos a partir da perplexidade sentida pelo homem que na solidão da caverna acendeu o primeiro fogo.» (p. 18) Ver artigo
Figura de destaque das letras britânicas, com duas dezenas de romances, além de biografias e ensaios, distinguida com o título Dame Commander of the Order of the British Empire, irmã da escritora A. S. Byatt, Margaret Drabble estreia-se em Portugal com este romance publicado pela Quetzal.
Apesar do título, retirado a uma citação em epígrafe de D. H. Lawrence («O corpo vai morrendo aos bocados e, tímida, a alma vê apagar-se a sua pegada quando sobe a maré negra.»), não se pense, contudo, que há aqui espaço para a melancolia. Quem quiser ler este livro como um canto de cisne desengana-se logo que desvenda as primeiras linhas, face ao humor negro que perpassa a narrativa: «Muitas vezes tem suspeitado que as suas últimas palavras para si e para o mundo virão a ser «Sua grandessíssima tola» (p. 11)
Fran, figura central que aglomera em torno de si directa e indirectamente um significativo rol de outras personagens, «já tem idade bastante para não morrer nova e demasiados anos para escapar aos joanetes e à artrite» (p. 11). Apesar de já poder gozar pacificamente a sua reforma, como algumas das suas amigas fazem, prefere andar constantemente atarefada, numa luta contra o tempo que lhe resta, a atravessar o país de carro a trabalhar para uma ONG preocupada com o alojamento para idosos, e a aproveitar ao máximo cada copo de vinho e cada momento de repouso nalgum quarto de hotel dos lugares por onde passa. Fran recusa-se a abrandar, ainda que veja as suas amizades se ficarem pelo caminho, e continua a intrigar os próprios filhos, ao mesmo tempo que cuida do ex-marido e observa o mundo com algum cinismo: «Podemos abster-nos de convidar pessoas para uma festa de aniversário, mas não podemos banir os membros da família dos funerais.» (p. 340)
A maré crescente das vagas de migrantes oriundos de África e do Médio Oriente, as maravilhas electrónicas e digitais deste Admirável Mundo Novo, o futuro do planeta e dos seus habitantes, os cuidados a prestar à terceira idade, o que fazer na reforma para não enlouquecer, para que serve realmente a literatura ou a arte na vida e para quê ensiná-la ou estudá-la, o criminoso baixo preço do álcool, as mudanças climatéricas, a comida de plástico e os corantes que a tornam irresistível, as relações entre marido e mulher, mãe e filhos, os homens que tomam as cunhadas viúvas como mulheres, a bênção de se morrer jovem e não ter de adoecer e envelhecer, a precariedade de relações entre pessoas do mesmo sexo que se apoiaram mutuamente toda a vida mas não são reconhecidas legalmente como cônjuge e eventual beneficiário, José Saramago e os seus romances em torno de possibilidades improváveis (E se…?)… Todos estes temas se entretecem neste romance onde se unem um sentimento de balanço de final de uma vida e uma arguta reflexão sobre o estado actual do mundo.
A autora esteve em Portugal entre os dias 21 e 23 de Janeiro para promoção do livro e concedeu uma brilhante entrevista a Isabel Lucas, no Público. Ver artigo
Para falar do prazer que me deu descobrir e ler este livro agora publicado pela Tinta da China, numa belíssima e luxuosa edição, de grande dimensão, assumindo-se em simultâneo como um documento etnológico, um hino ao resgate da cultura local, um álbum de fotografias e uma espécie de postal dos produtos marítimos algarvios, tenho de fazer um introito em que recapitulo as memórias da minha infância que estão fortemente ligadas a esta área geográfica, ao mar e, consequentemente, a esta obra.
Tendo crescido junto ao mar (pois os meus avós tinham uma casa na ilha de Faro – se bem que na verdade se trate de uma restinga – e eu era aí despejado pelos meus pais nos finais de Junho, ou às vezes no início de Julho – logo depois do meu aniversário – para ser recolhido nas primeiras semanas de Setembro quando as aulas estavam prestes a começar), vivia, portanto, como um índio da meia-praia, sem roupa (à excepção de uns calções de banho), sem calçado, sem preocupações, durante cerca de 3 meses, em que a rotina consistia em tomar o pequeno-almoço ansioso para chegar à praia, ainda deserta, estrear o areal limpo de pegadas e caminhar até à Quinta do Lago, local onde desemboca a ponte de madeira… para depois alternar entre leituras estendido na toalha e revigorantes mergulhos. Seguia-se o almoço de peixe com batatas, após o qual se esperavam as fatídicas 3 horas de digestão, durante as quais se podia dormir a sesta (nem por isso…), jogar monopólio (com as netas da vizinha da casa do lado, filhas de emigrantes de franceses) ou ler. Pelas 16h, a minha avó pegava num farnel, voltávamos para a praia, de onde só regressávamos quando o sol quase se punha e se levantava aquele vento quente de levante, enquanto me enxaguava na bica em frente à casa (na altura ainda não havia água canalizada que chegasse à casa) para depois jantarmos peixe com batata ou batata com peixe (para ir variando a dieta alimentar). Era esse o único momento do dia em que o televisor era destapado e ligado, ver a Tieta do Agreste (sim, as novelas ainda eram brasileiras, na altura) ou ir para a rua brincar com os filhos dos pescadores das casas ao lado. Retomando o assunto em mãos, guardo com enorme carinho as memórias dos pescadores a puxar as redes cheias de peixe-rei que brilhava como prata, da chegada dos homens nos seus barcos de madeira com motor, que depois empurrávamos para a areia, sendo, depois, o peixe vendido no mercado de Quarteira ou de Faro ou deixado na areia a quem o quisesse levar (ainda era a época da abundância), das mulheres a lavar o lingueirão, dos passeios pela ria Formosa quando vazava e onde eu gostava de tentar descobrir peixes retidos em latas ou pneus, que ficavam encalhados nos regos de água como detritos que a ria se recusava a levar mais longe, apenas para de vez em quando ser enxotado por algum homem mal-encarado que me acusava de andar a pisar o viveiro de amêijoas (sempre me transcendeu que se demarcassem pedaços de terreno na ria como quem delimita uma horta), dos homens a limpar os seus aparelhos de pesca onde no fio de nylon, brilhante como prata e invisível como um fio de baba, enrolado em grandes novelos se ia enfiando o isco nos anzóis. Lembro-me nitidamente como a minha avó recebia agradecida o peixe que os pescadores lhe traziam, quando sobrava, resmungando no caminho para a despensa que já tinha poucas batatas mas que tinha de retribuir, enquanto as enfiava num alguidar que me incumbia de oferecer em troca…
O livro
A ideia deste livro de Maria Manuel Valagão, Nídia Braz e Vasco Célio parte de uma ideia desenvolvida durante o processo de elaboração do livro Algarve Mediterrânico. Tradição, Produtos e Cozinhas (2015) também da autoria de Maria Manuel Valagão e Vasco Célio, e com Bertílio Gomes. Bem estruturado, de leitura acessível, em linguagem escorreita, que recolhe depoimentos de «homens e mulheres que fizeram a sua vida no e com o mar» (p. 15), fixa a vida dos produtos do mar (peixe, marisco, sal) e da memória da pesca, com os barcos, os aparelhos de pesca, os usos e costumes marítimos, recolhendo as vozes da memória individual e colectiva no Algarve mediterrânico e atlântico.
Foi através do mar que Portugal se aventurou ao mundo, e ainda hoje o país tem uma vasta plataforma marítima, fonte de alimento e riqueza. Mas é sobretudo pelo Algarve dentro que o mar se estende e se faz sentir, nessa «extensa costa (…) ponto de partida, de chegada de outros povos e também de regressos», onde até ao século XX era mais fácil a «aproximação pelo mar e pelos rios Arade e Guadiana» (p. 23). Aqui «mar e terra entrelaçam-se» (p. 25) na usual prática (como a minha avó o confirma) de se trocar produtos da terra por produtos do mar ou na forma como nas papas de milho (o xarém agora tão em voga nos restaurantes quando antes era uma comida de pobres) se incluem os bivalves, como berbigão, conquilhas ou amêijoas, e o toucinho frito. Se a sotavento a costa estende-se num cordão arenoso, com várias aberturas, que criam a ilusão de ilhas, a barlavento existem práticas arcaicas e intimamente ligadas como a pesca a linha nas falésias da costa rochosa, e nesses trilhos descobriam-se enxames de abelhas bravas alojados na rocha calcária cujos favos de mel eram recolhidos e o mel generoso escorria pelas rochas até ao mar. A maritimidade já vem dos tempos pré-históricos, como o comprovam os concheiros, depósitos de cascas de mariscos diversos e as sepulturas dos primeiros habitantes da costa vicentina decoradas com camas de percebes. E essa maritimidade revela-se das formas mais inesperadas, quer no conhecimento íntimo que o povo ainda hoje tem das marés, como num surpreendente farol integrado na torre sineira de uma igreja. O Algarve marítimo é aqui desvendado, desde os tanques de salga das grandes estações arqueológicas, aos portos e barras, cujas areias móveis abrem e fecham, aos faróis dos cabos, aos estaleiros navais, às indústrias transformadoras de peixe, passando pelas marinhas, agora conhecidas por salinas, até à ria Formosa (Parque Natural de singular beleza) e a ria de Alvor, cujos ecossistemas complexos são «profusamente povoados por espécies animais e vegetais» (p. 47). Este livro retrata as comunidades marítimas nas suas vozes e vidas, transcritas em diversos relatos, ao mesmo tempo que transmite a informação mais diversa, e bastante preciosa, como descobrir que o peixe de viveiro pode ser mais saboroso do que o selvagem.
O livro, dividido em 5 partes, explora a relação entre o mar, a maritimidade e a paisagem em «Paisagem, recursos e portos»; os recursos do mar e das rias através dos habitats e climas em «Pesca e Pescadores»; as memórias da pesca do bacalhau e do atum em «Pescas lembradas»; o percurso do peixe desde o mar até ao consumidor em «O peixe já em terra», outrora com as antigas práticas de venda como agora nas lotas e mercados, a conservação tradicional do peixe com a salga e a secagem, e um capítulo sobre as indústrias conserveiras, cujas fábricas ainda povoam a paisagem algarvia e as grandes chaminés dessas antigas fábricas têm sido integradas em novos edifícios; e em «Última vida do peixe» transcrevem-se algumas receitas transmitidas por boca. Por fim, a concluir, dá-se voz à modernidade através do testemunho de três personalidades – Pedro Bastos, Bertílio Gomes e Dieter Koschina – que revelam como o peixe afinal puxa carroça e é uma matéria-prima muito fácil de recriar e de trazer à mesa dos portugueses e dos estrangeiros, pois «o bom peixe, sozinho, já é o cozinheiro» (p. 19), ao mesmo tempo que se questionam sobre os actuais riscos ambientais e apontam caminhos para o futuro do peixe e dos mares. Existe ainda um Anexo que reúne informação sobre muitas das espécies de peixe e marisco disponíveis nos mercados, um glossário marítimo e um útil índice das várias receitas apresentadas no livro.
Este livro não só promove a preservação de todo um legado cultural, com as vozes da maritimidade e do seu povo, para que perdure nas gerações vindouras, como pretende estruturar a identidade algarvia num mundo em mudança no sentido da globalização e onde a biodiversidade marítima, de que dependemos, corre sérios riscos como se tem vindo a ver com as mudanças climatéricas ou as ilhas de plástico flutuante que poluem os oceanos.
Os autores
Maria Manuel Valagão é doutorada em Ciências do Ambiente, investigadora em Sociologia da Alimentação e Ambiente e é actualmente investigadora do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição – Patrimónios, Artes e Culturas da Universidade Nova de Lisboa. Nídia Braz é doutorada em Engenharia Agroinsdustrial, professora na Escola Superior de Saúde da Universidade do Algarve e investigadora em Ciência de Alimentos. Vasco Célio é um fotógrafo baseado no Algarve. Ver artigo
Um dos grandes lançamentos de início de ano da Dom Quixote, este livro foi nomeado para o Prémio Internacional Man Booker 2017, Livro do Ano da revista Economist, vencedor do Prémio da Cultura Flamenga para a Literatura, do Prémio Literário AKO, do Prémio do Júri dos Leitores do Golden Book Owl, do Inktaap 2016 (Jovens Leitores), e foi finalista do Prémio Strega Europeo, do Prémio Literário Libris, do Prémio Fintro e do Prémio de História (Davisfond).
Stefan Hertmans nasceu em Ghent, Bélgica, em 1951, e é um dos principais autores flamengos contemporâneos, com romances, contos, ensaios, teatro e poesia, traduzido em várias línguas e vencedor dos prémios mais importantes da literatura flamenga.
Na linha de Sebald, à semelhança de diversos autores portugueses e internacionais, o autor parte da realidade para deambular pela ficção, pela História, pela biografia, de modo a recuperar a memória de Urbain Martien, um soldado flamengo que sobreviveu à Primeira Guerra Mundial, nascido em 1891 e morreu em 1981, com 90 anos, cheios de vida e de dor (…) Ver artigo
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