Depois de ler com tanto prazer e fascínio Tyll, publicado pela Bertrand Editora, e já aqui apresentado, além de ter descoberto que em 2020 estreou mais um filme baseado numa obra sua, Devias ter-te ido embora, igualmente publicada pela Bertrand, que conta com interpretação de Kevin Bacon, tive de procurar o seu anterior A Medida do Mundo. Bestseller internacional traduzido para mais de quarenta línguas, adaptado ao cinema (alemão), foi traduzido e publicado pela Editorial Presença em 2007. Existe ainda outra obra publicada pelo autor pela Editorial Presença que espero conseguir ler em breve: Fama – Romance em nove histórias.
A Medida do Mundo é um delirante romance (ao jeito de Kehlmann) que pode ser lido, de rajada, como uma fábula do Século das Luzes. Alternando entre os percursos de dois gigantes do Iluminismo alemão, Alexander von Humboldt e Carl Friedrich Gauss, a narração começa quando os dois eminentes sábios se encontram em Berlim, no ano de 1828. Na verdade, a narrativa centra-se mais em Humboldt, aristocrata e asceta, um dos fundadores da moderna geografia graças às suas incansáveis explorações pelo mundo:
«No caminho para Espanha, Humboldt mediu todas as colinas. Subiu a todas as montanhas. (…) Pessoas da terra, que o observaram a fixar o sol através da ocular do sextante, pensaram que ele era um pagão que adorava os astros e apedrejaram-no, de tal modo que foram obrigados a saltar para os cavalos e partir a galope.
(…) Uma colina cuja altitude não era conhecida deixava-o perturbado e inquieto. Uma pessoa não podia seguir sem determinar sempre a própria posição. Não se devia deixar ficar pelo caminho um enigma, por mais pequeno que fosse.» (p. 32-33)
Para Humboldt, cujas indagações o levam até aos confins da América do Sul e pela Rússia quase até à China, tudo no mundo tem de ser compulsivamente medido. A certa altura, o seu colaborador pergunta-lhe mesmo se ele tinha de «ser sempre tão alemão?» (p. 59)
Gauss, o Príncipe das Matemáticas, um génio desde criança, prefere ficar sentado a fazer cálculos. Apesar das diferenças que os separam, têm em comum o anseio de compreender o mundo através de fórmulas verificáveis pela Razão: «Sonda-se o universo com telescópios, conhece-se a formação da Terra, o seu peso e a sua órbita, a velocidade da luz já foi calculada, já se conhecem as correntes do oceano e as condições da vida (…) Já se divisa o fim do caminho, a medição do mundo está quase concluída.» (p. 173)
Uma deliciosa narrativa que com ironia e humor reflecte sobre a fugacidade da vida e o pouco que a ciência pode fazer para a dominar: «A árvore era gigantesca e contava vários séculos de idade. Já ali se encontrava antes dos espanhóis e dos povos antigos. Era anterior a Cristo e a Buda, a Platão e a Tamerlão. Humboldt aproximou o relógio do ouvido e escutou. Da mesma forma que este, com o seu tiquetaque, continha o tempo dentro de si, aquela árvore repelia o tempo: um recife contra o qual se quebrava este fluxo.» (p. 37) Humboldt, aliás, refere mesmo, a certa altura, que escrever um romance «parecia-lhe um caminho magnífico para agarrar a fugacidade do presente.» (p. 23)
Este romance pouco típico e nada convencional liderou durante um ano as tabelas de vendas na Alemanha, destronando Harry Potter e O Código Da Vinci. Traduzido em 34 países, Daniel Kehlmann – um autor jovem, nascido em 1975 – é considerado um renovador da literatura de ficção em língua alemã. Estudou Filosofia e Estudos Alemães, e hoje vive entre Nova Iorque, Berlim e Viena. Ver artigo
Depois da tetralogia encerrada em O Labirinto dos Espíritos, Carlos Ruiz Zafón tinha ainda a intenção de reunir num único volume contos dispersos por diversos formatos, como publicações periódicas ou separatas que acompanhavam as edições especiais dos seus romances. Com a doença do autor, a edição foi adiada, pelo que a sua publicação (pela Planeta Editora) após a morte do autor este ano, deve ser entendida como justa homenagem (e numa bela edição de capa dura com sobrecapa). O autor morreu aos 55 anos de cancro, na Califórnia.
Não só regressamos nestes contos à ambiência misteriosa própria das narrativas de Zafón (o vapor, a condizer com o nevoeiro, são presenças recorrentes), como reingressamos por várias portas de entradas no labirinto do Cemitério dos Livros Esquecidos, enquanto o autor distende um pouco mais o seu universo ficcional. Seja com a história (nunca acontecida?) de como o David Martín (O Jogo do Anjo) contou as suas primeiras histórias a uma menina chamada Blanca («Blanca e o Adeus»), com a lenda do que será provavelmente o plano arquitectónico desse grandioso labirinto que conhecemos primeiro em A Sombra do Vento, seja pelos vários Sempere, impressores antepassados de Daniel, que nos piores tempos da Inquisição salvaram livros da fogueira escondendo-os em caixões que enterraram (p. 128).
E o cenário sempre vivo que pulsa sob todas estas histórias, talvez verdadeiramente a principal personagem, é a cidade de Barcelona, no cuidado das descrições ora realistas ora fantasiadas. O livro é, aliás, enriquecido com uma série de fotografias, e não faltam cenários emblemáticos e personagens como Gaudí.
Fazendo nossas as palavras do autor, «se quisermos dar crédito à lenda e aceitar como boa a moeda da fantasia e da ilusão» (p. 129) no universo zafoniano tudo conflui, pelo que tão depressa lemos sobre homens cuja ambição os transforma em dragões devoradores de cidades («Rosa de Fogo»), como se reconstituem episódios menos conhecidos da vida de Miguel de Cervantes («O Príncipe do Parnaso»), quando quase vende a alma a Andreas Corelli (o mesmo de O Jogo do Anjo) para conseguir imortalizar o seu nome com a terceira e última parte (nunca escrita) de Dom Quixote.
O conto que encerra o presente volume é acertadamente simbólico, a marcar a despedida que este último livro do autor representa. Ver artigo
Manhã e Noite, de Jon Fosse, publicado pela Cavalo de Ferro, com tradução de Manuel Alberto Vieira, é um pequeno livro, ao jeito de um poema, em que o autor modela a linguagem poética ao sabor do fluxo da consciência, muitas vezes num ritmo binário, feito de dicotomias, como a própria estrutura do título indica.
A velha parteira Anna prepara-se para dar à luz uma criança, o segundo filho de Olai e Marta, depois de vários anos sem ela ter engravidado. Estavam já conformados com a ideia de que não voltariam a ter filhos e gratos pela bênção do nascimento de Magda, que os poupou a uma vida triste e solitária na ilha de Holmen onde vivem, na casa que o próprio Olai construiu.
Enquanto Anna tenta enxotar Olai, pois da mesma forma que o barco não é lugar para mulheres, a presença de um homem num parto traz má sorte, este diz à parteira que será um menino, desta vez, e chamar-se-á Johannes como o avô e será pescador como o pai…
«e agora ele virá, enquanto Marta a mãe grita de dor, ele virá ao mundo frio e aí ficará só, separado de Marta, separado de todos, aí ficará só sempre só e mais tarde, quando tudo terminar, quando a hora dele chegar , desvanecer-se-á e tornará a ser nada e regressará ao lugar de onde veio, do nada para o nada, é esse o trajecto da vida, das pessoas, dos animais, das aves, dos peixes, das casas, dos barcos, de tudo quanto existe, é, pensa Olai» (p. 14)
Manhã e Noite é um tratado sobre a fugacidade da vida humana, pois conforme Olai está apreensivo com o nascimento do filho, não evita, simultaneamente, a percepção de como o ciclo natural da vida é efémero, pontuado sobretudo por momentos próximos do divino, como o nascimento, na manhã da vida, e a morte, na noite do dia. Tanto que já na segunda parte do livro, logo na página 27, encontramos um Johannes, agora idoso e viúvo, que nos dá conta da sua vida em retrospectiva. E o leitor, mais depressa do que Johannes, conforme se sucedem alguns episódios surreais, aperceber-se-á de que o seu mundo quotidiano tem algo de diferente: «pensa em como de certo modo tudo mudou, como as coisas, a casa, parecem de certo modo diferentes, mais pesadas e mais leves, como se houvesse mais de terra e mais de céu nas casas» (p. 40)
Jon Fosse, autor multipremiado, com destaque para o Prémio Internacional Ibsen, o Prémio Europeu de Literatura e o Prémio de Literatura do Conselho Nórdico, é um dos mais importantes e celebrados autores vivos. Nasceu em 1959, em Strandebarm, no Oeste da Noruega, e vive atualmente numa residência honorária situada nas propriedades do Palácio Real de Oslo. A sua extensa obra, traduzida em mais de quarenta línguas, inclui romance, teatro, poesia, livros para crianças e ensaio. Ver artigo
A Dança da Água, publicado pela Cultura Editora, é o muito aguardado romance de estreia de Ta-Nehisi Coates, autor sobejamente conhecido, todavia, pelo seu Entre mim e o mundo, publicado em 2016 pela Editora Ítaca (com tradução de Isabel Castro Silva) e vencedor do National Book Award.
A Dança da Água é um romance excepcional, publicado no original o ano passado, mas estranhamente parece ter passado despercebido
Hiram Walker (Hi) nasceu escravo, numa plantação de tabaco na Virgínia. Mas o jovem Hi não é igual aos outros escravos negros, a começar pelo facto de ele não ser negro mas sim mestiço, filho de pai branco, que é também o seu dono. Quando a mãe de Hi foi vendida, porque inevitavelmente todos os negros serão vendidos e separados da sua família, Hiram perde qualquer memória dela. Contudo, paradoxalmente, Hi revela uma memória prodigiosa, dom que se revelará uma fonte de entretenimento para os brancos. Será depois educado pelo mesmo perceptor que o seu meio-irmão branco, Maynard, a quem o pai reconhece não ter as mesmas capacidades de Hiram, pelo que cedo compreende que deve prepará-lo para ser o mordomo (ou na verdade um mentor) de Maynard. E, num certo dia, é-lhe revelado um misterioso poder que lhe salva a vida ao quase afogar-se num rio. Esse encontro com a morte desperta-lhe ainda a vontade urgente de fugir e libertar-se da escravidão. Porque esse poder é, afinal, inseparável do desejo de liberdade: a condução das almas. Os seus dotes aliados ao conhecimento das letras que entretanto adquire, entre o perceptor e a biblioteca do pai, revelar-se-ão essenciais ao seu trabalho como condutor daqueles que desejam fugir e viverem como homens livres no Norte, onde a escravidão era já condenada. Entretanto, ao longo da narrativa, a terra de abundância que era o Sul vai perdendo, curiosamente, o fulgor da terra vermelha. Explorada e seca, até se tornar árida, as plantações da Virgínia vão morrendo e os patrões terão de ir vendendo os seus escravos, a única fonte de riqueza que lhes resta.
Um dos livros mais aclamados sobre o racismo e a luta pela liberdade de um autor reputado, que aborda uma temática já tocada por Colson Whitehead em A Estrada Subterrânea – onde se materializava a metáfora do Underground imaginando linhas férreas subterrâneas –, que vai ainda mais longe, numa narrativa prodigiosa e original a que não falta magia – magia essa que não nos compete desvelar antes que leia este belíssimo livro. Ver artigo
Os Tempos do Ódio, de Rosa Montero, publicado pela Porto Editora, é o último volume de uma trilogia (Lágrimas na Chuva e O Peso no Coração). É um romance intenso e certamente corajoso, no mínimo desconcertante para quem conhece Rosa Montero por A Louca da Casa em que a autora cria um futuro possível para o mundo em que vivemos. Trata-se de uma narrativa que ingressa nas potencialidades da ficção científica, e não o faz recorrendo a fantasia ou a indefinição acrónica, mas sim com base em todo um universo cuidadosamente imaginado pela autora, e que de alguma forma já tem sido premonitório de eventos entretanto ocorridos – após publicação dos primeiros 2 volumes da trilogia, conforme a própria autora nos explica na sua nota final: «Digo sempre que os romances de Bruna Husky são os mais realistas que já escrevi. De facto, são de um realismo um pouco inquietante, porque às vezes sinto que a atualidade vai confirmando as minhas invenções.» (p. 310)
Bruna Husky é uma rep tecno-humana de combate, isto é, uma andróide, um ser orgânico, mas hipermanipulado por engenheiros genéticos. Quase humana, são clones que amadurecem aceleradamente e que em 14 meses atingem os 25 anos de idade, mas com um prazo de validade curto, pois vivem apenas por 10 anos ao que depois “morrem” em agonia durante 2 semanas. Bruna Husky é independente, individualista, destemida, e tem uma intuição que raia o sobrenatural – uma espécie de sexto sentido hiperhumano. Contudo tem também um grande coração, ainda que o tente dissimular – e conforme nos embrenhamos na narrativa a nossa heroína híbrida tornar-se-á cada vez mais humana, capaz de experienciar ódio, ciúme e amor. Ou não fosse Bruna Husky proveniente do material genético de uma escritora e jornalista de há cem anos, chamada Rosa Montero…
O livro tanto lança uma ponte para um futuro possível, daqui a cem anos, como recupera factos históricos de um passado mais remoto, cheio de dados reais, das trivialidades à antiga paixão do homem pela criação de autómatos, passando pela Ordem de Rosa-Cruz.
Os Tempos do Ódio pode desencorajar aqueles que não apreciem particularmente ficção científica, mas este livro é também um thriller policial, num mundo em crise, à beira de uma guerra mundial interplanetária, onde tudo depende da tecnologia. É uma leitura intensa e emocionante (devorei-o num único dia), onde não deixam de estar presentes os principais temas da escrita de Rosa Montero: a efemeridade da vida, a passagem do tempo, a paixão como superação da morte, o amor ao próximo como caminho para uma vida plena, a luta contra o poder e a injustiça social.
A autora nasceu em Madrid, em 1951. Como jornalista, colabora em exclusivo com o jornal El País, tendo obtido, em 1980, o Prémio Nacional de Jornalismo e, em 2005, o Prémio da Associação da Imprensa de Madrid, por toda a sua vida profissional. Com A Louca da Casa recebeu o Prémio Grinzane Cavour de Literatura Estrangeira e o Prémio Qué Leer para o melhor livro espanhol, distinção que também foi atribuída, em 2006, a História do Rei Transparente. Recebeu, em 2017, o Prémio Nacional das Letras Espanholas pelo conjunto da sua obra. Ver artigo
Rapariga, Mulher, Outra, de Bernardine Evaristo, publicado pela Elsinore, concretiza verdadeiramente o significado de romance polifónico. As 12 personagens deste romance a várias vozes apenas têm em comum serem mulheres (excepto Mogan que se definirá como não-binária), quase todas negras, a viver no Reino Unido, geralmente lésbicas. Poder-se-ia até procurar eleger como protagonista Amma, a dramaturga cujo trabalho artístico frequentemente explora a sua identidade lésbica negra, até porque é em torno da noite de estreia da sua peça que muitas destas histórias se interligam, quando algumas destas 12 mulheres se reencontram.
Cada capítulo subdivide-se, em torno de um eixo que congrega várias vozes que ressoam entre si (por exemplo, no Capítulo Um, temos 3 partes constituídas pela voz de Amma, a sua filha Yazz, e Dominique, a melhor amiga). A voz narrativa está na 3.ª pessoa, todavia consegue fazer o leitor beber da perspectiva de cada uma das personagens, que representam mulheres muito díspares entre si, do mais convencional ao mais rebelde, da típica dona de casa branca de subúrbio à empregada de limpeza nigeriana que não esquece as suas raízes.
E ao contar a história de cada uma delas, a autora dá vida a uma voz credível, onde conflui o dialecto (Bummi), o sociolecto (LaTisha), e a linguagem tecnológica dos dias que correm, coloridamente plasmados nas redes sociais (Megan/Morgan). Ao que acresce, nesta vasta tapeçaria, a forma como a história das personagens atravessa, por vezes, todo o século XX, dando conta, muito particularmente, do longo e sofrido percurso do que significa ser uma mulher de cor num mundo que silencia a diferença. A pujança da narrativa conduz a uma leitura vertiginosa, sem que o leitor se perca na torrente de histórias, magistralmente fluída, capaz de uma total identificação com cada uma destas mulheres, mesmo quando páginas depois lemos com que olhos é que as outras mulheres, que em torno dela gravitam, a vêem. Um retrato que se pensaria impossível do principal legado do império colonial britânico… Uma realidade multicultural e multifacetada, muito actual e vívida, fortemente assente no colonialismo, na imigração e na diáspora, em que todas as categorias e tentativas de compartimentação são sempre fluídas – um pouco ao jeito da sexualidade destas mulheres que se redescobrem, muitas vezes, ao amar uma mulher amiga.
Um romance imperdível, impossível de pousar, que repensa com humor e quase imperceptível ironia todas as noções possíveis de identidade, género e classe. Como quando uma das poucas mulheres brancas com voz neste romance descobre que afinal tem África no seu ADN: «deitada na cama, imaginou os seus antepassados de panos a cobrir-lhes as partes, a correr pelas savanas de África e a caçar leões com lanças – mas a fazê-lo de quipá na cabeça, depois a comer “sanduíches à dinamarquesa” e paelha e a recusarem-se a caçar no sabbat» (p. 465)
Bernardine Evaristo nasceu no sudeste de Londres, em 1959, filha de mãe britânica e pai nigeriano. Autora de uma obra que versa os mais diversos géneros – romance, poesia, contos, teatro e crítica literária –, a sua escrita é caracterizada pela experimentação, ousadia e subversão. Rapariga, Mulher, Outra foi, ex-aequo com Os Testamentos (Bertrand Editora), de Margaret Atwood, o vencedor do Booker Prize 2019, recebeu a distinção de Livro do Ano e Autor do Ano do British Book Awards 2020. Foi ainda finalista do Women’s Prize de ficção 2020 e do Orwell Prize de ficção política 2020. Ver artigo
A Suitable Boy estreou muito recentemente na Netflix, uma série de 6 episódios com uma hora cada, realizada por Mira Nair e produzida pela BBC. É aliás a primeira produção da BBC onde não entra um único actor branco. Esta série adapta o livro Um Bom Partido, de Vikram Seth, publicado entre nós pela Editorial Presença em 3 volumes – embora não se trate verdadeiramente de uma trilogia porque, como era muito habitual em tempos, o que aconteceu foi dividirem o livro original em vários na tradução portuguesa, o que até se compreende visto que cada volume tem cerca de 600 páginas. A série de Mira Nair adapta portanto em 6 horas o equivalente a 1800 páginas – falamos de páginas impressas com um tamanho de letra razoável.
Um bom partido, ou mais adequadamente, A suitable boy, de Vikram Seth (um dos nomes mais representativos da literatura pós-colonial) não pode ser confundido com um romance de cordel. Trata-se de um imenso fresco que por vezes me recorda o Em Busca do Tempo Perdido, talvez pela forma como agarra em vários fios narrativos e diversas personagens que depois vai entretecendo em nós mais apertados. Traça-se assim um amplo retrato da Índia pós-independência a partir da história muitas vezes cruzada de 4 famílias. O autor parece focar-se numa média aristocracia mas o quadro que nos apresenta é cativante, bastante realista, até quando trata de devaneios românticos das personagens, cheio de humor (dei várias gargalhadas com certas passagens) e uma fina ironia. Destaca-se a personagem da jovem Lata, que está em idade de ingressar nos estudos universitários ou, segundo a mãe, em idade de ser rapidamente casada com um rapaz que seja um bom partido, até porque desde a morte do pai de Lata, a sra. Rupa Mehra, tem sempre dependido da bondade de estranhos. O problema é que, entretanto, Lata comete o inimaginável… apaixonar-se por um rapaz sem querer saber o seu apelido. O que leva a catástrofes inimagináveis: o rapaz é muçulmano…
Casamentos prometidos e feitos por conveniência; noivas obedientes que nunca conheceram o noivo; mães de 4 filhos que uma vez perdido o marido ficam sem um lar e vivem da caridade da família, alternando o poiso; jovens que apesar da independência da Índia continuam a idolatrar o regime e a cultura britânica; o sistema de castas; os inomináveis; a influência duradoura de Gandhi; a poesia; a literatura; a política; as leis; as sessões do Parlamento; a reencarnação (ou “Que mal é que eu fiz na minha vida passada para merecer isto?”); os banhos no Ganges que apesar da poluição se acredita lavarem os pecados até à sexta geração de descendentes…
Por vezes perdemo-nos nas personagens, mas além de Lata (interpretada pela jovem estreante Tanya Maniktala) há outras que se destacam, como Maan, o jovem playboy de boas famílias (interpretado justamente por uma estrela de Bollywood, Ishaan Khatter) que se perde de amores por uma cantora e cortesã, prostituta nas horas vagas.
A tradução é cuidada e a tradutora Fernanda Pinto Rodrigues premiada, mas é interessante como o romance é fiel ao original e mantém uma profusão de termos indianos, em hindi e urdu, cujo glossário consta logo do início. Não consultei o glossário ao longo da leitura mas os termos na sua generalidade tornam-se familiares e é possível manter o ritmo da leitura sem desfazer da compreensão da mesma.
Deixo como remate a perspectiva de um inglês sobre o país: «Mas, apesar de tudo, é um povo encantador: lisonjeiro pela frente, caluniador pelas costas, alardeador de nomes sonantes para se dar ares, omnisciente, gabarola, rábula, venerador do poder, empata nas estradas, dado a cuspir para o chão… Em tempos, a minha litania contava com mais alguns títulos, mas esqueci-os.» (pág. 508).
Tem havido diversas críticas à série, como o ser uma visão romântica da Índia típica dos britânicos ou todas as personagens falarem inglês – mas ouve-se de facto urdu e hindi, além de que já o livro, na verdade, foi escrito em inglês. É, além disso, um dos romances mais extensos da língua inglesa. Acusa-se ainda Mira Nair de não fazer um bom filme desde o Casamento debaixo de Chuva ou O Bom Nome (2006), igualmente adaptado de um livro, de Jhumpa Lahiri, ou A Feira das Vaidades (2004), com Reese Witherspoon, e que eu particularmente adoro, justamente pela forma como cruzava o classicismo britânico, frio e formal, com o exotismo indiano. Por falar nisso, a banda sonora de Alex Heffes e Anoushka Shankar traz-nos o usual som do sitar. Pode não ser o retrato pós-colonial da Índia que se desejaria, mas não deixa de ser entretenimento deslumbrante e culturalmente rico, ainda que, como sempre, a série não consiga fazer justiça ao livro, cuja trama é tão complexa quanto cativante. Ver artigo
Tempos Duros, de Mario Vargas Llosa, publicado pela Quetzal, é um thriller histórico e político que se demarca bastante dos livros mais recentes deste autor, configurando um regresso aos temas dos seus livros mais importantes, apresentando episódios e singularidades da vida da América Latina.
O novo romance do escritor peruano, nascido em 1936, Prémio Nobel da Literatura em 2010, decorre na Guatemala, em 1954, e assume maioritariamente a natureza de uma reconstituição histórica, traçando o golpe militar orquestrado pelos Estados Unidos, através da CIA, que conduziu à queda do governo reformista eleito. Ao compor livremente esta recriação ficcional, com personagens que muitas vezes se fundem com figuras históricas, ainda que a narrativa assuma sobretudo um carácter documental, Vargas Llosa mostra como a verdade foi sacrificada, pelo que este romance é, tão somente, o recontar da história que já era, em si, uma ficção, uma mentira capaz de mudar o rumo de um país e de todo o continente da América Central. Tudo por uma questão de bananas.
A United Fruit, companhia que nos anos 50 estende a sua rede pelas Honduras, Guatemala, Nicarágua, El Salvador, Costa Rica, Colômbia e várias ilhas das Caraíbas, produzirá mais dólares que a maioria das empresas dos Estados Unidos e até mesmo do resto do mundo. Conhecida como a Fruteira, ou com a alcunha de «o Polvo» em toda a América Central, Gabriel García Márquez já nos dava uma ideia da sua acção determinante na América Latina numa passagem de Cem Anos de Solidão – onde se narra um massacre. E uma das ameaças à Fruteira é justamente a alegada influência que a União Soviética tem na Guatemala, cujo governo democrático estaria infiltrado por comunistas que pregam contra a propriedade privada, o pan-americanismo, o mercado livre…
Ao longo do livro, Vargas Llosa traça como os tentáculos de uma conspiração, manietada de forma por vezes bastante desajeitada por um embaixador norte-americano, apertam o cerco a Jacobo Árbenz, presidente moderado e democraticamente eleito, que será destituído sob ameaça de um golpe militar (ao jeito latino-americano), acusado de encorajar o comunismo soviético na Guatemala. Para, por fim, quando se reconhece que afinal ele não tinha sido comunista, mas tão somente vítima de uma «publicidade reivindicatória», «um homem incauto e bem-intencionado que só quis trazer o progresso, a democracia e a justiça social ao seu país» (p. 283), os Estados Unidos, incomodados com a campanha internacional desencadeada contra Washington, tentam que esta história seja rapidamente esquecida. Ver artigo
Sempre Estrangeira, de Claudia Durastanti, finalista do Prémio Strega, publicado pela Dom Quixote, com tradução de Vasco Gato, é «a história de uma educação sentimental contemporânea, desorientada pelo passado e pela consciência das diferenças físicas, das distinções sociais, da pertença a um lugar»:
«A incapacidade de fazer coisas que deveríamos saber fazer, a impossibilidade de ver, sentir, recordar ou andar não é uma exceção, antes um destino.
Todos nos tornamos deficientes, mais tarde ou mais cedo.»
A mãe, a «muda», «pobre coitada», ficou surda em consequência de uma meningite e «aprendeu a exprimir-se através da tortura» que as freiras no colégio lhe infligiam, com uma faca na língua ou a tocar em fios eléctricos, conforme também lhe ensinavam linguagem gestual. «Ao ler os lábios dos outros para decifrar o que estavam a dizer até consumir os olhos e os nervos, ao falar com a sua voz alta e carregada e com os acentos irregulares, parecia simplesmente uma imigrante cheia de erros gramaticais, uma estrangeira.»
O pai nasceu surdo por causa de um susto que a mãe apanhou e nem o ter sido tocado pelo Padre Pio o curou.
Numa narrativa que é também memória, entre Basilicata, em Itália, e Nova Iorque, a autora-narradora redefine a sua vida e, para tal, tem de começar pela infância e adolescência dos pais: «viviam a quilómetros de distância, mas tinham adotado as mesmas estratégias de dissimulação»; «ele era surdo, ela também, e a relação entre eles teria algo de mais íntimo e profundo do que o amor»; «os meus pais encontraram-se por intermédio de reverberações semelhantes às de uma floresta antes de um incêndio (…), uma vibração particular no ar, um alarme invisível a convidar à sobrevivência»; «O amor entre surdos não existe, essa é uma fantasia de ouvintes. (…) A semelhança vem antes de tudo o mais.»
A autora procura entretecer os vários fios narrativos do seu álbum de família, mesmo quando as histórias aqui cristalizadas ganhavam variantes de cada vez que eram contadas, da mesma forma que ela e o pai inventavam “mentiras majestosas” – como ter apanhado pedras da Lua ou pedaços de algodão das nuvens – enquanto parece inclusivamente ir revisitando, fisicamente, os locais por onde essas histórias se escreveram. Até porque esta narrativa, como as demais, representa as mil e uma formas que a arte tem de «resgatar um indivíduo à diferença, e a diferença à solidão».
Nascidos na diferença, os seus pais parecem encontrar no desafio às normas e convenções a sua forma de expressão, sendo cada uma destas vidas muito pouco convencional. Em contraposição, a protagonista deste livro procura «criar uma ordem com a escrita» assim como uma via para a auto-afirmação: «Quando me perguntam quem é que me ensinou a exprimir-me, entre avós imigrantes que usavam uma língua toda avariada e pais que não sabiam corrigir os meus erros de pronúncia, apercebo-me de que a primeira língua que falei foi a da primeira pessoa que amei: o italiano de um rapazinho seis anos mais velho do que eu, melódico e isento de soluços, defendido com obstinação quando ninguém à nossa volta o falava sem uma inflexão carregada, numa região em que o uso do dialeto coincidia com a cidadania. A língua de um adolescente tomada por empréstimo dos telefilmes dobrados em italiano, ainda fresca, ingénua e doce, a voz do meu irmão, que de vez em quando ainda coincide com a minha.»
Claudia Durastanti apresentará este seu romance em Lisboa hoje, terça-feira, dia 3 de Novembro, às 19h00, em conversa com o seu tradutor. Ver artigo
Colson Whitehead venceu o Prémio Pulitzer e o National Book Award com A estrada subterrânea, e num feito incomum na história da literatura americana venceu novamente o Pulitzer com o romance Os rapazes de Nickel, agora traduzido por Hugo Gonçalves e publicado pela Alfaguara.
O autor traça um retrato da América do séc. XIX, em A estrada subterrânea (2017), em que a história individual de Cora representa a condição do escravo e da luta pela liberdade e dignidade humanas. Uma narrativa baseada em factos reais que era uma resposta necessária aos tempos incertos que ainda se vivem na América e no mundo. Os rapazes de Nickel é, uma vez mais, uma narrativa sobre o racismo, igualmente baseada num caso real – um reformatório da Flórida que destruiu a vida de milhares de jovens.
Elwood Curtis, deixado pelos pais aos 6 anos, é criado por Harriet, uma avó extremamente protectora, que amaldiçoa o dia em que comprou um disco com discursos de Martin Luther King pois nele havia demasiadas ideias e o que esta avó, que tem o medo como combustível, menos quer é que o seu neto, um rapaz negro a viver no Sul dos Estados Unidos, na década de 60, conheça o destino que parece irremediavelmente fadado a atingir a sua família (e todos os negros): o pai de Harriet morreu na cadeia, injustamente acusado por uma branca; o marido de Harriet é encontrado enforcado na cela onde aguardava audiência, tendo sido preso por tentar defender um empregado negro numa escaramuça provocada por brancos.
Elwood Curtis demarca-se dos demais jovens de Tallahassee que se metem permanentemente em sarilhos: é educado, trabalhador, lê como quem recita. E num sítio onde são inclusivamente poucos os rapazes brancos que pensam ir para a universidade, Elwood tem a oportunidade de frequentar um curso especial para os melhores alunos de liceu – como prenúncio de um promissor futuro numa universidade. Não fosse um golpe do destino – que atinge o leitor como um murro no estômago – tolher-lhe todos os planos e conduzi-lo para o reformatório Nickel, uma instituição que à primeira vista parece a escola perfeita:
«Nickel não devia ser assim tão má. Esperava muros de pedra, bem altos, e arame farpado, mas não havia muros. O campus estava meticulosamente cuidado, uma fartura exuberante de verde e edifícios de tijolo vermelho, com dois e três andares. Os cedros e as faias, altos e antigos, desenhavam sombras. Era a propriedade mais bonita que Elwood alguma vez vira – uma escola a sério, e boa, não o reformatório ameaçador que ele imaginara nas últimas semanas.» (p. 57)
Mas mais uma vez a ingenuidade desarmante e a bondade intrínseca de Elwood será posta à prova e rapidamente descobre que aquela fachada esconde uma câmara de horrores.
Colson Whitehead, nascido em 1969 em Nova Iorque, tem leccionado em instituições como a Universidade de Columbia e Princeton e foi distinguido com as bolsas Guggenheim e MacArthur. Segundo o júri do Pulitzer, este livro é uma «poderosa história sobre a perseverança, dignidade e redenção», «uma exploração avassaladora e devastadora dos abusos». Ver artigo
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