«O meu nome é Karim Amir, e sou inglês de nascimento e criação, ou quase. É frequente considerarem-me um tipo de inglês singular, estranho, uma espécie de raça nova, uma vez que sou fruto de duas velhas civilizações.» (p.9)
Assim inicia este retrato irreverente de um “indiano” nascido na Inglaterra e da sua entrada na vida adulta, numa Londres diversa étnica e culturalmente, de frenesim musical, de liberdade sexual, de devaneio artístico, onde o leitor acredita mesmo que Karim frequenta a mesma escola onde David Bowie estudou.
Karim tem dezassete anos e é um adolescente dos subúrbios do Sul de Londres na década de 1970. Além da sua própria ambivalência sexual, tão depressa atraído por Charles como envolvido com Jamila ou Eleanor, Karim, duplamente à margem, como suburbano e como fruto do casamento de um imigrante com uma inglesa, está desesperado por se mudar para o centro de Londres para poder pulsar nas suas veias e viver a vida no único meio que o cativa, o da arte do palco.
Um livro que conta uma vida de excessos, de descoberta e ascensão de classes, com uma linguagem cómica e enfeitiçante. Mas onde se sente também como o autor procura desfazer os próprios mitos criados em torno dos imigrantes, como acontece tão exemplarmente na personagem do pai que dá nome ao livro.
Hanif Kureishi, é ele próprio filho de pai paquistanês e mãe inglesa. Nasceu em Londres, cenário dos seus romances, contos, ensaios, peças de teatro e argumentos para cinema, como A Minha Bela Lavandaria, filme de Stephen Frears de 1985, filme em que um paquistanês beija um skinhead branco.
A obra do autor tem sido publicada na íntegra pela Relógio d’Água. Ver artigo
Constituído por onze capítulos, cada um subdividido em maneiras diferentes de melhorar a escrita nas mais variadas situações («Doze maneiras de evitar que o leitor o odeie» ou «Dez maneiras de melhorar o seu estilo»), inclusivamente quando não estamos a escrever.
Publicado pela Guerra & Paz, este livro «ensina o meu caro leitor a escrever melhores notas de resgate» e também «melhores cartas de amor, histórias, artigos de revista, cartas ao editor, propostas de negócio, sermões, poemas, romances, pedidos de liberdade condicional, boletins da paróquia, canções, memorandos, ensaios, trabalhos escolares, teses, grafitis, ameaças de morte, anúncios e listas de compras».
Fica claro logo desde as primeiras linhas da introdução o espírito irreverente do autor que torna aprazível e divertida uma leitura que poderia ser meramente técnica, enquanto se revê cuidados a ter com gramática, pontuação, estilo, ortografia, revisão, etc..
Com tradução de Marco Neves, autor de A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa, houve oncuidado em adaptar à língua portuguesa os cuidados a ter sobre gramática ou referências bibliográficas a consultar, ainda que possa parecer estranho a certa altura termos Gary Provost a citar Camões ou a remeter o leitor para a Gramática de Celso Cunha e Lindley Cintra.
O escritor e professor norte-americano Gary Provost (1944-1995) percorreu a América à boleia durante um ano, terminado o secundário, e dedicou-se em seguida à ficção durante os próximos dez anos, para depois passar a escrever não-ficção, trabalhar como jornalista freelancer, e nos anos 80 e 90 dedicou-se ao ensino da arte da escrita, tendo publicado este livro em 1985.
Para Gary Provost, a escrita não é pintura, mas sim música, por isso nada como ganhar senso comum e seguir da melhor forma os conselhos deste livro para depois fazer soar as frases de modo a sentir a sua musicalidade. Ver artigo
Daphne du Maurier nasceu em Londres, em 1907, no seio de uma família de artistas e intelectuais. Filha de actores e neta de escritor, revelou-se desde tenra idade, não só uma leitora voraz, mas também possuidora de uma imaginação fértil. Começou a escrever artigos e contos em 1928 e publicou o seu primeiro romance, The Loving Spirit, em 1931. Foi no entanto Rebecca, o seu quinto romance, que a popularizou. Ao longo da sua carreira, continuou a escrever contos e escreveu igualmente peças e biografias.
Rebecca foi em boa hora relançado pela Editorial Presença, que publicou ainda outras obras da autora, como A Pousada da Jamaica e A Minha Prima Rachel.
A Minha Prima Rachel inicia quando Philip se recorda com nitidez de um momento da sua infância em que viu um homem de grilhetas enforcado nos Quatro Caminhos.
Philip sabe bem que «não se pode voltar atrás» mas é a partir dessa estranha lembrança que nos conduz pela história de como perdeu o seu pai adoptivo e encontrou a sua prima Rachel.
«Na vida não se pode voltar atrás. Não há recuo. Não há segunda oportunidade. Aqui sentado, vivo e na minha própria casa, é-me tão impossível retirar uma palavra proferida ou desfazer um ato realizado como o era ao pobre Tom Jenkyn a oscilar nas suas grilhetas.» (p. 13)
Passaram-se dezoito anos, e entretanto Philip tem vinte e cinco, mas é a partir da recordação nítida desse homem suspenso, com o rosto e o corpo cobertos de alcatrão, que se espoletam as memórias que constroem o fio da narrativa.
«O rapaz que estava debaixo da janela dela na véspera do seu aniversário, o rapaz que permaneceu à entrada da porta do quarto dela na noite da sua chegada, desapareceu, tal como desapareceu a criança que atirou uma pedra a um homem morto num patíbulo para criar uma falsa coragem.» (p. 13)
Quase como se um condenado à morte por ter morto a mulher estivesse na mesma condição humana de um desgraçado que se apaixona pela mulher errada. Como lhe vaticina o seu padrinho: «Há mulheres, Philip, boas mulheres, muito possivelmente, que, sem que a culpa seja sua, atraem a fatalidade. Tudo o que tocam se transforma em tragédia. Não sei porque te digo isto, mas sinto que devo dizê-lo» (p. 13).
Philip é criado pelo seu primo Ambrose, após a morte dos seus pais quando ele tinha cerca de dezoito meses, altura em que se muda para o solar do primo onde é criado inicialmente por uma ama que acaba por ser despedida quando esta dá umas palmadas no rabo de Philip, então com três anos, altura em que Ambrose toma definitivamente a seu cargo a educação e a criação da criança, começando por lhe ensinar o alfabeto usando a letra inicial de todos os palavrões.
Philip considera que ele era como o seu primo Ambrose: «dois sonhadores, pouco práticos, reservados, cheios de grandes teorias nunca postas à prova, e, como todos os sonhadores, adormecidos para o mundo real» (p. 12). Ver artigo
David Machado nasceu em Lisboa em 1978, e a sua obra tem sido publicada pela Dom Quixote.
O seu Índice Médio da Felicidade foi adaptado ao grande ecrã, com realização de Joaquim Leitão e participação do autor na elaboração do guião. O livro foi vencedor do Prémio da União Europeia para a Literatura, prémio aliás que abriu portas ao autor, pois levou a vendas de direitos para uma dezena de países, tradução dos seus livros anteriores, a premiação da edição italiana e a participação de David Machado em vários festivais e feiras do livro.
Um livro que levou cerca de três anos a ser escrito, conforme se sente na tessitura narrativa, mais burilada, e a procura de uma originalidade no estilo e na forma como tenta cruzar três narrativas diferentes, sem propriamente simplificar a história, cingindo-as a um enredo único. Na segunda parte do livro existe mesmo um jogo literário mais evidenciado, na forma como o autor inova e procura reflectir sobre o processo da própria escrita. Processo esse que «Custa tanto» conforme as suas personagens referem.
O autor inova ainda, particularmente na primeira parte, e naquela que é a narrativa mais forte e que mais marcas deixará certamente no leitor, ao adoptar uma voz narrativa feminina, pois as suas personagens anteriores são maioritariamente masculinas. Apesar de inicialmente a voz da personagem de Júlia nos parecer encaminhar para uma história de violência, pelo modo como deixa perceber, gradualmente e sempre de forma ambígua, como esta adolescente terá sido vítima de maus tratos ou de abuso há cerca de um ano, sem nunca se deter propriamente nesse episódio, para que o leitor o capte e veja na sua totalidade, esta jovem irá revelar como se convive com uma dor profunda, que se tenta camuflar na esperança que adormeça. A história desta adolescente de dezanove anos, emancipada, magoada, que sente repúdio de qualquer contacto físico ao mesmo tempo que, paradoxalmente, sente as lágrimas virem-lhe aos olhos assim que lhe tocam, é um desvelar de como se vive o trauma e a dor, a memória de um acto profundamente doloroso, físico ou emocional, que deixa marcas duradouras e impressões indeléveis, debaixo da pele. Pode até parecer um cliché a forma como uma das constantes da vida de Júlia, mesmo dentro do casulo do seu quarto, ser o barulho constante das discussões acesas do casal vizinho, como um ruído de fundo à história de Júlia, conforme lida com a depressão e o trauma do que lhe aconteceu, e da forma como isso a impele a querer salvar uma menina de cerca de cinco anos, a filha do casal do lado, cujo som de desamor atravessa as paredes e atinge o âmago da dor que Júlia procura disfarçar. Ver artigo
Docente de História na Sciences Po, em Paris, onde tem sido responsável por vários cursos, nomeadamente História da Europa e História de Portugal no século XX, doutorado com uma tese sobre o salazarismo e especialista em História Contemporânea de Portugal, Yves Léonard é publicado entre nós pela Objectiva.
O livro conta ainda com um prefácio de Jorge Sampaio, presidente da República Portuguesa entre 1996 e 2006.
Em cerca de 300 páginas, podemos percorrer o século XX desde a queda da monarquia até à actualidade, pós-Troika. Como escreve o autor: «Foi um século XX bastante longo na medida em que não começou em 1900, nem sequer em 1910 com o derrube da monarquia e a proclamação da República (…) mas sim com a crise provocada pelo Ultimato britânico em Janeiro de 1890.» (p. 21)
Desde a queda da monarquia até à actualidade, o autor apresenta o país numa «síntese em dez fotogramas do Portugal moderno, nascido com a proclamação da República», segundo o prefácio, através do «cruzamento de fontes diversificadas», como a antropologia, a política, a economia, a análise social, a cultura, e, em particular, a literatura.
Yves Léonard ressalva logo na «Introdução» do livro que, apesar dos lugares comuns como as proezas de Cristiano Ronaldo, os êxitos da Selecção Nacional, os nomes sonantes da literatura, mesmo que ainda apenas contemos com um único Nobel, o Portugal contemporâneo continua por descobrir enquanto «verdadeiro objecto de estudos e investigações, autónomo e de uma grande fecundidade, palco de uma história singular, a um nível semelhante ao da “idade de ouro” dos Descobrimentos» (p. 18).
O trabalho é extenso e complexo, mas apresentado de forma acessível, provavelmente tal como foi apresentado nos cursos assegurados pelo autor, e lê-se com prazer este documento histórico como se fosse uma epopeia. Numa dezena de capítulos organizados, naturalmente, por ordem cronológica, passam-se em revista, os momentos cruciais da nossa história no último século: «Quatro regimes políticos diferentes, quatro Constituições, quatro ditaduras», entre elas a mais longa da Europa Ocidental, a do Estado Novo salazarista, dois chefes de estados assassinados, uma «descolonização tardia» e uma «emigração endémica» (p. 21). Ver artigo
Ponta Gea é o mais recente livro de João Paulo Borges Coelho e provavelmente o mais corajoso, assumindo não somente uma narrativa feita na primeira pessoa como também uma perspectiva em que os acontecimentos narrados são filtrados a partir do espaço-memória de infância. O autor, muitas vezes enquanto criança, rememora os lugares que persistem, muitas vezes, apenas na memória e na imaginação de uma cidade inventada.
Não posso deixar de assumir eu próprio esta recensão como um levantamento topográfico feito na primeira pessoa, uma vez que quando a Caminho publicou esta obra e gentilmente ma enviou como oferta, estava longe de imaginar que uns meses depois eu próprio estaria a viver ao lado da Ponta Gea, na cidade da Beira, local que ainda recentemente foi notícia, pelas piores razões.
O título do livro tem origem no nome de um bairro da cidade da Beira, «com centro nas coordenadas 19º50’47.14”S e 34º50’25.91’E.
Composto por quinze textos que se interseccionam, e que podem ser lidos numa sequência cronológica, ou isoladamente, como se se tratassem de crónicas, as memórias do autor correm aqui o risco de ressurgir ficcionadas. Escreve o autor no «Preâmbulo»:
«A infância não é um lugar, nem tão-pouco um tempo. O que é ela, afinal?
Se tomássemos a imagem das ilhas, estaríamos neste livro face a um arquipélago de episódios em que o núcleo de cada um me fosse imposto com insistente nitidez, mas em que as margens, mais incertas, exigissem um esforço contrário ao de evocar – o esforço da partida.» (p. 11)
Para o autor, pelo menos assim se refere no livro, Ponta Gea não se trata de um livro de memórias da infância, mas de um exercício de ficção, de como o mundo era visto a partir dessa idade em que, como escreveu Proust, «se acredita que criamos aquilo que nomeamos». Na linha de autores que João Paulo Borges Coelho admira, como Thomas Bernhard ou W. G. Sebald, o deambular parece associado ao rememorar, e o recontar associado a um relembrar que se reinventa, mesmo que o autor nos apresente recortes de jornais e fotografias que procuram cristalizar essa memória fidedigna.
«Se evocar for trazer para a idade adulta, então talvez a infância seja, no seu sentido mais puro, aquilo de misterioso que se nos escapa por entre os dedos quando evocamos, a viagem que nunca chegou a ser feita e por isso resiste incólume à passagem do tempo. A potência daquilo que imaginamos poder ainda vir a ser.» (p. 12) Ver artigo
David Machado nasceu em Lisboa em 1978 e a sua obra tem sido publicada pela Dom Quixote.
O seu Índice Médio da Felicidade é uma história já apresentada por mim no Cultura.Sul, foi adaptado ao grande ecrã e vencedor do Prémio da União Europeia para a Literatura. Ver artigo
A Minha Prima Rachel inicia quando Philip se recorda com nitidez de um momento da sua infância em que viu um homem de grilhetas enforcado nos Quatro Caminhos.
Philip sabe bem que «não se pode voltar atrás» mas é a partir dessa estranha lembrança que nos conduz pela história de como perdeu o seu pai adoptivo e encontrou a sua prima Rachel. Ver artigo
Reler um romance como Rebecca após 10 anos tem o condão de fazer ressurgir lembranças bem vívidas, como a sinistra Mrs. Danvers, a ingénua protagonista sem nome, e o emblemático final em que a sugestão paira no ar como um clarão distante, ao mesmo tempo que se faz a leitura de todo um novo livro que desconhecíamos por completo e que merece justamente ser revisitado, como quem regressa a Manderley.
Os pressentimentos e maus presságios conferem um ambiente fantástico ao romance, que se afasta do melodrama romântico para se aproximar mais do universo policial e misterioso, em que a eterna inominada e jovem heroína, Mrs. de Winter, segunda esposa de Maximilian de Winter e sucessora de Rebecca, tenta juntar as peças desse enigma chamado Rebecca para poder compreender o comportamento do seu enigmático e por vezes irascível marido, o ódio da governanta que se move como uma sombra a dominar a casa, ao mesmo tempo que tenta lutar contra o fantasma omnipresente da sua antecessora, senhora da mansão de Manderley, que parece capaz de devorar tudo e todos, inclusivamente a sua própria identidade.
Rebecca, de Daphne Du Maurier
Originalmente publicado em 1938, conheceu inúmeras reedições e Alfred Hitchcock adaptou-o ao cinema em 1940, vencendo dois Óscares. Foi em boa hora relançado pela Editorial Presença, que aliás já publicou outras obras da autora, também adaptadas ao pequeno e grande ecrã, como A Pousada da Jamaica e A Minha Prima Rachel. Ver artigo
Rodrigo Guedes de Carvalho, nascido em 1963 no Porto, é uma presença assídua na vida de muitos portugueses, como apresentador do telejornal das 20 h na SIC, mas é bom lembrar que já escrevia antes de se tornar conhecido como pivô e nos entrar pela casa dentro. Escreveu ainda argumentos cinematográficos, como Coisa Ruim, filme realizado pelo irmão Tiago Guedes, e um guião para teatro. Pertenceu à direcção de informação da SIC entre 2007 e 2016, interregno em que suspendeu a sua paixão pela escrita. Dez anos depois do seu anterior romance, Canário, Rodrigo Guedes de Carvalho regressa à ficção, com O Pianista de Hotel, o seu quinto romance, publicado em Maio de 2017 pela Dom Qixote, e que soma já várias edições.
Apesar da frase colocada em epígrafe do livro, «Boy meets girl», apresentada como «Ideia de Hitchcok para um filme», nestas páginas não se toca nenhuma melodia de amor nem nenhum ambiente de fundo como música de hotel ou de elevador. A melancolia é aliás o tom dominante.
Vivem ambos na mesma cidade, o que começa a aproximar-se mais das comédias românticas de Woody Allen pois imagina o leitor uma série de peripécias e encontros que os irão aproximar. Mas o narrador vai apenas e sucessivamente apontando as várias ocasiões em que se frustrou um encontro entre Maria Luísa e Luís Gustavo, os dois protagonistas centrais da história, que aliás partilham um nome próprio comum: «Luís Gustavo ainda não sabe, mas irão jantar no restaurante onde Maria Luísa trabalha.» (p. 183). Mas nem essa afinidade do nome os salva dos recorrentes desencontros. Os capítulos são normalmente alternados, centrados em torno de cada uma destas personagens, e os episódios são muitas vezes apresentados na sua simultaneidade, como se pode ler logo no segundo capítulo: «Sensivelmente à mesma hora, num outro ponto da cidade, mas afinal tão parecido.» (p. 25). Esta técnica narrativa aproxima aliás a prosa do autor da escrita de argumento.
Maria Luísa e Luís Gustavo partilham também a condição de orfandade, pois se ele foi abandonado pela mãe, logo após o parto, ela perdeu a mãe quando tinha dezasseis anos. Apesar da superlativa beleza de Maria Luísa, que o narrador por pudor e respeito se esquiva a descrever com exactidão para não a surpreendermos à saída do duche, invejada pela mãe que se sente traída quando o seu parceiro tenta violar a filha, embora possamos presenciar em vários momentos como outros se viram para olhar o corpo magnífico de Maria Luísa, apesar de até uma médica colocar em risco a sua carreira para pode chegar a esta jovem empregada de mesa num restaurante, apesar do refrão que perpassa no romance «O nosso corpo chega sempre aos outros antes de nós», a solidão de Maria Luísa permanece e nada a parece resgatar da monotonia. Maria Luísa vê-se mesmo incapacitada de amar a cínica tia, o único familiar que lhe resta e que a nomeará sua herdeira. Podemos remeter-nos, uma vez mais, para as frases em epígrafe do romance e que dão o tom da narrativa, neste caso um excerto da letra da música «Eleanor Rigby» dos The Beatles: «Ah, look at all the lonely people».
À solidão junta-se um sentimento de frustração ou de insatisfação pois todas as personagens se sentem aquém das suas possibilidades e desejos: Maria Luísa não pôde prosseguir os estudos, Luís Gustavo queria ser médico mas ficou-se pela profissão de enfermeiro, o cirurgião Paulo Gouveia sente-se cansado da sua carreira, a mãe de Maria Luísa, «segunda secretária de um subsecretário» aspirava a mais mesmo que para isso usasse o corpo (ao contrário da filha, que nem se apercebe do corpo que tem), Saul Samuel que passou a vida como bailarino numa discoteca gay até que se cansa, mas sem saber o que fazer depois. A morte, que aparece transfigurada ou personificada logo no primeiro capítulo, quando Maria Luísa tem a visão do fantasma da mãe, é o desfecho que precipita uma série de desencontros afectivos, como se as personagens apenas se dispusessem a querer tocar os seus entes queridos quando confrontadas com a inevitável realidade da sua ausência, o que leva, por exemplo, Pedro Gouveia a transferir o seu amor pela filha para o enfermeiro Luís Gustavo. Ou o acto falhado do amor que Saul Samuel alimenta por Rui Begonha, que ao deixar desabrochar a sua homossexualidade nos seus breves encontros com Saul Samuel acaba por depois se fixar num outro homem, apesar de ser Saul Samuel a vítima da fúria física dos filhos, quando descobrem da homossexualidade do pai. Ou a mãe de Luís Gustavo que carrega o peso da culpa de ter abandonado o filho mas nem sabe o quão próximos estão nem o procura.
Existem duas descrições de actos ou (des)encontros sexuais, mas estes são tão bruscos e violentos, que parecem apenas corroborar a solidão como condição humana inviolável e o sexo como choque de corpos e vontades onde há pouco espaço para uma comunhão. A cena em que Rui Begonha tenta sexo anal com a mulher nada tem de desejo ou de paixão, pois é exclusivamente dominada pelo desespero, uma vez que ele é movido pela descoberta desconcertante de que se sente atraído por homens, enquanto ela se submete para tentar salvar o casamento. A outra cena entre Maria Luísa e Saul Samuel, dois melhores amigos, ou companheiros de jornada que tentam amenizar a solidão na companhia um do outro, acabam por se atirar um ao outro num impulso de fome de contacto físico, apesar de Maria Luísa estar perfeitamente ciente da homossexualidade de Saul Samuel.
A escrita de Rodrigo Guedes de Carvalho respira vitalidade. O autor não teme inovar e verter a sua prosa narrativa segundo uma plasticidade muito própria, onde desconstrói convenções de pontuação ou de apresentação gráfica. A linguagem no romance, muitas vezes crua e gráfica, pode chocar mas a verdade é que o autor procura retratar a realidade como ele a vê e como tantas vezes ele próprio no-la apresenta nesses estilhaços que enchem as telas dos nossos televisores. Por isso, se a linguagem muitas vezes gráfica é apenas espelho da realidade linguística, tentando aproximar-se do modo como as pessoas realmente falam, se a prosa é crua e directa, a melancolia ou pessimismo que dominam o romance podem também ser um desassombro face à realidade. O autor parece tomar posição contra o cor-de-rosa das histórias de amor e o tom delicodoce que invade as manhãs de televisão com programas genéricos que acompanham uma larga camada da população: «Vê por vezes, sobretudo em programas de televisão, que há nesta altura inúmeros especialistas em decifrar sentimentos e apontar soluções, tão seguros e confiantes que a gente se sente logo segura e confiante ao ouvi-los.» (p. 105). O narrador adopta um tom muitas vezes crítico ou até moralizador: «Imaginemos, os que de nós ainda conseguirem esse prodígio de memória, o que é crescer, num período que é só incertezas, com a certeza de que o mundo já nos tirou a fotografia.» (p. 38).
Voltamos às epígrafes, desta vez uma citação de Shakespeare: «O homem que não é sensível à música,/Que não se comove com a harmonia dos doces sons,/Nasceu para as traições, os ardis, os roubos;/Os movimentos do seu espírito são surdos como a noite».
Pode ler-se a certa altura que a televisão «faz companhia às pessoas que vivem sozinhas» (p. 416). Mas só a música parece ter o condão de matar a solidão das pessoas, como acontece com o pianista de hotel ou o artista de rua que faz Maria Luísa parar e escutar. Porque «a música, a arte, é a única coisa do mundo que pode ser bela sendo triste.» (p. 424). E apesar de o ruído e o som, próprios de uma grande cidade, estarem sempre presentes desde as primeiras linhas, é a música que surge como bálsamo, apesar de muitas vezes mal darmos por ela ou pelos artistas que no-la trazem, o que leva, por exemplo, a que Luís Gustavo e o médico Pedro Gouveia sejam tocados pelo pianista de hotel, e saberem ler os seus estados de alma pelas músicas que toca, enquanto os outros clientes do bar do hotel parecem nem dar por ele. A música assemelha-se assim ao ritmo da nossa pulsação, ao tempo da nossa respiração, como algo que nos revela continuarmos vivos: «a sensação de conforto, digam o que disserem, está muito dependente do bater do coração» (p. 110). E mesmo que esta seja uma “anti-história de amor”, apesar de se poder ler algures que «os escritores não têm de sentir nada, ou querer significar nada, têm é de escrever» (p. 391), Rodrigo Guedes de Carvalho deixa-nos uma intrigante e inquietante narrativa, mesmo que no «último capítulo», e note-se o fatalismo, se confirme o permanente desencontro do não-par amoroso, uma narrativa híbrida como a melódica onde o pungente convive com o belo, e onde tal como o teclado do piano ou a melódica que requer sopro, o instrumento nunca toca sozinho, como uma obra que só ganha som quando lida. Mas se um artista de rua quando toca, toca para si mesmo, será que um escritor quando escreve, escreve apenas para si? Ou pretende tocar outros, mesmo os mais desatentos e os mais embrutecidos? Ver artigo
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