Publicado na Colóquio Letras, n.º 190, Set. 2015, p. 229-231.

O Meu Irmão, de Afonso Reis Cabral, é o mais recente vencedor do Prémio Leya, o mais importante prémio literário nacional, no valor de cem mil euros, atribuído ao melhor romance original escrito em língua portuguesa.
O Prémio Leya 2014 distinguiu-se, este ano, em dois aspetos: não só premiou o mais jovem autor de sempre na história deste galardão, como também antecipou a publicação do livro premiado. Tendo o vencedor sido anunciado em 17 de Outubro, o livro chegou às livrarias no dia 21 de Novembro, ao contrário do que antes acontecia, em que o romance vencedor era publicado apenas no primeiro trimestre do ano seguinte à sua atribuição.
O início do romance parece delimitar bem a ação espacialmente: «Isto vai passar-se no Tojal. Ora o Tojal é perto de Arouca e longe de tudo o resto.» (p. 9), da mesma forma que acusa desde logo uma nota oralizante que persistirá ao longo da narrativa. Todavia esta precisão da coordenada espacial pode revelar-se enganadora. O local da ação não se pode considerar atópico mas é de tal modo isolado e primitivo que parece servir apenas o objetivo de confinar o protagonista, numa espécie de reclusão voluntária que melhor servirá à introspeção que decorre ao longo dos próximos capítulos.
A ação decorre assim em dois planos paralelos, em capítulos alternados não numerados, onde por um lado temos a ação circunscrita ao Tojal que decorre no presente e, por outro lado, discorre a narração progressiva da vida do narrador e do seu irmão, desde a infância, até chegarmos exatamente ao momento com que se inicia o romance, de forma a compreender o mistério que motivou aquela viagem de regresso à casa de família. O livro configura-se assim numa espécie de viagem de retorno que permitirá, por fim, compreender a decisão do narrador se ter isolado com o irmão, numa tentativa desesperada de reaver o seu amor, durante uma semana no Tojal. Esta casa semiabandonada, perdida numa pequena aldeia de xisto, perto do rio Paiva, onde os dois irmãos passavam as férias com os pais, em crianças, e que agora possui apenas três habitantes, dado o isolamento do local, deverá assim servir de último refúgio ao reparo da relação entre o narrador e o seu irmão Miguel, se bem que o confinamento também acarrete perigos ou revelações irresolúveis: «Agora penso que fugir do mundo foi um erro, porque nos colocámos no centro dele.» (p. 53). No final do romance, algo emblemático, quando os dois irmãos imersos no nevoeiro se seguram de forma a encontrar o caminho de volta, confirma-se a sensação de se fechar um ciclo – é inclusivamente curioso que o próprio romance se estenda ao longo de 365 páginas.
Apenas no final do segundo capítulo o leitor percebe a especial condição de Miguel, apresentada num retrato próximo do grotesco: «Depois de entrar segurando a minha mão, olha para mim e abre um sorriso nos olhos meia-lua, entre constrangido e alegre. Range os dentes de felicidade ou susto ou não sei o quê./Senta-se no sofá levantando o pó. A barriga enrola-se em dois altos encostados um ao outro. Os dedos simulam um estalido quase imperceptível; repletos de calos, têm o mesmo comprimento. As orelhas diminutas sobressaem no cabelo curto. A camisola justa ao pescoço e as mangas reviradas. Os olhos denunciam o aspecto estrangeiro. Não se consegue controlar, mexe-se com ansiedade./Apesar de parecer uma criança envergonhada de dez anos a mexer os dedos e a fazer salamaleques, é bem o meu irmão, na casa dos quarenta, um pouco para o gordo e, claro, mongolóide.» (p. 20).
E aqui reside a maestria revelada pelo autor no tratamento de um tema tão delicado e sensível, se bem que a grande originalidade da obra parta da forma como a questão da condição de Miguel, com o síndroma de Down ou trissomia do cromossoma 21, permitirá, por contraste, a prospeção dos meandros mais obscuros da natureza humana, isto é, da natureza do irmão de Miguel, o narrador sem nome. Apesar de o título do livro se justificar pela intenção do narrador inominado de fazer uma «confissão em forma de livro» (p. 98) acerca do seu irmão, a narrativa configura-se como um relato na primeira pessoa em que expõe a sua própria natureza e anseios. O próprio facto de o narrador parecer estar dividido e em profunda crise interior é reforçado pelo subtexto presente ao longo da narrativa, em que parágrafos curtos, graficamente distintos por um tamanho de letra mais pequeno, parecem constituir um discurso interior livre de autocensura, em que o narrador faz inclusivamente observações em que se põe a si mesmo a nu.
Do narrador sabemos que é um homem com apenas um ano de diferença do irmão, com pouco menos de cinquenta anos de idade, professor universitário da área da literatura, especialista no verbete, um homem desfasado da realidade, solitário, em suma, uma espécie de misantropo. O «senhor doutor» narrador, como é tratado pelas pessoas da terra, e apesar do seu prestígio entre o meio académico, é tão deficiente como o irmão, na sua incapacidade de se ligar emocionalmente a outras pessoas, e, talvez por isso mesmo, insista em tornar-se o seu tutor legal, investindo todo o seu amor (como uma salvação) no seu irmão Miguel, numa relação que se afigura quase obsessiva e doentia.
Não será por acaso que a intriga se conclua no Tojal, lugarejo isolado que deveria servir para melhor encontrar uma comunhão com o outro, uma terra que, se fizer jus ao nome, simboliza os perigos e espinhos desta história de amor fraterno contada no masculino. Este ambiente rural isolado e quase arcaico, que se intenta representar na própria capa do romance, parece convir a uma reescritura do mito de Caim e Abel, como se pode pressentir na epígrafe do romance: «Raça de Abel, dorme, come e bebe,/Deus sorri complacentemente.» – versos retirados de um poema de As Flores do Mal, de Baudelaire.
«Eu nascera inteligente e perfeito, ele nascera inimputável e incompleto. Sendo irmãos, não podíamos ter nascido em lados tão diferentes da vida e, no entanto, um de nós conquistara o centro de vida e outro não. O Miguel abdicara de todos os dons antes de nascer e por isso conquistara o paraíso na terra e Deus guiava-o pela mão, aceitando o que ele oferecia. Crescera anjo ferido, na expressão do nosso pai. E eu acrescento: crescera anjo ferido e não sabia disso. Bastava-lhe existir para existir bem, em paz.» (p. 172).
Se Miguel, conforme o próprio nome de anjo indica, representa a bondade e a pureza, capaz de despertar simpatia entre as pessoas à sua volta – «Porque merece ele, mais do que eu, um aceno de olá e simpatia? Porquê a afeição imediata dos outros? (p. 153) -, mas centrando todo o seu amor em Luciana, uma «apanhadita do cérebro» que frequenta a mesma instituição que ele, já o seu irmão, esse narrador sem nome, representa o seu oposto, um homem invejoso, capaz de ser cruel, dominador, e revelar até, por vezes, algum comportamento sádico sobre o irmão, mas sempre incapaz de fazer que Miguel o ame como ama Luciana. Note-se quando ocorre finalmente o encontro entre Luciana e o narrador, confronto esse que terá aliás um desfecho trágico: «Era ainda mais feia do que imaginava. (…)/Não lhe dirigi a palavra. Tal como ele não me incluía no seu mundo por causa dela, também eu não a incluía no meu mundo por causa dele.» (p. 300).
A terceira personagem masculina que se demarca nesta narrativa, o filho do casal de habitantes do Tojal, parece revelar essa mesma natureza maligna. Quim (corruptela de Caim?) padece também de uma limitação, embora física, e o único prazer que parece retirar da sua existência é castigar os pais, culpando-os inclusivamente pela sua deficiência na perna. O narrador é permanentemente repelido pela personagem de Quim, seja porque este configura um jogo de espelhos e revela o que há de pior em si, seja porque ainda há uma esperança de salvação e remissão através do amor que ele demonstra para com o seu irmão Miguel: «Tudo porque o Quim é aquilo que há de pior no ser humano: sendo igual a mim, não é meu irmão. Por isso não percebo as pequenas perversões e as amarguras. Ou melhor, percebo mas não sinto empatia e julgo-as como se lhes faltasse contexto./ (…) Se de facto fosse meu irmão, talvez o percebesse e tolerasse.» (p.180).
Este romance trata assim da questão do mal e da natureza humana, da bondade e dos laços de sangue que são muitas vezes um passaporte senão mesmo a única garantia de encontrar amor no mundo, trata da luta de viver cada dia mais em contraste com outros que vivem felizes na sua inocente ignorância.
As críticas dividem-se mas a obra revela inegavelmente maturidade, com um estilo talvez excessivo em alguns momentos, mas com uma sólida arquitetura narrativa, tratando subtilmente temas delicados que acusam profundidade crítica, onde não deixam de pontuar frases que revelam um trabalho de linguagem bem conseguido: «As montanhas, como deuses, bebem água directamente das nuvens. E molham-se como deuses. Mas nada interessa, ainda que à nossa volta as nuvens entreguem um abraço ao cume dos montes.» (p. 9).

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.