Lisboa, do escritor açoriano João de Melo, e um dos meus autores predilectos, é o quarto volume a integrar a Coleção Portugal. Ver artigo
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Lisboa, de João de Melo
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Setúbal, de Bruno Vieira Amaral
Setúbal, de Bruno Vieira Amaral, é o Livro n.º 3 da Coleção Portugal. O autor confirma-se aqui como dono de uma grande voz, que consegue com destreza unir o ensaio ao documento histórico, a prosa lírica à história. Sendo sabido que Bruno Vieira Amaral escreve por excelência sobre os territórios labirínticos e periféricos da margem sul, aqui desce um pouco mais, conduzindo-nos à “beleza agreste da serra” e ao “sereníssimo mar azul que se oferece à contemplação” (p. 15), nessa descida até à antecâmara do Céu que é Setúbal. Ver artigo
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Cascais, de Rita Ferro
Cascais, de Rita Ferro, foi o segundo volume a integrar esta coleção. Este texto centra-se, uma vez mais, num protagonista, em que a prosa tenta unir a contação de uma história de vida com informação factual. António é um jovem recém-licenciado em Economia, apaixonado por Pureza, e está prestes a encontrar-se com ela num daqueles clubes exclusivos da zona. Ver artigo
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Sesimbra, de Patrícia Reis – Portugal, Coleção da Centro Atlântico
São oito os títulos que integram a Coleção Portugal, uma colecção de livros esteticamente apelativos que oferecem uma visão de conjunto do nosso país, em edições bilingues, de capa dura, com breve texto e belíssimas fotografias a cores de Libório Manuel Silva, fotógrafo de património. A edição é da Centro Atlântico, sendo que a cada volume, de capa de cor distinta, é assinado por um autor diferente, corresponde, como o título indica, um concelho – e, em dois dos títulos, uma ilha. A colecção Portugal, dos volumes 1 a 8, compõe-se assim da seguinte forma: Patrícia Reis (Sesimbra), Rita Ferro (Cascais), Bruno Vieira Amaral (Setúbal), João de Melo (Lisboa), Hugo Gonçalves (Sintra), Joel Neto (Terceira), Paulo M. Morais (São Miguel), Isabel Rio Novo (Porto). Ver artigo
“Livro de Vozes e Sombras”, o mais recente romance de João de Melo, editado pela Dom Quixote, é um dos mais importantes romances de 2020. Um livro que acredito ter sido escrito ao longo de vários anos, até pela sua arquitectura complexa. Uma prosa torrentosa, ainda barroca e hiperrealista, mas onde a linguagem sempre poética é mais depurada.
Cláudia Lourenço, jornalista, é enviada de Lisboa à ilha de São Miguel ao serviço do jornal “Quotidiano” para entrevistar um conhecido ex-operacional da Frente de Libertação dos Açores. A partir dessa narrativa condensa-se gradualmente a história da Ditadura, do fim das guerras em África, a descolonização, a diáspora portuguesa e o «retorno» a casa, quase sempre intranquilo.
Cláudia Lourenço, jornalista, é enviada de Lisboa à ilha de São Miguel ao serviço do jornal “Quotidiano” para entrevistar um conhecido ex-operacional da Frente de Libertação dos Açores. A partir dessa narrativa condensa-se gradualmente a história da Ditadura, do fim das guerras em África, a descolonização, a diáspora portuguesa e o «retorno» a casa, quase sempre intranquilo.
1 – A jornalista Cláudia Lourenço, mais confidente do que protagonista, pertence a uma nova geração pouco conhecedora da história não muito remota de Portugal. É um ajuste de contas com o passado, mas também parece constituir um final de um ciclo na sua obra para, naturalmente, abrir novo ciclo.
R – Quando olho para trás, para os livros que até hoje escrevi, nunca vejo ciclos nem outros caminhos programáticos da minha escrita. O meu passado decide-se entre boa ou má literatura. Daí ter repudiado os primeiros livros: de quando absorvia o mundo dos outros através da leitura. Só me senti “escritor” a partir de O Meu Mundo Não é Deste Reino, um romance que Você conhece muito bem. Porquê? Se descobrimos uma linguagem dentro de nós, associamos-lhe uma geografia íntima e uma possibilidade existencial para o mundo dos outros. Este de agora é um livro que se explica e justifica a si mesmo: tinha de ser escrito, só eu podia fazê-lo. Não o concebo de outra maneira. Nem faço ideia, ainda, do que irei escrever a seguir.
2 – Este é também o seu romance mais metaficcional, aliado à reflexividade da história, que cruza Açores, Portugal e África colonial. Não será por acaso que a jovem jornalista vem da metrópole, capaz de oferecer um olhar crítico externo às ilhas.
R – Concordo. Houve a preocupação de contextualizar no mesmo tempo narrativo a memória de três lugares distintos entre si, todos eles complementares em relação à “crónica” e à recuperação da memória histórica ainda recente. Açores, Lisboa e África são geografias muito próprias, ainda que tangidas pela mesma vitalidade da mudança política. O golpe de Estado e a Revolução de Lisboa abriram portas às “independências contraditórias” dos Açores e das Colónias africanas. Se me tivesse cingido ao caso da FLA, haveria a ilusão de pensar-se que tudo acontecera como por geração espontânea, não como causa e consequência do fim da Ditadura e do Processo Revolucionário. Da mesma forma que se concertam três geografias narrativas, também pretendi opor duas gerações no conhecimento desse passado ainda tão recente, porém ignorado pela nova juventude portuguesa. Aproveito para acrescentar o seguinte: este livro abre-se a todas as gerações de leitores. Só elas o podem entender e completar à sua maneira e à medida de cada uma.
3 – A escrita deste livro representa um acto de coragem, o risco de confundir a ironia com a sua opinião dos factos. Nomeadamente quando tece toda uma crítica à guerra colonial pela óptica de um branco colonizador que a defende (p. 51), ou na pessoa de Mariano, que por lá combateu, quer na de Custódio, latifundiário, explorador colonialista com características próximas do animalesco (descrito como “touro” na pág. 156). Este é um ponto de vista que se reparte entre vencedores e vencidos, uma visão crítica dicotómica a apontar a complexidade histórica da mudança: «a história mudava de uma margem para outra da razão» ( pág. 360).
R – Podemos, antes, falar de uma espécie de “jogo”. O jogo da ficção sobre as verdades históricas, em que ambas (ficção e realidade) se invocam e provocam com frequência. Mas eu pertenço a uma ideia ou escola de literatura quase sempre motivada na ousadia social e na ética do compromisso com o mundo. Gosto dos livros que suscitam diversas leituras. Não me interessa a unanimidade. Uma das coisas que mais me atrai na literatura é, como no meu caso, criar narradores. Que se contradigam, que sejam como que um inventário de ideologias opostas.
4 – Como o título indica, as vozes têm um peso imenso neste romance polifónico. O lexema vozes é recorrente na narrativa: as vozes do povo, dos Açores, etc. A perspectiva muda diversas vezes entre a primeira e a terceira personagem, temos diversas personagens que em algum momento se tornam centrais e a perspectiva da voz narrativa oscila de acordo com o ponto de vista de cada uma dessas personagens, recorrendo ao discurso indirecto livre e acedendo à sua voz interna. Temos ainda um narrador que de vez em quando fala directamente com o leitor (p. 83), ao mesmo tempo que percebemos como a entrevista de Cláudia a Mariano dará origem a um livro feito a partir das histórias deste mosaico.
R – A minha ideia era justamente acordar as vozes portuguesas que tudo viveram até ao 25 de Abril e depois, e que aos poucos foram recuando no meio de nós, a ponto de se calarem. Este livro quer provocar o clamor, trazer de volta a palavra, a dor e revolta. E a justiça, também. Refiro-me a um processo português global. Não se trata de um livro “açoriano” strictu senso, mas de uma paisagem protegida da nossa vida colectiva – em Lisboa, na África e nos Açores ao tempo em que conceberam um sonho independentista à direita de toda a política. Qualquer leitor que entre no livro entra também nesse jogo narrativo. Creio que a linguagem flui, que não se ocorre no obscurantismo nem num mero exercício de estilo. Concorda?
5 – Claro. Tanto que a própria entrevista rapidamente se torna uma conversa, uma narrativa com vida própria e cronologia desfasada, em que, como convém, a voz da jornalista se silencia. Apenas sabemos das suas questões através da voz de Mariano.
R – Quem é Mariano? Quem é a jornalista Cláudia Lourenço? Podia dizer, como Flaubert disse da sua Madame Bovary, “sou eu”. Esses os ingredientes e mistérios da ficção. Tal como eu, cada um pode ir buscar a este Livro de Vozes e Sombras a voz e a sombra da própria pessoa.
6 – Não só volta ao Rosário (p. 79), como retoma a atmosfera do seu romance sobre o Rosário. Ele representa aqui, uma vez mais, o arquipélago?
R – A povoação do Rosário pode ser, tanto neste como noutros livros que escrevi, o meu Macondo (salvo seja); ou o masculino simbólico de Achadinha, a terra açoriana em que nasci, para melhor se identificar com Portugal (nome masculino). Será sempre um lugar inserido na corrente contínua do tempo histórico. Nessa medida, já o referi como “Rozario”, “Rozário” e na sua grafia actual. A sua descrição não é muito distinta de outras aldeias açorianas. Interessa é que a sua representação seja endossada ao leitor. Não tenho nenhum sentido de posse sobre os lugares da minha ficção.
7 – Nova Roma parece ser igualmente um cenário atópico, entre a ficção e o real, ao jeito do Rosário. Ou mesmo Munakala. A África colonialista, uma África nunca nomeada (porque será?) mas que se toma por Angola (na referência aos musseques).
R – Tem razão. Aparentemente, Nova Roma não existe, mas pode intuir-se sob outros nomes: como a “Nova Lisboa” de Angola, por exemplo. Por outro lado, talvez que Munakala seja o eco perdido de Calambata, o aldeamento em que se situava o quartel da minha guerra colonial. Assim sendo, não me escondo daquilo que escrevo; mas só em parte o revelo em termos pessoais. Nunca pretendi ser um autor autobiográfico. Sou apenas uma peça e um enigma do jogo. Acrescento: no livro nunca se menciona o nome de “Angola”; é sempre a Colónia. O propósito era identificar o colonialismo português. Mariano, sim, conta a sua paixão pela Guiné-Bissau: esse capítulo é fulcral para a caracterização ideológica dele.
8 – Além dos temas que lhe são recorrentes, e do léxico que lhe é caro, este livro parece subsumir anteriores títulos seus… quase como um mosaico do conjunto da sua obra. A começar pelo Rosário, passando pela guerra colonial, temos ainda o vinho como estimulante da verdade, os anjos, os vencidos.
R – Isso pode ser claro como água corrente; ou ser uma parte fictiva da chamada “unidade da obra”. Tenho formação em Filologia Românica, fui professor da hermenêutica textual. Podia muito bem escrever uma tese em sede própria. A quem interessaria? Nem ao próprio eu. Já estou numa fase da vida em que cada vez me interessam mais as leituras múltiplas dos outros. Fico-me com a minha pequena, quem sabe se inútil, “mitologia” literária. Só isso me pode individualizar entre outros escritores e ser eu próprio “uma voz” literária.
9 – Uma das personagens, combatente da guerra colonial, tenta purgar-se do trauma da guerra transferindo a sua memória para «cinco cadernos escritos à mão» (p. 57). Foi isso que de certa forma deu origem aos seus dois primeiros romances, depois reescritos em “Autópsia”?
R – Não, nada. A personagem Mariano deste livro oscila entre o linear pessoal e a complexidade do ser, do carácter e sobretudo da ideologia colonialista. Quanto a mim, o chamado “stress pós-traumático de guerra” levou-me a escrever tudo o que vivi em tempo de guerra em Angola. Vim de lá desiludido, cheio de mágoa e muito perturbado. Só a literatura me pôde valer. Costumo dizer, aliás, que nós, o da geração da guerra colonial, fomos para África uns e voltámos outros, diferentes de nós mesmos. Nesse sentido, foi um privilégio assumir a condição da escrita e regressar à vida verdadeira depois da guerra. Trago-a ainda na pele e nos ossos, pois como disse o poeta René Char, “há guerras que não acabam nunca”.
10 – Ângela Mendes Pinto parece ser a personagem central ou fio condutor destas histórias. Uma espécie de anjo cego da História, que nos guia pelo livro, mesmo quando parece desaparecer dele para depois regressar. É esta cega – de visão clarividente e sentidos sobreapurados – uma metáfora da necessidade de olharmos mais para dentro face ao ruído dos tempos?
R – Ora aí está! O nosso povo diz que “a verdade vem da boca dos inocentes”. Também eu quis acreditar na cegueira de Ângela como mecanismo de uma visão outra do nosso mundo. A cegueira dela é, simultaneamente, a sua inocência e a descoberta de novas formas de verdade. Lembra-se de quando, ao abandonar Nova Roma com a família de regresso a Portugal, ela jura ver milhões de mortos espalhados pela cidade? Essa é a Ângela histórica a falar. A consciência e a culpa. Fala pelo lado avesso da epopeia portuguesa. Só ela “vê” a derrocada histórica de um império que afinal nunca existiu.
11 – Para um leitor mais atento, o apelido Mendes Pinto é claramente um piscar de olhos que reforça este livro como uma antiepopeia da história portuguesa das últimas décadas, a partir da descolonização e da revolução de Abril. E tal como Fernão Mendes Pinto que procura contar o reverso da expansão portuguesa, este seu livro é dedicado à sua neta para quando ela o poder ler e compreender.
R – Nós, portugueses, precisamos de sair de “Os Lusíadas” heróicos e assumir o pícaro da nossa “Peregrinação”, dentro e ao redor de nós mesmos. É por complexo de inferioridade que nos exaltamos no heroísmo do passado; nunca por nunca nos referimos à nossa condição de piratas do mar e da terra; nem nos penitenciamos da feroz Inquisição que tanta gente torturou brutalmente e mandou arder nas suas fogueiras; nem do tráfego de escravos de África para o Brasil, aos milhões. Na minha ideia, cabe à literatura nomear a vítima e resgatá-la do esquecimento. Faço-o por sistema, de livro para livro. Também tenho uma ideologia histórica.
12 – A certa altura Mariano diz à jovem jornalista: «– É muito jovem, vive num mundo novo, não tem obrigação de o saber. O seu tempo português resulta dos fardos que nós carregámos, para que a sua geração se risse dos excessos de memória e de uma experiência que a geração seguinte julga ser coisa de taralhoucos: velhos a matutar em utopias que já não servem para nada.» (p. 52)
Partilha desta visão desencantada?
R – À minha maneira sim, nunca à de Mariano. Acontecem perdas contínuas entre nós, de geração para geração. Refiro-me ao caso português. Os nossos jovens não têm consciência dos sacrifícios que marcaram a vida dos avós e dos pais. E não fazem ideia de como Portugal subiu da miséria miserável e da exploração laboral para a libertação do 25 de Abril, para um talvez notável progresso económico, a liberdade individual e a democracia social. Conheço os novos problemas da nossa juventude, com a qual sou sempre solidário. Mas gostaria de ver nela mais cultura, mais livros, um sentido crítico e sobretudo auto-crítico do seu inconformismo.
13 – Em jeito de conclusão, qual é hoje a sua relação com os Açores? É um local onde ainda regressa por imperiosa necessidade ou sente que nunca de lá saiu?
R – Os Açores são o que sempre foram para mim. O lugar que me completa. O sítio do regresso perfeito. Devo a essa idealização a fonte de onde mana o meu desejo de criação pela literatura. O propósito foi sempre o mesmo: impor as ilhas como imaginário da Literatura Portuguesa, não como regionalismo, antes como simbologia do humano universal. Se olhar para um planisfério, verá que todo o Mundo é um arquipélago, sendo os continentes ilhas muito grandes e as outras fragmentos verdadeiros da mesma natureza. O humano não tem de ser geográfico, e sim global, ontológico, no sentido em que todo o ser apenas tem sentido quando visto à escala ou à medida do planeta Terra. Daí para baixo, é o chão, o barro, a pedra, a contingência da nossa passagem por aqui. Muito obrigado.
João de Melo
(Lisboa, 27 de Dezembro de 2020)
“[Recensão crítica a ‘Autópsia de Um Mar de Ruínas’, de João de Melo]” / Paulo Serra. In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 198, Maio 2018, p. 246-249
Esta 9.ª edição, agora revista e reescrita pelo autor (à semelhança do que aconteceu com O meu mundo não é deste reino em 2015), de Autópsia de um mar de ruínas, foi publicada em Fevereiro de 2017. A obra originalmente lançada em 1984 já era, por sua vez, uma nova versão literariamente mais cuidada de um anterior romance, A memória de ver matar e morrer, publicado em 1977. Houve ainda um trabalho de reescrita na 6.ª edição de Autópsia de um mar de ruínas, em 1997, onde são claramente visíveis diferenças na narração de algumas passagens, como acontece logo na abertura do romance. A acção é claramente comum às duas obras, as personagens e os temas são idênticos, mas o processo narrativo e a linguagem (agora mais «fluída») diferenciam, pois a nova obra requeria uma competência linguística e literária maior que apresentasse de forma justa o lado do outro. Porque a experiência colonial traz contacto com o outro, este romance incorpora originalmente e pela primeira vez a voz da alteridade, onde se procura em capítulos alternados (num total de vinte e quatro), apresentar a guerra em Calambata a partir da perspectiva portuguesa e da perspectiva do angolano, num trabalho de linguagem que procura aproximar-se do português falado pelos negros ouvido nas duas sanzalas que rodeavam o quartel, uma constituída por quem tinha relações com o inimigo e a outra com desertores dos movimentos de libertação que decidiam combater do lado dos portugueses. Os quinhentos anos de História e de tradição literária (aqui presentes numa forte intertextualidade, quando se cita Fernão Lopes ou Fernando Pessoa) são transpostos para esta obra que não é mais literatura de viagens mas uma anti-epopeia trágica.
O título sonante e alegórico pode ser decomposto nas suas várias partes, como Autópsia, onde se pretende dissecar e examinar, e que aponta para essa «morte numerosa» de que o romance dá conta (é feita aliás uma autópsia no decurso da narrativa, em local público e que demonstra a banalização da morte); o Mar, como metáfora do que está para lá do horizonte de um país, neste caso as Províncias do Ultramar; e as Ruínas de um Império que continuava a agarrar-se às suas colónias numa guerra infindável. A expressão «mar de ruínas» surge mesmo no corpo do texto quando se descreve como o furriel Borges «reapareceu de entre a fumarada, como se emergisse do fundo de um mar de ruínas» (p. 151). O vocábulo náufrago será ainda recorrente, associado aos militares que naufragaram numa imensidão de uma guerra que se arrastou numa terra que não lhes diz respeito além do mar português.
Autópsia de um mar de ruínas é um exemplo da literatura como testemunho do real, em que o autor parte da sua experiência da guerra colonial em Angola e narra a partir da sua perspectiva aquela que é a experiência de uma geração de oitocentos mil homens mobilizados para três frentes em África, durante treze anos. João de Melo também foi mobilizado para Angola onde prestou serviço como furriel miliciano enfermeiro entre 1971 a 1974. Uma das personagens principais da obra é Gouveia, o furriel enfermeiro, um jovem de vinte e três anos. Incorrendo ser alvo da fúria do comandante, que ameaça denunciá-lo por subversão, o furriel enfermeiro distingue-se pelo seu comportamento humanitário, carinhosamente apelidado de «papá» por «aquela pobre gente» (p. 58). Ainda que seja provavelmente o narrador cuja voz está menos presente no livro, existem algumas ligações possíveis de estabelecer com o autor, como a constante invocação do mar branco dos Açores, os olhos «de um azul de berlindes» (p. 151), ou o passado no seminário. Temos depois a personagem de Gouveia, que pode ser interpretado como uma espécie de desdobramento do furriel enfermeiro e outro alter ego do autor, a quem Gonçalves, um outro militar, avisa: «Por favor, não faças literatura comigo.» (p. 114).
Se o primeiro capítulo representa desde a primeira frase o sobressalto e expectativa constante que se vivem num quartel em tempo de guerra, quando Renato, o soldado de sentinela, brada «- QUEM VEM LÁ?» (p. 7) ao ouvir um restolhar no mato e na noite, no segundo capítulo lemos como Natália clama por ajuda quando vê o marido Romeu a ser ferozmente chicoteado por «sô Valentim» por ter desferido dois pontapés no seu cão. Romeu será muitas vezes descrito por Natália como homem apático e inútil para depois no fim, de forma inesperada, ser revelado ao leitor como um herói da resistência que servia de informador às tropas da libertação.
A violência da guerra torna-se uma constante na obra mas é sintomático que essa violência, que acarreta por vezes um certo grotesco na linguagem narrativa, seja na generalidade quase gratuita. Muitas vezes encontramos a denúncia por parte das mulheres negras dos abusos e do assédio constante sofrido pelos militares (apesar de muitos sofrerem de uma impotência sexual que é sintoma de um mal maior). A própria linguagem ofensiva e gráfica utilizada pelos militares no quartel entre eles e com os negros representa a opressão e domínio exercido pelo mais fraco. Esta violência está também frequentemente presente na forma animalizada como se retrata o homem, onde os ocupantes são descritos como suínos, e os negros apelidados de macacos.
A narração reparte-se de forma polifónica entre diversos narradores, numa perspectiva fragmentada de múltiplas vozes, num registo que oscila entre a primeira e a terceira pessoa, onde entra ainda a focalização interna a acompanhar a corrente de consciência que nos permite sentir por dentro da pele das personagens, nomeadamente dos militares portugueses, sensações inomináveis e proíbidas como o medo e o ressentimento face a uma guerra que eles acham sem sentido. Essa revolta contida transparece em diversas passagens, logo no início do livro, que dão conta do sentir e pensar dos militares portugueses: «Em comissão de serviço e em guerra numa África que não era o seu mundo, nem sequer o seu continente.» (p. 15). É esta focalização interna que nos permite ouvir a voz crítica das personagens face ao regime num livro que narra uma guerra de silêncios. O regime falava em “missões de soberania”, nunca em guerra, e as “colónias” eram chamadas de “províncias ultramarinas”, tal como se pode ler no quartel uma inscrição em letras garrafais que anuncia «É PROIBIDO DIZER QUE HÁ GUERRA» (p. 63), como um aviso irónico de que há uma censura em funcionamento no país mas que não pode apagar nunca o remorso e a memória de quem lá esteve. Dessa forma esta obra literária insurge-se como uma denúncia da versão oficial da História, como é o caso dos relatos públicos e oficiais que davam conta do número de mortos na guerra colonial: «Os jornais de Lisboa dariam parcamente a notícia das mortes, dois nomes por semana e só dois, para não parecerem muitos a morrer às mãos do inimigo.» (p. 169). Talvez por isso, como contrabalanço, a outra palavra que ganha pesa no livro é Memória (como no título original de 1977), nomeadamente para Natália e para Renato, essas duas personagens em frentes opostas. No final do capítulo vigésimo terceiro, podemos ouvir Renato, cumpridos já cerca de quinze meses de comissão, que parece falar consigo próprio quando chega a sua hora: «Tens a memória para acusar. Tens o grito que deixarás escrito no mármore, onde vão gravar o teu nome e um epitáfio: QUIS APENAS SEGUIR O CURSO DOS RIOS, PASSAR A PÉ AS MONTANHAS DO MEU PAÍS. MORREU EM MIM UM HOMEM. MORRERÁ COM ELE UM PAÍS QUE MANDOU MATAR UM MILHÃO DE HOMENS NA GUERRA. COMO SERÁ A SUA MORTE?» (p. 335). São estas letras garrafais (recurso gráfico do autor comum a outras obras, onde tanto se anuncia o início dos parágrafos como se destacam passagens em que a escrita ganha a força de grito e ímpeto) que encerram a narrativa relativa a Renato, em jeito de epitáfio (daí a grafia em maiúsculas). O último capítulo que inicia logo por «NO DIA EM QUE EU MORRI NA GUERRA» (p. 323) é afinal o relato na primeira pessoa do final da sua vida, apesar de uma certa ambiguidade narrativa que parece acompanhar a própria confusão da personagem que relata à medida que procura apanhar o fio da lógica dos eventos: «Dói muito, dói infinitamente morrer na juventude. Dói morrer numa manhã assim, tão cheia de sol que é fácil cair na ilusão de sermos eternos.» (p. 329). Contudo já no final do primeiro capítulo havia pistas no sentido da morte de Renato. A morte para muitos outros combatentes do Ultramar foi também e sobretudo interior como muitas vezes se deixa subentender na narrativa, uma morte da alma sofrida face aos horrores vividos e testemunhados e à descrença na humanidade, e daí a necessidade de fazer uma autópsia, como escavação da alma que se pretende resgatar para fazer da vida literatura e poder sobreviver. Sobreviverá Gouveia, por outro lado, como percebemos através da prolepse: «Pensou no Rossio de Lisboa: as montras das livrarias, onde alguns anos mais tarde miraria os seus próprios livros» (p. 116).
Pode haver resistência a encarar esta obra como um registo factual na medida em que factos históricos são entremeados por eventos ficcionais, ao que acresce uma dimensão temporal pouco precisa, em que raramente são referidas datas até porque o tempo é vivido na sua angústia cíclica (sendo o alcoolismo uma estratégia de escape tanto para brancos como negros) entre momentos em que nada acontece para depois quando alco ocorre mais se desejar que nada sucedesse: «porque naqueles tempos as guerras eram assim, nunca nada acontecera e tudo depois acontecia de repente» (p. 167).
Ainda a propósito da importância da Memória existe o caso paradigmático do furriel Tavares que escreve três cartas por dia à sua mulher, cartas que parecem constituir as suas memórias de guerra em duplicado, com um papel químico, e guardava a cópia num cofre. Como revelaria depois, tratava-se de um diário de campanha: «Um dia, ainda havia de retirar dali um tesouro essencial, a memória sacra das suas aventuras de guerra, De Como Nos Fomos a Eles em África e Asinha os Tornámos Escravos Nossos e de Nossa Única Vontade.» (p. 65). Mais uma vez, se considerarmos a prolepse em que Gouveia deixa pistas de que terá sobrevivido à guerra, veremos como este registo de Autópsia se impõe face a uma História que procura abolir os factos em prol de uma versão oficial romanceada: «Anos mais tarde, ao chegar a sua vez de escrever sobre a guerra colonial de um milhão e quinhentos mil homens, o furriel enfermeiro veria, igualmente, toda a gente passar e dizer que era tudo mentira, o país jamais estivera em guerra, tudo não passava de ficção, os escritores estavam em vias de extinção, e para eles também não haveria segunda oportunidade.» (p. 116). Porém, como refere um dos narradores da sanzala: «O povo sabia e guardava na memória o testemunho das histórias que todos os dias ficavam escritas na terra-mãe, nossa pátria bem-amada.» (p. 143).
Chega às livrarias a 27ª. EDIÇÃO (com data de Fevereiro de 2017) do quarto romance de João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas, que a par de O Meu Mundo não é deste Reino pode ser entendido como um díptico sobre os Açores, visto que os outros dois livros (Memória de ver matar e morrer e Autópsia de um Mar em Ruínas) se referem a memórias da guerra colonial, onde encontramos referências explícitas a esse modo de vida das ilhas em passagens como: «o pasmo dum arquipélago que encalhara na mística religiosa do século XVI.» . Ou note-se ainda a alusão que é feita intratextualmente ao seu anterior romance: «em que todos viram (…) a caricatura de um país mitológico e intemporal…» , pois o narrador assume-se, ainda que num logro intencional e ilusório, como sendo uno com a voz autoral. Contudo, se Gente Feliz com Lágrimas pode parecer, num primeiro impacto, uma continuação de O Meu Mundo Não É Deste Reino, em que se retoma esse povo do Rozário quando, num tempo mais actual, se atreve finalmente a partir além desse mar branco que envolve as ilhas, a ambiência mágica que antes perpassava na Ilha vai desaparecer, associada à própria partida do protagonista para Lisboa. Além disso, a opressão aqui retratada prende-se com um menino que vive num medo constante de um pai violento e que materializa na paisagem da sua infância esses fantasmas, puramente internos, que o assombram:
Tudo irreal e oculto, como o próprio sol o era na sua esfera parda e oblíqua. Envolvendo as mães dos pêssegos e dos outros frutos, as matas de criptoméria eram presenças fulvas, cor de estanho, postas ali de propósito pelos antepassados só para captarem o tempo parado dos mortos. O ninho esdrúxulo do Grande Medo abria-se para receber o frio de meu corpo. Passavam então, como num desfile, por cima das copas das árvores, os mortos da família (…).
Tudo irreal e oculto, como o próprio sol o era na sua esfera parda e oblíqua. Envolvendo as mães dos pêssegos e dos outros frutos, as matas de criptoméria eram presenças fulvas, cor de estanho, postas ali de propósito pelos antepassados só para captarem o tempo parado dos mortos. O ninho esdrúxulo do Grande Medo abria-se para receber o frio de meu corpo. Passavam então, como num desfile, por cima das copas das árvores, os mortos da família (…).
Este romance retrata o sentimento de exílio da diáspora do povo açoriano, mas também de todos os milhares de portugueses que se espalharam pelos vários continentes, levando dentro de si o mundo em que cresceram, sem que dele se separem e sem que a ele possam voltar, pois nada permanece igual, engolido pela voracidade do correr do tempo. A força da vivência na Ilha, novamente maiusculada, permanece arreigada na memória dos açorianos que emigram para o Canadá, para a América e outros destinos além-mar, como transparece na seguinte passagem:
Todos estão aqui mas continuam nesse tempo da Ilha. Trouxeram-na, mantêm-na intacta dentro de si (…), mudaram de nome – mas persistem no tempo obsessivo das procissões e romarias, no pudor da mais sagrada nudez, no vício de dizer mal dos vizinhos (…). Tristes, enigmáticos, fingem a euforia dessa imensa importância de se estar vivo nos dias de Vancouver. Sonham com as vacas, as terras e os cavalos dos Açores e fazem planos para casas vistosas à beira da estrada que liga o Nordeste a Ponta Delgada.
Se Gente Feliz com Lágrimas é o embarque no cais e a ruptura com o mundo da infância, então O Meu Mundo Não É Deste Reino representará «a terra natal como símbolo de uma infância mitificada e perdida» , sendo esse o reino encantado que tanta matéria-prima fornece a estes autores que versam o realismo mágico. Este romance, que é também o mais extenso do autor, foi depois adaptado pela RTP ao formato do pequeno ecrã, numa série televisiva. João de Melo remete novamente para o Rozário na sua novela, publicada em 2009, intitulada A Divina Miséria. Esse pequeno livro é, aliás, segundo nota do autor, uma versão largamente reescrita, que sofreu revisões sucessivas, desde um primeiro conto lançado num periódico, depois um conto homónimo, «A Divina Miséria», integrado em Entre Pássaro e Anjo (1987), passando por «O Homem da Idade dos Corais», incluso nos contos de Bem-Aventuranças (1992).
João de Melo é uma das vozes fortes da literatura contemporânea e esta 27.ª edição da Dom Quixote de um livro publicado originalmente em 1988 vem reforçá-lo.
Porque afinal eu também leio de tudo um pouco, não vou discutir questões de literariedade, nem de cultura de massas ou de literatura popular, até porque a leitura só faz sentido enquanto prazer, abandono do mundo e busca de conhecimento ou sentido. Mas como amante e estudioso de literatura sei também que daqui a uns anos o que hoje se chama literatura um dia entrará certamente nos domínios da paraliteratura porque, afinal, a verdadeira literatura é aquela que, por muito que s
e leia, deixa sempre uma marca, um murro no estômago, uma sensação de desorientação e ao mesmo tempo de completude.
Deixo aqui um exemplo daquilo que por muito que os anos passem duvido (espero) que seja esquecido do que eu considero literatura, com passagens emblemáticas de um dos meus romances favoritos da literatura portuguesa: O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo (e pelo que verifiquei não está aqui apresentado ainda) Ver artigo
João de Melo, autor açoriano, regressou ao romance cerca de oito anos depois de
O Mar de Madrid Ver artigo
Um singular caso insular: João de Melo Ver artigo
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