Lições é o mais recente romance do autor britânico Ian McEwan. Como tem vindo a ser habitual, foi lançado em Portugal em simultâneo com a edição original inglesa, no passado dia 27 de Setembro. A tradução é de Maria do Carmo Figueira. Todas as suas obras são publicadas em Portugal pela Gradiva. Ver artigo
«Naquela manhã, ao acordar, Jim Sams, esperto, mas algo leviano, depois de uma noite cheia de sonhos perturbadores, viu-se transformado numa criatura gigantesca.» (p. 11)
No início de A Barata, de Ian McEwan, publicado pela Gradiva, com tradução de Maria do Carmo Figueira, é possível reconhecer o início de A Metamorfose, de Kafka. Um texto breve, quase uma novela, que parece responder aos mais recentes acontecimentos de um Reino Unido que decidiu apartar-se da União Europeia. E, para que não restem dúvidas, Jim Sams, o nome do protagonista, faz eco do de Gregor Sams. Mas se a obra de Kafka se caracteriza pela alegoria que faz uso do fantástico, em A Barata impera uma sátira em que tudo é inversão, numa espécie de parábola que pretende ilustrar como o mundo está de pernas para o ar – um pouco como Jim Sams se sente quando acorda, deitado de costas durante um bom tempo, enquanto contempla horrorizado os únicos quatro membros que lhe restam e sente saudades das suas perninhas castanhas. Conforme se vai familiarizando com a sua nova e repugnante aparência humana, sempre a partir da sua perspectiva de barata (capaz de lembrar ainda o gosto das moscas varejeiras), Jim Sams vai recordando fragmentos daquela que é a causa, a missão, que o trouxe do mundo dos insectos e, além dele, outros mais, com que o primeiro-ministro se vai cruzando e que consegue reconhecer de forma algo instintiva.
«Foi durante esses segundos, enquanto fitava o olhar brando de Trevor Gott, o chanceler do ducado de Lancaster, depois o ministro da Administração Interna, o procurador-geral, o líder da bancada, o ministro dos Transportes, o ministro sem pasta, que, num momento surpreendente de reconhecimento instantâneo, uma alegria inusitada, transformadora, transcendente, percorreu todo o seu corpo, passando pelo coração e descendo pela espinha. (…) Praticamente todos os membros do seu Conselho de Ministros partilhavam as suas convicções. Mas, muito mais importante do que isso, e só nesse momento o soubera, partilhavam as suas origens.» (p. 30)
O que estes insectos recentemente convertidos em políticos, de modo a cumprir uma missão em nome do povo, procuram decidir não é o Brexit, mas sim o florescimento de uma economia regressista e que deve ser implementada já no dia 25 de Dezembro, dia em que o comércio está fechado. O autor detém-se com algum cuidado na teoria do regressismo (a ideia não é totalmente nova), procurando explicá-la desde as suas origens, sendo que este consiste na inversão do fluxo do dinheiro. Em suma, a economia será estimulada com o cunho de mais moeda para que as lojas possam pagar aos seus clientes, e os clientes possam pagar pelos seus empregos, da mesma forma que os funcionários pagam um salário para que lhes seja permitido trabalhar, e quanto mais investirem em formação melhor, pois permitir-lhe-á encontrar um trabalho mais dispendioso, pelo que mais compras terá de fazer para o pagar. A lei passa portanto a proibir a acumulação de poupanças, pois o dinheiro parado vence elevadas taxas de juro negativas, o que o reduzirá a nada, obrigando portanto as pessoas a investirem o seu tempo em lojas onde são generosamente compensadas por todos os artigos que conseguirem levar a preço de retalho.
A certa altura a chanceler alemã – que tal como o presidente francês (Sylvan Larousse) ou o presidente americano (Archie Tupper) também passa por esta sátira – pergunta a James Sams «Warum?» (Porquê?), ao que a única resposta possível é «porque sim» (p. 97).
Na narrativa de Ian McEwan esta tese de inversão do que é a ordem natural das coisas afigura-se como a verdadeira crítica a um país que está empenhado em se destruir, vogando contra a corrente mas determinado a servir o seu povo. O livro parece perder um pouco da sua irreverência e ímpeto iniciais, mas a ironia cáustica de Ian McEwan permanece incisiva numa história que se quer com final feliz: «Agora, a Grã-Bretanha estava entregue a si própria. O povo tinha falado. A genialidade do líder do nosso partido permitira o cumprimento do desejo do povo. O destino do povo estava nas mãos do povo. O regressismo tinha sido cumprido! Sem mais hesitações nem demoras! A Grã-Bretanha estava sozinha!» (p. 106)
No início de A Barata, de Ian McEwan, publicado pela Gradiva, com tradução de Maria do Carmo Figueira, é possível reconhecer o início de A Metamorfose, de Kafka. Um texto breve, quase uma novela, que parece responder aos mais recentes acontecimentos de um Reino Unido que decidiu apartar-se da União Europeia. E, para que não restem dúvidas, Jim Sams, o nome do protagonista, faz eco do de Gregor Sams. Mas se a obra de Kafka se caracteriza pela alegoria que faz uso do fantástico, em A Barata impera uma sátira em que tudo é inversão, numa espécie de parábola que pretende ilustrar como o mundo está de pernas para o ar – um pouco como Jim Sams se sente quando acorda, deitado de costas durante um bom tempo, enquanto contempla horrorizado os únicos quatro membros que lhe restam e sente saudades das suas perninhas castanhas. Conforme se vai familiarizando com a sua nova e repugnante aparência humana, sempre a partir da sua perspectiva de barata (capaz de lembrar ainda o gosto das moscas varejeiras), Jim Sams vai recordando fragmentos daquela que é a causa, a missão, que o trouxe do mundo dos insectos e, além dele, outros mais, com que o primeiro-ministro se vai cruzando e que consegue reconhecer de forma algo instintiva.
«Foi durante esses segundos, enquanto fitava o olhar brando de Trevor Gott, o chanceler do ducado de Lancaster, depois o ministro da Administração Interna, o procurador-geral, o líder da bancada, o ministro dos Transportes, o ministro sem pasta, que, num momento surpreendente de reconhecimento instantâneo, uma alegria inusitada, transformadora, transcendente, percorreu todo o seu corpo, passando pelo coração e descendo pela espinha. (…) Praticamente todos os membros do seu Conselho de Ministros partilhavam as suas convicções. Mas, muito mais importante do que isso, e só nesse momento o soubera, partilhavam as suas origens.» (p. 30)
O que estes insectos recentemente convertidos em políticos, de modo a cumprir uma missão em nome do povo, procuram decidir não é o Brexit, mas sim o florescimento de uma economia regressista e que deve ser implementada já no dia 25 de Dezembro, dia em que o comércio está fechado. O autor detém-se com algum cuidado na teoria do regressismo (a ideia não é totalmente nova), procurando explicá-la desde as suas origens, sendo que este consiste na inversão do fluxo do dinheiro. Em suma, a economia será estimulada com o cunho de mais moeda para que as lojas possam pagar aos seus clientes, e os clientes possam pagar pelos seus empregos, da mesma forma que os funcionários pagam um salário para que lhes seja permitido trabalhar, e quanto mais investirem em formação melhor, pois permitir-lhe-á encontrar um trabalho mais dispendioso, pelo que mais compras terá de fazer para o pagar. A lei passa portanto a proibir a acumulação de poupanças, pois o dinheiro parado vence elevadas taxas de juro negativas, o que o reduzirá a nada, obrigando portanto as pessoas a investirem o seu tempo em lojas onde são generosamente compensadas por todos os artigos que conseguirem levar a preço de retalho.
A certa altura a chanceler alemã – que tal como o presidente francês (Sylvan Larousse) ou o presidente americano (Archie Tupper) também passa por esta sátira – pergunta a James Sams «Warum?» (Porquê?), ao que a única resposta possível é «porque sim» (p. 97).
Na narrativa de Ian McEwan esta tese de inversão do que é a ordem natural das coisas afigura-se como a verdadeira crítica a um país que está empenhado em se destruir, vogando contra a corrente mas determinado a servir o seu povo. O livro parece perder um pouco da sua irreverência e ímpeto iniciais, mas a ironia cáustica de Ian McEwan permanece incisiva numa história que se quer com final feliz: «Agora, a Grã-Bretanha estava entregue a si própria. O povo tinha falado. A genialidade do líder do nosso partido permitira o cumprimento do desejo do povo. O destino do povo estava nas mãos do povo. O regressismo tinha sido cumprido! Sem mais hesitações nem demoras! A Grã-Bretanha estava sozinha!» (p. 106)
Numa Londres alternativa nos anos 1980, quando Margaret Thatcher comete a imprudência de uma desastrosa guerra territorial pelas Ilhas Falkland, Charlie Friend usa as suas poupanças – que dariam para comprar um apartamento – num exemplar de um primeiro lote de seres humanos sintéticos, isto é, um robot com aspecto perfeitamente humano e inteligência artificial, que pode inclusive desempenhar funções de brinquedo sexual vivo, e sugestivamente designado como Adão. Charlie talvez preferisse uma Eva, mas estavam esgotadas…
«Quanto à autonomia, conseguia correr dezassete quilómetros em duas horas sem precisar de ser recarregado ou, com um consumo equivalente de energia, conversar ininterruptamente durante doze dias. Tinha uma vida útil de vinte anos. Era corpulento, de ombros direitos, pele escura, cabelo preto espesso penteado para trás; a cara era estreita, com um nariz ligeiramente adunco a sugerir uma inteligência sólida, uns olhos pensativos» (p. 12)
Ian McEwan, um dos mais importantes autores britânicos, depois do irreverente Numa Casca de Noz em que coloca um embrião a meditar sobre a Inglaterra em fase Brexit, continua a meditar sobre o futuro da raça humana nestes tempos conturbados em que a tecnologia ameaça (?) ultrapassar a inteligência humana.
«Quanto à autonomia, conseguia correr dezassete quilómetros em duas horas sem precisar de ser recarregado ou, com um consumo equivalente de energia, conversar ininterruptamente durante doze dias. Tinha uma vida útil de vinte anos. Era corpulento, de ombros direitos, pele escura, cabelo preto espesso penteado para trás; a cara era estreita, com um nariz ligeiramente adunco a sugerir uma inteligência sólida, uns olhos pensativos» (p. 12)
Ian McEwan, um dos mais importantes autores britânicos, depois do irreverente Numa Casca de Noz em que coloca um embrião a meditar sobre a Inglaterra em fase Brexit, continua a meditar sobre o futuro da raça humana nestes tempos conturbados em que a tecnologia ameaça (?) ultrapassar a inteligência humana.
Nos anos 60, quando a Grã-Bretanha se tornou numa potência menor, quando ainda não existe a palavra adolescente, nem se entraram nos loucos tempos de liberdade sexual, quando ainda se vive segundo alguns convencionalismos burgueses, mas a masturbação já não é tabu nem pressupõe a crença de que causa cegueira, um jovem casal vive a sua noite de núpcias, passadas cerca de oito horas da cerimónia do casamento. O livro não o indica directamente, mas estamos em Julho de 1962, no final de um dia de verão, Florence e Edward esperam ansiosamente que lhes acabem de servir a refeição no quarto, para poderem ficar finalmente a sós. Mas o momento que Edward deseja com crescente excitação, é igualmente temido por Florence, que receia o instante em que terá de render o seu corpo ao noivo. As 128 páginas deste livro alternam entre o discorrer da sua “noite de núpcias” e o rememorar das suas vidas e relação com os pais, bem como dos últimos anos desde que se conheceram.
«Eles eram jovens, licenciados, ambos virgens naquela sua noite de núpcias, e viviam numa época em que uma conversa sobre dificuldades sexuais, que nunca é fácil, era simplesmente impossível.» (p. 7)
Pode ler-se que esta é «mais uma obra-prima de Ian McEwan – uma história de vidas transformadas por um gesto não feito ou uma palavra não dita», à semelhança da obra de Kazuo Ishiguro, cuja intriga gira muitas vezes em torno de um equívoco ou mal-entendido.
Um livro tão brilhante quanto incómodo, na forma como indicia que por vezes é só no fim do decurso de uma existência que verdadeiramente reconhecemos como uma só palavra ou cedência poderia ter resultado num desfecho de uma vida completamente diferente. E mais realizada.
O filme foi adaptado ao cinema e deverá estrear em Maio, com realização de Dominic Cooke, e Saoirse Ronan e Billy Howle nos principais papéis. Saoirse Ronan é a mesma jovem que despoleta toda a confusão de Expiação (2007 – outra das várias adaptações ao grande ecrã das obras do autor).
Este jovem casal contracenará ainda este ano noutro filme, A Gaivota, uma adaptação a partir da peça de Tchékhov.
«Eles eram jovens, licenciados, ambos virgens naquela sua noite de núpcias, e viviam numa época em que uma conversa sobre dificuldades sexuais, que nunca é fácil, era simplesmente impossível.» (p. 7)
Pode ler-se que esta é «mais uma obra-prima de Ian McEwan – uma história de vidas transformadas por um gesto não feito ou uma palavra não dita», à semelhança da obra de Kazuo Ishiguro, cuja intriga gira muitas vezes em torno de um equívoco ou mal-entendido.
Um livro tão brilhante quanto incómodo, na forma como indicia que por vezes é só no fim do decurso de uma existência que verdadeiramente reconhecemos como uma só palavra ou cedência poderia ter resultado num desfecho de uma vida completamente diferente. E mais realizada.
O filme foi adaptado ao cinema e deverá estrear em Maio, com realização de Dominic Cooke, e Saoirse Ronan e Billy Howle nos principais papéis. Saoirse Ronan é a mesma jovem que despoleta toda a confusão de Expiação (2007 – outra das várias adaptações ao grande ecrã das obras do autor).
Este jovem casal contracenará ainda este ano noutro filme, A Gaivota, uma adaptação a partir da peça de Tchékhov.
Ian McEwan é um dos grandes autores ingleses da actualidade. De entre a sua obra podemos destacar livros como
A Criança no Tempo Ver artigo
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