Butcher’s Crossing, de John Williams, foi publicado em 1960, portanto cinco anos antes de Stoner, romance considerado a sua obra-prima e uma das revelações literárias do ano passado. Butcher’s Crossing antecipa o mesmo registo linear de Stoner, numa prosa cuidada, meticulosamente descritiva, onde todas as palavras são pesadas e pensadamente escolhidas, numa obra ainda mais complexa e envolvente do que Stoner. John Williams (1922-1994), relembre-se, escreveu apenas quatro romances, deixou um quinto romance inacabado à data da sua morte, e os seus romances passaram cerca de meio século completamente desapercebidos até que um coro de autores e críticos e tradutores o resgatou originando uma pequena “febre”. Cormac McCarthy é um dos autores que admirou John Williams e foi por ele influenciado neste romance que é considerado um anti-western.

Will Anders é um jovem com formação em Harvard, de boas famílias e algumas posses que em 1870 chega à remota povoação de Butcher’s Crossing. Este lugarejo é certamente um lugar esquecido no tempo, mas que ainda parece resistir às agruras do Oeste selvagem: «Butcher’s Crossing podia abarcar-se inteira quase num só relance. Um grupo de seis edíficios toscos era dividido por uma rua estreita de terra; de um e outro lado havia uma pequena porção de tendas para lá dos edifícios.» (pág. 12).

E um dos grandes atributos deste romance é a forma como o narrador se perde por vezes em digressões quase metafísicas, à medida que se tenta desvendar as motivações insondáveis do protagonista, uma marcada diferença em relação a Stoner, se bem que possa encontrar paralelo naquele momento sublime em que o jovem William Stoner se sente convocado para o seio de um mistério e o leitor se apercebe que é a poesia (que é como quem diz a literatura) que o chama, naquele instante em que a sua vocação como professor se começa a definir.

Numa demanda incerta, pois Will Anders nunca mostra saber muito bem aquilo que o traz àquelas paragens, mas com uma confiança quase cega nas pessoas que encontra, financia e lança-se numa expedição até umas paragens longínquas que o caçador Miller lhe promete ter encontrado uns anos antes onde ainda havia búfalos em abundância, numa espécie de vale perdido e isolado do mundo. O que parece claro desde o início é que Will Anders não persegue o desejo de aventura como acontece com outros exploradores e caçadores, nem é motivado por uma ambição desmedida como Miller, sendo antes impelido por uma sede de conhecimento da natureza, do mundo autêntico e virginal que resiste para lá da civilização e da acção humana. Podemos perceber melhor a natureza da sua demanda no momento em que Will Anders confidencia a Charley Hoge, um dos homens que o irá acompanhar na sua expedição e que tem como principais motores o whisky que consome despudoradamente e a Bíblia que o acompanha permanentemente, que o seu pai era ministro leigo da Igreja Unitária:

«Escutando Charley Hoge e pensando na King’s Chapel, apercebeu-se repentinamente de que fora alguma ironia como esta que o arrancara do Harvard College, e de Boston, para vir enfiar-se neste estranho mundo onde se sentia inexplicavelmente em casa. Uma ou outra vez, depois de ouvir as monótonas vozes na capela e nas salas de aula, evadira-se dos confins de Cambridge até aos campos e bosques que ficavam para sudoeste. Ali, numa pequena solidão, de pé sobre a terra nua, sentia a fronte banhada pelo ar puro e alcandorada até o espaço infinito; a pequenez e o constrangimento que sentira eram dissipados pela terra bravia que o rodeava. Vinha-lhe à memória uma frase de uma palestra de Mr. Emerson a que assistira: transformo-me num globo ocular transparente. Cercado de campo e arvoredo, não era nada; via tudo; circulava por ele a corrente de alguma força indefínivel. E de uma maneira que não lograva sentir na King’s Chapel, nas salas de aula ou nas ruas de Cambridge, era parte integrante de Deus, livre e incontido. Por entre as árvores e ao longo da ondulada paisagem, conseguira vislumbrar o horizonte longínquo a oeste; e ali, por um instante, contemplara algo tão belo como a sua própria natureza desconhecida.» (pág. 52).

A expedição formada por quatro homens parte em busca de um destino que (conforme os dias passam e à medida que a convivência entre o grupo se torna cada vez mais aguçada, à medida das fraquezas, inseguranças e naturezas de cada um, quando as primeiras dificuldades como a falta de água se impõem) se torna cada vez mais uma miragem, pois Miller confessa que afinal já se passaram cerca de onze anos desde que viu esse vale remoto, como que um paraíso perdido para os caçadores, com milhares de búfalos (erroneamente designado assim, pois na verdade tratam-se de bisontes). Quando finalmente encontram o vale aquilo que se desenrola perante os nossos olhos, mediante o testemunho de Will Anders, é uma carnificina em que o número de búfalos abatidos simplesmente pela sua pele, sendo a carcaça abandonada onde o animal foi morto a decompor-se lentamente, é muito superior ao que o grupo conseguirá de facto transportar numa só viagem.

A epígrafe de Ralph Waldo Emerson (retirada de Natureza), provavelmente o mesmo Emerson que Will Anders terá ouvido numa palestra, sobre a natureza vai assim sendo desmontada ao longo da segunda parte do romance: «O dia, incomensuravelmente longo, dorme sobre as amplas colinas e os extensos campos mornos. Ter vivido durante todas as suas horas soalheiras dá-nos uma agradável sensação de longevidade. (…) No limiar da floresta, o homem do mundo, surpreso, é obrigado a abandonar as suas avaliações citadinas do grande e do pequeno, do sensato e do disparatado. A mochila do costume abate-se sobre as suas suas costas ao primeiro passo que dá nesses limites. Ali reside a santidade que envergonha as nossas religiões, que desacredita os nossos heróis. Ali descobrimos que a natureza é a circunstância que amesquinha todas as outras circunstâncias, e julga como um deus todos os homens que vêm até ela.». Outro texto citado em epígrafe é uma passagem de Herman Melville que nos remete por conseguinte para a questão da natureza vs. Homem retratada em Moby Dick.

A ambição de Miller, que se torna cada vez mais inumano e mais animal, enquanto persiste na sua matança injustificada, vai mesmo provocar um desfecho inesperado em que o grupo irá procurar sobreviver nas mais desumanas condições. E, no final, quando tudo aquilo que fizeram se revela em vão, como um feito infrutífero face à vontade divina e à impiedade da natureza, embrenhada no seu fluxo irreversível de dias que se sucedem aos dias e trazem novas estações, e à própria inexorabilidade da passagem do tempo e das modas do Homem que se vão sucedendo de forma igualmente imparável, percebemos como este romance pode constituir ainda uma fabulosa alegoria para as batalhas vãs e as guerras inúteis em que o Homem se perde, já não contra a Natureza, mas contra si próprio, como no incêndio final que é várias vezes designado de Holocausto.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.