O último livro do autor francês nascido na pequena ilha de Reunião, no Índico, reúne seis relatos. Dois são de viagens e os restantes quatro configuram reflexões diversas, mas todos têm em comum a expressão de um sentimento de fin de siècle, mas em relação ao século XX.
Escolhemos a designação de relatos e não de ensaio justamente porque as reflexões do autor são sempre um pouco desregradas, seguindo o verdadeiro espírito livre de um livre pensador, que aliás não tem papas na língua quando se trata de expressar a sua opinião.
Lanzarote, o primeiro relato, e o mais extenso, com cerca de 54 páginas, que dá justamente título ao livro, dá conta de como o narrador (um alter-ego do autor) se apercebe da aproximação de outra desastrosa passagem de ano e talvez porque esta assinala também o fim do milénio (em termos poéticos e numéricos fica sempre melhor no final do ano de 1999 como o final do milénio) decide entrar, sem qualquer ideia do que realmente quer ou para onde quer ir, numa agência de viagens. Como já se percebeu, o destino acaba por ser Lanzarote. E porquê? Como o próprio narrador a certa altura afirma sobre um outro turista com quem faz amizade: «E porque fora ele a Lanzarote? A incerteza, a necessidade de férias, uma funcionária empreendedora da agência de viagens: enfim, o cenário clássico.» (pág. 34).
De facto, a ilha não parece um cenário ideal para turismo verde ou turismo cultural, nem mesmo para turismo sexual, como chega a passar pela mente do narrador quando a agente fala consigo sobre possíveis destinos, se bem que nesse campo acaba por haver oportunidades inesperadas.
Uma semana de férias num local onde aparentemente não havia nada para fazer acaba ainda assim por dar azo a um relato que quase se pode configurar como roteiro de viagens para o leitor não fosse os desfechos mais inesperados que depois ocorrem em torno de um belga que decide desaparecer perto do fim das férias e ingressar numa seita.
A escrita deste autor é, como sempre, de um profundo deleite, onde passa do registo mais banal para o poético, e depois, sem qualquer aviso, para o pornográfico ou, como às vezes acontece, conjugando perfeitamente todos os registos num só. Mas é no seu humor muitas vezes cáustico que o autor se demarca («Os noruegueses são translúcidos: expostos ao sol, morrem quase de imediato») e sem medo de criticar praticamente tudo e todos, como se pode ver principalmente no início do primeiro relato deste livro, onde se critica quase todas as nacionalidades europeias e se encontra um motivo para não ir a diversos países. E nada melhor do que um francês, se bem que um pouco ex-cêntrico, dado ter nascido fora de França, para nos dar uma crítica deliciosa dos franceses: «um ser vão, tão enamorado de si mesmo que o facto de se cruzar com um compatriota no estrangeiro lhe é literalmente insuportável».
Contudo, é neste registo a raiar o jocoso, que o autor aborda também ao longo do livro temas bastante sérios e delicados da actualidade, como a pedofilia, a clonagem, a sexualidade (o swing), mas fica, de alguma forma, um sentimento de que a Europa começa a perder a sua identidade e de que certos países, onde antes se poderia ir para encontrar uma certa ideia feita daquela cultura ou nação, já não são um retrato fiel daquilo que se cristalizou ao longo dos séculos no ideário dos outros povos e países: «os alemães já não têm vontade de permanecer na Alemanha, porque é um país desagradável e frio e porque acham que há demasiados turcos» (pág. 50).
E em jeito de despedida ficam as palavras do autor/narrador/alter-ego:
«Ao descrever o mundo, inscrevendo blocos de realidade, vivos e irrefutáveis, relativizo-os. Uma vez transformados em texto escrito, tingem-se de uma determinada beleza irisada, ligada ao seu carácter opcional. O campo nunca é opcional; o mar, por vezes, sim.» (pág. 102).
Michel Houellebecq também é argumentista, já tem vários livros adaptados ao cinema e há aliás um filme que gira em torno da sua pessoa ou, mais propriamente, do seu desaparecimento: L’enlèvement de Michel Houellebecq (2014).
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