
Há pilhas de trabalho, e pilhas de livros. Mas há sempre um autor que tem prioridade e consegue furar a fila.
Knulp, de Hermann Hesse, foi agora reeditado pela Dom Quixote, numa tradução revista, por Paulo Rêgo. A obra insere-se na fase inicial da escrita de Herman Hesse e, como salienta o tradutor numa esclarecedora e sucinta nota final, foi visto como algo anacrónica aquando da sua publicação, pois tinha já deflagrado a Primeira Guerra…
O próprio Hesse escreveu, em 1954, numa carta enviada a um amigo: «[Knulp] conta-se entre os poucos dos meus escritos em relação aos quais […] sempre mantive proximidade e afeição.»
O livro é constituído por três textos, que abrangem três diferentes momentos da vida, de Karl Eberhard Knulp, eterno caminhante que percorre sem parar uma parte da Alemanha rural de finais do século XIX.
São três breves relatos que correspondem a distintas fases de vida, e adoptam algumas estratégias narrativas diferenciadas: num dos textos, é um companheiro de viagem que nos narra as suas memórias de Knulp, noutro texto adoptam-se focalizações distintas.
Indivíduo jovem (no primeiro texto), elegante, de maneiras finas, belo, alegre e conversador, Knulp vive na margem da sociedade, mas não é um marginal. Uma “ave de arribação, que andava sempre de terra em terra e não conseguia jamais permanecer muito tempo numa única” (p. 17). Este modo de vida nómada remete aliás para um costume ainda da Idade Média, quando um aprendiz para aprender e aperfeiçoar o seu mester se deslocava de um lado para outro (tamvém Knulp anda munido da sua carteira profissional, e aprende aqui e ali as artes de um ofício, que nunca assume). Vive com a liberdade do Louco ou do Joker, embora nem sequer transporte uma trouxa consigo, mas conhecidos ou desconhecidos nunca o confundem com um vagabundo ou um pedinte. No entanto, é sobretudo através da bondade das pessoas com quem se vai encontrando e reencontrando que ele pode continuar a sua viagem, essa viagem sem rumo que é a vida, até ao seu destino final.
Ao longo do tempo, sobretudo na última parte, regressado à terra natal, como quem fecha um círculo sobre si mesmo, Knulp começa a interrogar-se sobre o sentido da existência, sobre as virtudes do sedentarismo em oposição à vida em eterno movimento, sobre a amizade e o amor e as relações perdidas (ou desperdiçadas), até chegar a um confronto, profundamente místico, consigo mesmo, e com a sua voz interna ou com a Voz da Verdade.
Não se julgue que o misticismo e a espiritualidade de Siddhartha são exclusivos dessa obra, pois na verdade atravessam toda a escrita do autor.
Narciso e Goldmundo (1930) e O Jogo das Contas de Vidro (1943) são ainda dois dos romances deste autor que mais aprecio e recomendo.
Hermann Hesse nasceu a 2 de Julho de 1877, em Calw, na Alemanha, e morreu a 9 de Agosto de 1962, em Montagnola, na Suíça.
Distinguido, em 1946, com o Nobel de Literatura, tornou-se uma verdadeira figura de culto, uma referência universal ancorada na exaltação que faz do indivíduo e na celebração de um certo misticismo oriental.
Peter Camenzind, o seu primeiro romance, data de 1904.
Uma visita à Índia fê-lo descobrir uma cultura e modos de sentir que o fascinaram: Siddhartha (1922) foi o resultado prático dessa experiência, sendo o seu livro mais lido em todo o mundo.
Durante a Primeira Guerra Mundial refugiou-se na Suíça, país neutro, onde adquiriu a nacionalidade em 1923.
Entre os seus romances, incluem-se O Lobo das Estepes (1927), Narciso e Goldmundo (1930) e O Jogo das Contas de Vidro (1943).
Explorando sempre o dualismo entre a vida ativa e a atitude contemplativa, Hermann Hesse é, a par de Thomas Mann e Franz Kafka, um dos nomes maiores das letras germânicas.
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