Jon Fosse, autor norueguês multipremiado, com destaque para o Prémio Internacional Ibsen, o Prémio Europeu de Literatura e o Prémio de Literatura do Conselho Nórdico, e vencedor do Prémio Nobel da Literatura neste ano de 2023, é um dos mais importantes e celebrados autores vivos.

Nasceu em 1959, em Strandebarm, no Oeste da Noruega. Vive desde 2011 numa residência honorária, o “Grotten”, pertencente ao estado norueguês, localizada no Palácio Real de Oslo. O uso desta residência como habitação permanente é uma honra concedida pelo Rei da Noruega pelas contribuições para as artes e a cultura norueguesas.

A sua extensa obra, traduzida em mais de quarenta línguas, ultrapassa as seis dezenas de títulos, nos mais variados géneros, incluindo romance, teatro, poesia, livros para crianças e ensaio. Em Portugal, os seus livros têm sido publicados, mais recentemente, pela Cavalo de Ferro.

Podemos considerar que o romance Septologia é o seu mais ambicioso projeto romanesco. Nomeado para o prémio Booker International em 2020, é considerada a sua magnum opus. Ao primeiro volume lançado no final do ano passado, seguir-se-á o segundo de três volumes, com o título O eu é um outro. O novo livro será lançado no próximo dia 6 de novembro, e prevê-se que a pré-venda esteja disponível em breve.

Manhã e Noite

Manhã e Noite é o primeiro romance de Jon Fosse publicado entre nós pela Cavalo de Ferro em novembro de 2020. Com tradução de Manuel Alberto Vieira, é um pequeno livro, ao jeito de um poema, em que o autor modela a linguagem poética ao sabor do fluxo da consciência, muitas vezes num ritmo binário, feito de dicotomias, como a própria estrutura do título indica.

A velha parteira Anna prepara-se para dar à luz uma criança, o segundo filho de Olai e Marta, depois de vários anos sem ela ter engravidado. Estavam já conformados com a ideia de que não voltariam a ter filhos e gratos pela bênção do nascimento de Magda, que os poupou a uma vida triste e solitária na ilha de Holmen onde vivem, na casa que o próprio Olai construiu.

Enquanto Anna tenta enxotar Olai, pois da mesma forma que o barco não é lugar para mulheres, a presença de um homem num parto traz má sorte, este diz à parteira que será um menino, desta vez, e chamar-se-á Johannes como o avô e será pescador como o pai…

«e agora ele virá, enquanto Marta a mãe grita de dor, ele virá ao mundo frio e aí ficará só, separado de Marta, separado de todos, aí ficará só sempre só e mais tarde, quando tudo terminar, quando a hora dele chegar, desvanecer-se-á e tornará a ser nada e regressará ao lugar de onde veio, do nada para o nada, é esse o trajecto da vida, das pessoas, dos animais, das aves, dos peixes, das casas, dos barcos, de tudo quanto existe, é, pensa Olai» (p. 14)

Manhã e Noite é um tratado sobre a fugacidade da vida humana, pois conforme Olai está apreensivo com o nascimento do filho, não evita, simultaneamente, a percepção de como o ciclo natural da vida é efémero, pontuado sobretudo por momentos próximos do divino, como o nascimento, na manhã da vida, e a morte, na noite do dia. Tanto que, já na segunda parte do livro (logo na página 27), encontramos um Johannes, agora idoso e viúvo, que nos dá conta da sua vida em retrospectiva. E o leitor, mais depressa do que Johannes, conforme se sucedem alguns episódios surreais, aperceber-se-á de que o seu mundo quotidiano tem algo de diferente: «pensa em como de certo modo tudo mudou, como as coisas, a casa, parecem de certo modo diferentes, mais pesadas e mais leves, como se houvesse mais de terra e mais de céu nas casas» (p. 40)

Trilogia

Trilogia é o segundo romance de Jon Fosse publicado pela Cavalo de Ferro, com tradução do norueguês por Liliete Martins. Trilogia, agraciado com o Prémio Literário do Conselho Nórdico, compõe-se de três novelas, como o título dá a entender — «Vigília» (2007), «Os Sonhos de Olav» (2012) e «Fadiga» (2014).

Na primeira novela, Asle e Alida vagueiam exaustos no frio, na chuva e na escuridão do fim de Outono pelas ruas de Bjørgvin em busca de um abrigo. Apesar de Alida estar grávida, ou justamente por isso, todas as portas se fecham. O início de Trilogia ganha contornos de uma parábola bíblica, ressoando a história de Maria e José, não fosse os contornos macabros indiciados gradualmente, pois na sua fuga ao passado em Dylgja e na chegada a uma nova morada Asle deixa um rasto de morte. Na segunda novela, Asle e Alida chamam-se agora Olav e Åsta Vik. Apesar do sonho de refazer a sua vida neste novo lugar, o passado persegue Olav, na figura do Velho, que promete manter o segredo em troca de uma cerveja. Na terceira novela, cabe a Ales, filha de Alida, revelar-nos um pouco do que se sucedeu, depois do final da segunda novela, e assim encerrar o ciclo, ao mesmo tempo que parece ser visitada pela alma da mãe.

Apesar dos anos de intervalo entre as narrativas, subjaz-lhes uma unidade lógica, acompanhando as mesmas personagens em momentos distintos da sua vida, particularmente críticos nas duas primeiras histórias. Nessa unidade conflui ainda a linguagem, simples e lírica, numa prosa que se extravasa ao sabor do fluxo da consciência. As frases distendem-se infindamente, com pausas formais ditadas pelo diálogo das personagens, e a recorrência e a repetição contribuem para um ritmo circular. O próprio tempo esbate-se, entre constantes analepses, sonhos, alucinações e visões de futuro.

O Outro Nome

O Outro Nome, de Jon Fosse, é o livro inaugural do seu mais ambicioso projeto romanesco. Com tradução de Liliete Martins, é o primeiro dos três volumes (inclui a parte I e II) que compõem o romance Septologia, nomeado para o prémio Booker International 2020, e considerada a magnum opus de Jon Fosse, autor com mais de 60 obras nos mais variados géneros. Segundo a crítica, Septologia constitui um dos pontos cimeiros da celebrada carreira do autor, que o releva como um nome essencial da literatura contemporânea, como se confirmou agora com a atribuição do Nobel.

Aproxima-se o final do ano. Asle é um velho pintor viúvo e solitário, parado defronte do seu último trabalho. Na tela estão duas simples linhas pintadas a óleo, que se sobrepõem como uma cruz de Santo André. Asle interroga-se se a tela estará pronta, se gosta dela ou se a levará juntamente com as outras treze obras que preparou para a sua próxima exposição em Bjørgvin, no Advento. A partir desse foco, dessa observação exterior, passamos, sem aviso, para longas meditações sobre o seu passado de jovem pintor sem dinheiro, a relação com Ales, a sua falecida mulher, a conversão tardia ao catolicismo, a sua relação com a pintura, reflexões quase metafísicas: “há, sim, uma espécie de luz, uma espécie de escuridão luminosa, uma luz invisível nessas imagens que fala silenciosamente a partir delas, e que fala verdade, e então, quando chego a esta visão, ou a este modo de ver, já não sou eu que vejo mas sim algo que vê através de mim” (p. 291).

Sentimos assim, em alguns momentos, que a vida, como a arte, é como uma tela que podemos furar e atravessar para chegar ao outro lado. Talvez por isso mesmo, existe um outro Asle, tão real quanto este, também ele pintor, solitário, mas dependente do álcool. Duas histórias de vida que se cruzam e se sobrepõem.

Toda a narrativa é eivada de uma forte carga simbólica e de diversos motivos, a começar pela simbologia dos números, que assiste à própria estrutura da obra.

À medida que progredimos na narrativa, torna-se cada vez menos claro se Asle é um só pintor, ou se se desdobra em dois, pois fala-nos recorrentemente de um outro amigo, o seu Homónimo, a quem sente necessidade de espiar, como que para se certificar de que está bem. Também esse outro é pintor; um alcoólico, como ele em tempos foi. Entretanto há ainda um vizinho, Åsleik, cujo nome é estranhamente próximo do deles.

“e não somos ambos, ele e eu, verdadeiros paradoxos aqui no lugar onde estamos, pois como se conectam a alma e o corpo, digo eu e o Åsleik responde não sei, diz-me tu e ficamos ali os dois sem dizer nada e depois eu digo que a cruz em si mesma é um paradoxo, com aquelas duas linhas que se cruzam” (p. 92)

A juntar a esse desdobramento do protagonista, desfilam ainda vários episódios que, de forma onírica, nos levam a crer tratarem-se de memórias que irrompem sobre o real. Asle refere-se-lhes mesmo como a “reserva de imagens que tenho dentro da cabeça, todas essas imagens que me enchem a cabeça” (p. 301). Essas indefinidas analepses reforçam a sensação de que as personagens parecem mover-se num limbo, entre este mundo e o outro, tal como acontece em Manhã e Noite ou Trilogia: “dou uma olhadela em volta para ver os outros clientes que se encontram ali sentados na Casa de Pasto com as suas cervejas e os seus cigarros como uma frágil defesa contra o mundo, (…) e o mar dentro deles é imenso, na tempestade e na bonança, enquanto ali estão sentados à espera da próxima e última viagem de barco de barco que irá largar do cais, a tal viagem que nunca terá fim, da qual nunca mais regressarão a casa, e não sentem qualquer receio, o que for soará, pois nisso haverá um sentido, sim, Nosso Senhor terá nisso algum desígnio, pensam eles” (p. 135). Há ainda neste livro, quase como que a condizer com o título de sonoridade algo bíblica, uma vivência profundamente religiosa, mas de essência intimista, da parte de Asle, alguém que nos confessa rezar o Pai Nosso todos os dias, pelo menos três vezes ao dia, e que o memorizou em latim…

O estilo hipnótico inconfundível de Jon Fosse é já uma marca característica, que perpassava igualmente nos romances anteriormente publicados entre nós.

Contudo, em O Outro Nome, a prosa de Jon Fosse torna-se ainda mais cumulativa, em parágrafos que se distendem por páginas, por vezes pontuados por falas. As palavras seguem-se, desfilam, acumulam-se, enredam-se e repetem-se, ressoando e ecoando. Lemos assim esta prosa como se fosse uma longa prece que se enreda e nos enleva.

O título Septologia explica-se porque a cada uma das sete partes do livro corresponde um dos sete dias na vida de Asle, um pintor que se aproxima do final de mais um ano de vida, mas também daquele que pode bem ser o último ano da sua vida.

(Créditos da foto de Jon Fosse 2019 © Tom Kolstad)

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.