Ao fechar um ano e abrir outro ciclo, David Machado parece ser a melhor escolha literária para demonstrar o estado da nossa condição. Índice Médio de Felicidade é o terceiro romance deste jovem autor. O Fabuloso Teatro do Gigante (2006) marca a sua estreia, podendo ser lido como uma parábola para adultos, em que o fantástico aí vivido e descrito prende-se com toda uma localidade que passa a representar uma peça maior que a própria vida, montando uma farsa imensa como forma de manter a sanidade mental de um homenzarrão chamado Gabriel (também oriundo da América do Sul, como Gabriel García Márquez, o chamado mestre do realismo mágico?). Este registo do real irá evoluir para um realismo histórico e social mais convencional em Deixem Falar as Pedras (2011). É no seu último romance – depois de ter escrito contos e obras infantis pelo meio – que David Machado procura retratar a realidade portuguesa atual. Os próprios nomes são similares, além de a história ser narrada na primeira pessoa, invocando-se logo na primeira linha um «tu», o amigo Almodôvar que se encontra preso, mas como o próprio autor alerta nas entrevistas que deu acerca do romance, qualquer semelhança entre a ficção e a sua realidade são mera coincidência. Isto porque o próprio autor viveu períodos em que esteve desempregado ou se ausentou do país para trabalhar e amealhar para poder continuar a escrever.

Esta voz do narratário, transcrita em itálico no decurso do livro, ajuda a traçar o plano do romance que, em vez de parecer um monólogo ou um diário, surge assim como um diálogo ou discussão a duas vozes entre Daniel e o amigo preso por assaltar uma estação de serviço: «O Xavier saiu de casa?/ Não, Almodôvar, ainda não é a tua vez de falar. Além disso, este relato terá a ordem que eu ditar.» (p. 14).

Se o livro é apresentado como um «romance admirável e extremamente atual sobre um otimista que luta até ao fim pela sua vida», afigura-se mais correto designar Daniel como um idealista que, mesmo sabendo que as suas escolhas e ações, movidas por princípios éticos fortes como impulsos naturais, o podem prejudicar, continua a reger-se por uma ética em que a sua vida só ganha sentido face à felicidade dos que o rodeiam – os filhos, a mulher, os amigos e sua respetiva família. Ou seja, o seu otimismo, por vezes, sucumbe mas ainda assim as suas decisões são sempre tomadas em prol do bem maior que são os outros, e o seu próprio índice de felicidade só pode ser medido em função do próprio bem-estar daqueles que ama.

A confirmar a maturidade de David Machado na escrita surge também o uso da gíria e do calão. Ainda que haja leitores mais sensíveis ao uso do “palavrão”, este afigura-se adequado na medida em que configura um discurso escatológico, exprimindo desabafo e injúria, de revolta contra o mundo e incompreensão face ao que o rodeia. O autor ao fazer uso desta marca linguística emblemática e de alguma estranheza nas situações narradas, desenha um cenário mais urbano que é, afinal, representativo do «País».

Sem querer adiantar muito da intriga deste livro simples, que se lê praticamente numa tarde, basta-me referir algumas das questões que considero centrais. A intriga segue o episódio corrente do estado da nação, mediante as peripécias deste herói moderno, que fica desempregado. Vive longe da família desde que a mulher se viu forçada a mudar para perto dos pais, em Viana, tem dois melhores amigos que surgem como exemplos a rejeitar, entrega a casa ao banco, passa a viver no carro, mesmo quando este é danificado e circula com uma janela partida e um banco traseiro queimado, onde ele antes dormia, até, por fim, passar a viver clandestinamente no seu antigo trabalho. Local  onde a vida lhe sorria até ao momento em que a crise apertara e o patrão se vira obrigado a fechar o negócio da agência de viagens, ainda que, curiosamente, nunca tenha tido de alugar o espaço.

O autor leva-nos a refletir sobre os valores em crise do mundo pós-moderno (materialismo, consumismo) e da actual sociedade (pós-industrial, globalizadora), pois apesar dos avanços técnicos e culturais, o progresso histórico não se traduz num progresso moral. Por isso é que os (pré)adolescentes retratados na ficção de David Machado parecem ter relevância e sintomatizar isso mesmo, pois Flor, Vasco e Mateus alegorizam, cada um à sua maneira, o abismo em que, de alguma forma, nos deixámos afundar. Exemplo disso é  quando um grupo de jovens rodeiam um pedinte, humilhando-o ao urinar-lhe em cima, à vez, enquanto um deles vai mesmo ao ponto de assumir publicamente esse ato vergonhoso, filmarndo-o e publicando-o online. Menos gritante mas igualmente preocupantes são os episódios em que se descreve as birras do filho de Daniel, sempre que não tem um qualquer gadget com que se entreter, ou quando a precoce e inteligente Flor decide deixar de se aplicar na escola, pois sabe que isso não lhe trará qualquer retorno face à taxa crescente de desemprego. Uma passagem emblemática a considerar é esta: «O País está a afundar-se depressa, estamos todos a tentar manter-nos à tona, uma luta diária, injusta para muitos. Mas tu apanhas-te com trezentos euros, que nem sequer são teus, e a primeira coisa que fazes é comprar um telemóvel. É por causa de tipos como tu que o mundo chegou a este momento tão triste da história. Sabes quanto tempo algumas pessoas conseguem viver com trezentos euros? Meses.» (pp. 154-155).

A ética assenta na responsabilização do indivíduo pelo seu progresso, vivendo consciente e responsavelmente, como Daniel procura fazer, pois mesmo quando invade propriedade alheia, ao procurar um canto para dormir, sente culpa e ansiedade permanente, enquanto tenta manter-se à tona face à situação em que se deixou enredar. Já os seus amigos vivem em prisões distintas: Almodôvar encontra-se fisicamente cativo numa prisão, e Xavier, embora tenha uma melhor situação económica, parece ser um contrabandista, voluntariamente preso em casa há anos. Inclusivamente, para sair em viagem com Daniel (quando partem numa viagem que abre um horizonte de esperança no romance), Xavier toma medicação para se autoinduzir num sono profundo que o ajude a suportar a viagem, pois o mundo exterior não só pouco lhe interessa como, de facto, parece amedrontá-lo.

Daniel é um optimista sim, que tinha um «Plano» da vida, um diário do futuro, como aliás os próprios livros de autoajuda sugerem: tracemos um esquema e usemos de visualização criativa para que a matriz do mundo se adeque à nossa pré-visão da vida. Até que Daniel percebeu outra coisa com o tempo: «Eu ainda não tinha quarenta anos e o meu mundo estava parado.» (p. 50). Compreendeu, como estamos todos a perceber, que o melhor é deixar espaço para o imprevisto pois quanto mais recetivos estivermos à mudança menos brutal parecerá a vida, mais fácil será a adaptação aos desígnios que nos são apresentados e que estavam completamente fora do plano, ainda que nos possam levar a caminhos nunca antes antecipados.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.