Eleanor Catton é uma jovem autora, nascida em 1985 no Canadá, que cresceu e vive na Nova Zelândia. Formada em escrita ficcional publicou duas obras.

O seu romance de estreia, O Ensaio, publicado pela Gradiva, gira em torno de um escândalo sexual numa escola secundária mas o que dá impulso à obra não é a história do escândalo em si, enquanto assunto mais ou menos recorrente e sensacionalista de tablóides, mas sim o tratamento dado ao tema. O escandâlo está aliás consumado quando conhecemos as várias personagens que estão mais ou menos directamente ligadas ao mesmo. A força motriz do romance é, afinal, a própria consciência que os estudantes ganham de si, da sua identidade e da sua sexualidade, face ao sucedido, como se o tornar público de algo inominável e proibido despoletasse toda a libertação de desejos e pulsões íntimas. Um grupo de raparigas adolescentes ganha assim consciência do poder que detêm, nomeadamente quando são chamadas a reunir com um psicólogo que de alguma forma procura remoer o assunto de modo a assegurar que do escândalo não resultam traumas e mazelas. Se, por um lado, parece haver um tratamento cuidadoso e púdico do tema, por outro lado, a publicidade repentina que a escola sofre vai ser aproveitada como intriga central de uma peça de teatro que será inteiramente concebida e interpretada por um grupo de actores no primeiro ano do Instituto, uma escola de artes dramáticas local de grande reputação. Todos os anos é pedido aos jovens actores que criem a sua própria peça, de modo a mostrar aos professores bem como a toda a comunidade o seu valor e o próprio tema da peça é sempre mantido em segredo mesmo junto dos professores. Esta peça resolve converter o escândalo num espectáculo e, tal como o próprio título indica, ao longo da obra cada acto e cada gesto parecem resultar numa performance teatral. Os próprios diálogos parecem por vezes solilóquios dramáticos, e o livro acompanha afinal os ensaios desta peça que servirá de afirmação aos jovens actores, da mesma forma que este momento da vida das jovens protagonistas (e de um único rapaz, Stanley), entre os 15 e os 18 anos, se pode definir como uma prova de acesso, retratando-se os dilemas e os conflitos emocionais que definem estas idades. O final da adolescência surge assim como ensaio da própria idade adulta, em que é preciso experimentar e arriscar de forma a descobrir. A comprovar que são os adolescentes que ganham protagonismo no livro temos o pormenor de que todos os jovens têm nomes enquanto que os adultos, isto é, os professores ou pais, são apenas designados pela sua profissão: professor de Movimento, psicólogo, etc.

A conduzir a intriga temos a figura um pouco soturna e misteriosa da professora de Saxofone. Esta figura que se coloca sempre distante, enquanto observadora, tem no entanto a capacidade de manipular as pessoas que passam pelo seu estúdio: não somente as alunas inocentes e ignorantes dos meandros da complexidade e da maldade humana, mas também as mães que desesperadamente parecem apelar à professora que tenha uma atenção especial para com as suas filhas. No final do livro temos um momento muito bem orquestrado em que já não sabemos, de tal forma se cruza o ensaio com a realidade, se foi a professora a manipular duas das suas alunas a unirem-se amorosamente, numa espécie de compensação da história amorosa que ela nunca teve com a sua própria professora, que terá recusado os seus impulsos, ou se são as próprias alunas a vingar-se da professora por ter tentado manipular as suas vidas.

A única personagem central masculina, Stanley, é um jovem actor promissor, tão competente que veste completamente a personagem de Mr. Saladin, desempenhando o seu papel até às últimas instâncias, quando, no final do romance, se apercebe de que está a namorar a irmã da jovem vítima de assédio sexual e ele próprio tem 18 anos, enquanto ela ainda não atingiu a maioridade. Numa espécie de reviravolta própria das antigas tragédias gregas, a própria jovem só irá tomar consciência na noite de estreia da peça, à qual levou os pais para lhes poder mostrar o seu novo namorado. Temos ainda o pai de Stanley, psicólogo, que mantém um sórdido jogo psicológico com o filho, que consiste em tentar chocar o outro com as mais ordinárias piadas relacionadas com pedofilia. Em suma, temos um livro que toma como ideia central o facto de que todos nós usamos máscaras e desempenhamos constantemente um papel, e mesmo quando algo muito íntimo deflagra e se torna do domínio público, como o escândalo sexual entre Victoria e o professor, as fronteiras entre o real e a ficção continuam difíceis de esbater.

A segunda obra, Os Luminares, publicada pela Bertrand, confirmou, quatro anos depois, o talento ficcional da autora que arriscou com um livro denso de 888 páginas, cuja originalidade foi reconhecida com o Man Booker Prize 2013, o que faz de Eleanor Catton a mais jovem autora de sempre a receber o prémio bem como com o romance mais extenso.

Numa noite de tempestade, para realçar desde logo o ambiente de mistério, um jovem de Edimburgo, Walter Moody, entra no primeiro hotel que lhe aparece assim que desembarca da sua viagem até à cidade de Hokitika, na Nova Zelândia. É curioso notar como ao tentar guiar-se pelas estrelas, o jovem descobre que o céu agora lhe aparece invertido, com as constelações fora do seu lugar habitual, o que acentua todo o sentimento de estranheza em que se vê mergulhado bem como do que se seguirá. Apesar de abalado pelo incidente sobrenatural que presenciou no barco, aperceber-se-á que interrompeu uma reunião entre 12 homens que estão, eles próprios, a tentar deslindar o seu próprio mistério, cujo segredo cruza peças tão díspares como uma prostituta, um traficante de ópio, um jovem misteriosamente desaparecido, uma fortuna desaparecida e a, até então, desconhecida viúva de um eremita, também vidente.

Os Luminares situa-se, ao jeito pós-moderno, entre géneros, pois tem tanto de romance policial como de romance histórico, e arrisca a vários níveis: inovador pelo tema, com um mistério por resolver no século XIX; pelo número extenso de personagens, pois em torno desse mistério agrupa-se o destino desses 12 personagens, desde europeus a chineses, passando por uma personagem Maori, o que serve para definir a variedade intercultural desse novo mundo; pela estrutura que lembra a dos romances vitorianos, com pequenos resumos dos acontecimentos centrais de cada capítulo a abrir o mesmo; pela divisão do livro em várias secções, novamente em doze, bem como pelo tratamento sequencial da intriga, que no final, é contada de trás para a frente, em capitulos cada vez mais curtos, dado o conhecimento prévio que o leitor tem do que já leu e cujas peças começam finalmente a fazer sentido; e pela novidade da introdução de cartas astrológicas a abrir cada secção do romance, onde há inclusivamente a referência da posição dos planetas nas respectivas casas. Um desafio a não perder!

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.