Demon Copperhead da romancista, ensaísta e poetisa americana multipremiada Barbara Kingsolver, foi publicado no final do ano passado pela Suma (Grupo Editorial Penguin Random House), com tradução de Manuel Santos Marques.

É mais um daqueles romances extensos e pesados cuja leitura fui adiando mas que se lê, honestamente, de uma penada.

Romance bestseller do New York Times, do Wall Street Journal, do Washington Post e do Sunday Times. Vencedor do prémio Pulitzer em 2023 e do Women’s Prize for Fiction, Demon Copperhead baseia-se em David Copperfield, de Charles Dickens, para nos contar uma história sobre adição (alcoolismo e opiáceos), carência, violência doméstica, famílias desagregadas, e o tratamento desigual de comunidades carenciadas. Este romance aborda assim questões bastante difíceis, a par de temas universais como o amor, a família, a pobreza, e o poder redentor da amizade e da arte. Contudo, Demon narra-nos a sua própria história com tal leveza e graça, com um humor ácido e uma sátira corrosiva tão envolventes, que o leitor – várias vezes interpelado directamente pelo narrador na terceira pessoa (“caro leitor”) – não pode senão dar por si completamente enlevado. Mas é também com raiva que Demon nos fala, demonstrando, pela sua própria voz implacável, a sua capacidade notável e sobrehumana de sobreviver nas mais atrozes condições. À medida que, no desenrolar da acção, Demon se vai afundando, o humor também se esbate finalmente ou adquire contornos mais negros.

“As pessoas como eu têm milhões de caminhos pelos quais podem seguir para se lixarem, e eu nunca seguira por nenhum que me levasse a outro sítio.” (p. 303)

Em casa e na América tudo bem…

Demon Copperhead cresceu com a mãe adolescente nas montanhas do sul dos Apalaches. Do seu pai fantasma, apenas guarda a boa aparência e o cabelo acobreado (que explicam a sua alcunha de “Cabeça-de-cobre”, nome que aliás partilha com uma espécie de cobra). O filho e a mãe têm uma boa relação, não obstante as suas particularidades, como a mãe estar a tentar manter-se afastada do álcool, e confidenciar sobre homens com o filho como se ele fosse a sua melhor amiga. Na verdade, é Demon quem mais cuida da mãe e desde novo sente o peso da responsabilidade de a proteger, mantendo a ilusão de que em casa está tudo bem. Tudo parece tranquilo, dentro dos parâmetros do normal possível, até que a mãe se decide casar com um homem musculado e violento, de apelido Stoner, que reduz a mãe a uma sombra de si mesma, ao mesmo tempo que desfruta de um particular gozo ao torturar o jovem Demon.

Charles Dickens escreveu David Copperfield, muitas gerações antes, a partir da sua experiência como sobrevivente da pobreza institucional e denunciando as suas consequências nocivas para as crianças na época em que viveu. Ou, nas palavras de Demon, um livro de “um estrangeiro que já morreu há que tempos, mas, cum canceco, se ele percebeu como as crianças e os órfãos são intrujados e toda a gente se borrifa para isso. Poder-se-ia pensar que ele era destas bandas.” (p. 441)

Barbara Kingsolver retoma esta questão à luz de décadas mais recentes, entre os anos 1980 e o início de 2000, denunciando, num enredo romanesco magistral, a crise de opiáceos da América assim como o tratamento prejudicial de comunidades carenciadas e difamadas, os pategos, os labregos, a gente rasca… Ou seja, o tecido social dos Apalaches.

Tudo é comercializável

“O problema de ficar a conhecer as raízes é que acabamos com vontade de ir ao focinho de alguém (…). Outrora, tivemos um modo de vida que consistia em Deus e pátria. Depois o mundo mudou e deixou de haver Deus e pátria, mas continua-nos a correr no sangue a noção de que o carvão é uma dádiva divina, e queremos acreditar nisso. (…) Tudo o que se podia aproveitar desapareceu. As montanhas com os cumes rebentados, os rios poluídos. O meu povo morto de tanto tentar, ou para lá caminha, viciados como estamos em manter-nos vivos. Aqui não há mais sangue para dar” (p. 335)

Demon descobrirá ainda como muitas das coisas que o seu povo tem feito para sobreviver, como cultivar, pescar, caçar, produzir as suas bebidas alcoólicas, são precisamente os aspectos distorcidos numa campanha de difamação do poder de modo a virar a opinião pública contra os nativos. Tudo começa com George Washington a lançar o exército dos EUA numa ofensiva contra o povo de Demon, porque este se recusava a pagar um imposto sobre o whisky de milho que era produzido apenas para consumo caseiro.

Quando Demon se vê sem mãe e sem tecto, inicia um périplo de sobrevivência onde aprende como as crianças podem ser tratadas como produto, rodados e comercializados em casas de acolhimento, e é enviado para onde quer que precisem de “um corpo adulto que não tem capacidade de ripostar” (p. 262). Grande para a sua idade, será depois tratado como mão-de-obra escrava, numa quinta de produção de tabaco financiada pelo governo, e, mais tarde, dá por si a trabalhar num laboratório de metanfetamina (algo de que só anos depois tomará consciência).

“Uma boa história não se limita a copiar a vida, contraria-a” (p. 607).

Nesta sua narrativa, ou na “lenta viagem de autocarro da merda da minha vida” (p. 301), Demon conhece mineiros cujos pulmões foram destruídos pela poeira de carvão e amianto, jovens que se viciam desde novos em comprimidos facilmente adquiríveis em farmácias, homens com esquemas de venda de produtos para perder peso, médicos de verdade com “negociatas” de traficantes de comprimidos a enriquecer com a nova filosofia americana de gestão da dor, e pessoas cuja influência é tão destrutiva como uma droga, pois têm “no seu âmago um veneno delicioso que contagiava as pessoas e era viciante” (p. 577).

Barbara Kingsolver nasceu na zona rural de Kentucky e em criança viveu com a família em África. Vive atualmente na Virgínia. Formou-se e trabalhou em Biologia, antes de se tornar escritora. Em 2000 fundou o prémio Bellwether para apoiar literatura que aborda questões sociais. Recebeu a Medalha Nacional de Humanidades pelas suas contribuições para o entendimento da sociedade norte-americana. Os seus livros têm sido amplamente traduzidos e ganharam inúmeros prémios.

Demon Copperhead foi bestseller imediato, venceu o Pulitzer de Ficção, o Women’s Prize for Fiction, esteve na shortlist do Prémio Orwell de Ficção Política e foi selecionado pelo Oprah Book Club.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.