David Machado nasceu em Lisboa em 1978, e a sua obra tem sido publicada pela Dom Quixote.
O seu Índice Médio da Felicidade foi adaptado ao grande ecrã, com realização de Joaquim Leitão e participação do autor na elaboração do guião. O livro foi vencedor do Prémio da União Europeia para a Literatura, prémio aliás que abriu portas ao autor, pois levou a vendas de direitos para uma dezena de países, tradução dos seus livros anteriores, a premiação da edição italiana e a participação de David Machado em vários festivais e feiras do livro.
Um livro que levou cerca de três anos a ser escrito, conforme se sente na tessitura narrativa, mais burilada, e a procura de uma originalidade no estilo e na forma como tenta cruzar três narrativas diferentes, sem propriamente simplificar a história, cingindo-as a um enredo único. Na segunda parte do livro existe mesmo um jogo literário mais evidenciado, na forma como o autor inova e procura reflectir sobre o processo da própria escrita. Processo esse que «Custa tanto» conforme as suas personagens referem.
O autor inova ainda, particularmente na primeira parte, e naquela que é a narrativa mais forte e que mais marcas deixará certamente no leitor, ao adoptar uma voz narrativa feminina, pois as suas personagens anteriores são maioritariamente masculinas. Apesar de inicialmente a voz da personagem de Júlia nos parecer encaminhar para uma história de violência, pelo modo como deixa perceber, gradualmente e sempre de forma ambígua, como esta adolescente terá sido vítima de maus tratos ou de abuso há cerca de um ano, sem nunca se deter propriamente nesse episódio, para que o leitor o capte e veja na sua totalidade, esta jovem irá revelar como se convive com uma dor profunda, que se tenta camuflar na esperança que adormeça. A história desta adolescente de dezanove anos, emancipada, magoada, que sente repúdio de qualquer contacto físico ao mesmo tempo que, paradoxalmente, sente as lágrimas virem-lhe aos olhos assim que lhe tocam, é um desvelar de como se vive o trauma e a dor, a memória de um acto profundamente doloroso, físico ou emocional, que deixa marcas duradouras e impressões indeléveis, debaixo da pele. Pode até parecer um cliché a forma como uma das constantes da vida de Júlia, mesmo dentro do casulo do seu quarto, ser o barulho constante das discussões acesas do casal vizinho, como um ruído de fundo à história de Júlia, conforme lida com a depressão e o trauma do que lhe aconteceu, e da forma como isso a impele a querer salvar uma menina de cerca de cinco anos, a filha do casal do lado, cujo som de desamor atravessa as paredes e atinge o âmago da dor que Júlia procura disfarçar. Ver artigo
David Machado nasceu em Lisboa em 1978 e a sua obra tem sido publicada pela Dom Quixote.
O seu Índice Médio da Felicidade é uma história já apresentada por mim no Cultura.Sul, foi adaptado ao grande ecrã e vencedor do Prémio da União Europeia para a Literatura. Ver artigo
Rodrigo Guedes de Carvalho, nascido em 1963 no Porto, é uma presença assídua na vida de muitos portugueses, como apresentador do telejornal das 20 h na SIC, mas é bom lembrar que já escrevia antes de se tornar conhecido como pivô e nos entrar pela casa dentro. Escreveu ainda argumentos cinematográficos, como Coisa Ruim, filme realizado pelo irmão Tiago Guedes, e um guião para teatro. Pertenceu à direcção de informação da SIC entre 2007 e 2016, interregno em que suspendeu a sua paixão pela escrita. Dez anos depois do seu anterior romance, Canário, Rodrigo Guedes de Carvalho regressa à ficção, com O Pianista de Hotel, o seu quinto romance, publicado em Maio de 2017 pela Dom Qixote, e que soma já várias edições.
Apesar da frase colocada em epígrafe do livro, «Boy meets girl», apresentada como «Ideia de Hitchcok para um filme», nestas páginas não se toca nenhuma melodia de amor nem nenhum ambiente de fundo como música de hotel ou de elevador. A melancolia é aliás o tom dominante.
Vivem ambos na mesma cidade, o que começa a aproximar-se mais das comédias românticas de Woody Allen pois imagina o leitor uma série de peripécias e encontros que os irão aproximar. Mas o narrador vai apenas e sucessivamente apontando as várias ocasiões em que se frustrou um encontro entre Maria Luísa e Luís Gustavo, os dois protagonistas centrais da história, que aliás partilham um nome próprio comum: «Luís Gustavo ainda não sabe, mas irão jantar no restaurante onde Maria Luísa trabalha.» (p. 183). Mas nem essa afinidade do nome os salva dos recorrentes desencontros. Os capítulos são normalmente alternados, centrados em torno de cada uma destas personagens, e os episódios são muitas vezes apresentados na sua simultaneidade, como se pode ler logo no segundo capítulo: «Sensivelmente à mesma hora, num outro ponto da cidade, mas afinal tão parecido.» (p. 25). Esta técnica narrativa aproxima aliás a prosa do autor da escrita de argumento.
Maria Luísa e Luís Gustavo partilham também a condição de orfandade, pois se ele foi abandonado pela mãe, logo após o parto, ela perdeu a mãe quando tinha dezasseis anos. Apesar da superlativa beleza de Maria Luísa, que o narrador por pudor e respeito se esquiva a descrever com exactidão para não a surpreendermos à saída do duche, invejada pela mãe que se sente traída quando o seu parceiro tenta violar a filha, embora possamos presenciar em vários momentos como outros se viram para olhar o corpo magnífico de Maria Luísa, apesar de até uma médica colocar em risco a sua carreira para pode chegar a esta jovem empregada de mesa num restaurante, apesar do refrão que perpassa no romance «O nosso corpo chega sempre aos outros antes de nós», a solidão de Maria Luísa permanece e nada a parece resgatar da monotonia. Maria Luísa vê-se mesmo incapacitada de amar a cínica tia, o único familiar que lhe resta e que a nomeará sua herdeira. Podemos remeter-nos, uma vez mais, para as frases em epígrafe do romance e que dão o tom da narrativa, neste caso um excerto da letra da música «Eleanor Rigby» dos The Beatles: «Ah, look at all the lonely people».
À solidão junta-se um sentimento de frustração ou de insatisfação pois todas as personagens se sentem aquém das suas possibilidades e desejos: Maria Luísa não pôde prosseguir os estudos, Luís Gustavo queria ser médico mas ficou-se pela profissão de enfermeiro, o cirurgião Paulo Gouveia sente-se cansado da sua carreira, a mãe de Maria Luísa, «segunda secretária de um subsecretário» aspirava a mais mesmo que para isso usasse o corpo (ao contrário da filha, que nem se apercebe do corpo que tem), Saul Samuel que passou a vida como bailarino numa discoteca gay até que se cansa, mas sem saber o que fazer depois. A morte, que aparece transfigurada ou personificada logo no primeiro capítulo, quando Maria Luísa tem a visão do fantasma da mãe, é o desfecho que precipita uma série de desencontros afectivos, como se as personagens apenas se dispusessem a querer tocar os seus entes queridos quando confrontadas com a inevitável realidade da sua ausência, o que leva, por exemplo, Pedro Gouveia a transferir o seu amor pela filha para o enfermeiro Luís Gustavo. Ou o acto falhado do amor que Saul Samuel alimenta por Rui Begonha, que ao deixar desabrochar a sua homossexualidade nos seus breves encontros com Saul Samuel acaba por depois se fixar num outro homem, apesar de ser Saul Samuel a vítima da fúria física dos filhos, quando descobrem da homossexualidade do pai. Ou a mãe de Luís Gustavo que carrega o peso da culpa de ter abandonado o filho mas nem sabe o quão próximos estão nem o procura.
Existem duas descrições de actos ou (des)encontros sexuais, mas estes são tão bruscos e violentos, que parecem apenas corroborar a solidão como condição humana inviolável e o sexo como choque de corpos e vontades onde há pouco espaço para uma comunhão. A cena em que Rui Begonha tenta sexo anal com a mulher nada tem de desejo ou de paixão, pois é exclusivamente dominada pelo desespero, uma vez que ele é movido pela descoberta desconcertante de que se sente atraído por homens, enquanto ela se submete para tentar salvar o casamento. A outra cena entre Maria Luísa e Saul Samuel, dois melhores amigos, ou companheiros de jornada que tentam amenizar a solidão na companhia um do outro, acabam por se atirar um ao outro num impulso de fome de contacto físico, apesar de Maria Luísa estar perfeitamente ciente da homossexualidade de Saul Samuel.
A escrita de Rodrigo Guedes de Carvalho respira vitalidade. O autor não teme inovar e verter a sua prosa narrativa segundo uma plasticidade muito própria, onde desconstrói convenções de pontuação ou de apresentação gráfica. A linguagem no romance, muitas vezes crua e gráfica, pode chocar mas a verdade é que o autor procura retratar a realidade como ele a vê e como tantas vezes ele próprio no-la apresenta nesses estilhaços que enchem as telas dos nossos televisores. Por isso, se a linguagem muitas vezes gráfica é apenas espelho da realidade linguística, tentando aproximar-se do modo como as pessoas realmente falam, se a prosa é crua e directa, a melancolia ou pessimismo que dominam o romance podem também ser um desassombro face à realidade. O autor parece tomar posição contra o cor-de-rosa das histórias de amor e o tom delicodoce que invade as manhãs de televisão com programas genéricos que acompanham uma larga camada da população: «Vê por vezes, sobretudo em programas de televisão, que há nesta altura inúmeros especialistas em decifrar sentimentos e apontar soluções, tão seguros e confiantes que a gente se sente logo segura e confiante ao ouvi-los.» (p. 105). O narrador adopta um tom muitas vezes crítico ou até moralizador: «Imaginemos, os que de nós ainda conseguirem esse prodígio de memória, o que é crescer, num período que é só incertezas, com a certeza de que o mundo já nos tirou a fotografia.» (p. 38).
Voltamos às epígrafes, desta vez uma citação de Shakespeare: «O homem que não é sensível à música,/Que não se comove com a harmonia dos doces sons,/Nasceu para as traições, os ardis, os roubos;/Os movimentos do seu espírito são surdos como a noite».
Pode ler-se a certa altura que a televisão «faz companhia às pessoas que vivem sozinhas» (p. 416). Mas só a música parece ter o condão de matar a solidão das pessoas, como acontece com o pianista de hotel ou o artista de rua que faz Maria Luísa parar e escutar. Porque «a música, a arte, é a única coisa do mundo que pode ser bela sendo triste.» (p. 424). E apesar de o ruído e o som, próprios de uma grande cidade, estarem sempre presentes desde as primeiras linhas, é a música que surge como bálsamo, apesar de muitas vezes mal darmos por ela ou pelos artistas que no-la trazem, o que leva, por exemplo, a que Luís Gustavo e o médico Pedro Gouveia sejam tocados pelo pianista de hotel, e saberem ler os seus estados de alma pelas músicas que toca, enquanto os outros clientes do bar do hotel parecem nem dar por ele. A música assemelha-se assim ao ritmo da nossa pulsação, ao tempo da nossa respiração, como algo que nos revela continuarmos vivos: «a sensação de conforto, digam o que disserem, está muito dependente do bater do coração» (p. 110). E mesmo que esta seja uma “anti-história de amor”, apesar de se poder ler algures que «os escritores não têm de sentir nada, ou querer significar nada, têm é de escrever» (p. 391), Rodrigo Guedes de Carvalho deixa-nos uma intrigante e inquietante narrativa, mesmo que no «último capítulo», e note-se o fatalismo, se confirme o permanente desencontro do não-par amoroso, uma narrativa híbrida como a melódica onde o pungente convive com o belo, e onde tal como o teclado do piano ou a melódica que requer sopro, o instrumento nunca toca sozinho, como uma obra que só ganha som quando lida. Mas se um artista de rua quando toca, toca para si mesmo, será que um escritor quando escreve, escreve apenas para si? Ou pretende tocar outros, mesmo os mais desatentos e os mais embrutecidos? Ver artigo
Bruno Vieira Amaral estudou História Contemporânea, é crítico literário, ensaísta, vencedor do Prémio José Saramago, entre outros, com o seu primeiro romance, As Primeiras Coisas (2013), e foi nomeado em 2016 como Uma das Dez Novas Vozes da Europa.
Embora o mote do romance seja apurar a verdade por trás do assassínio do primo João Jorge, morto no bairro em que ambos viviam na década de 80, essa sua investigação rapidamente se impõe como «estratégia de recuperação e construção da sua própria memória». Alerta o narrador logo na primeira frase do romance, «Para mim, João Jorge nasceu na noite em que o mataram», para a génese de uma personagem e de uma obra criadas em torno do que sobeja do real.
Ao jeito de O Delfim, em parte romance policial, com recurso às mais diversas fontes – testemunhos, arquivos judiciais, notícias da época –, em parte teoria da escrita do próprio romance, com constantes citações e referências literárias – o próprio título da obra é uma citação bíblica –, Hoje estarás comigo no Paraíso é um magnífico exercício de reescrita do passado, onde o autor põe a nu (ou assim o faz entender) o seu método de pesquisa ou a forma como conduziu a investigação, se convoca para o texto, pois o narrador é claramente associado ao próprio autor, e conforme nos narra episódios da sua infância e juventude, evocados por associação directa no decurso da sua procura pela verdade, traça ainda uma história da sua família, da vida num bairro da margem sul, e da Angola antes da independência, sem qualquer pudor em apresentar um mundo inteiramente marginal, logo ali ao lado da metrópole, como alguns autores brasileiros tantas vezes procuram fazer, de modo a retratar uma realidade crua, violenta, visceral, que está para além da fantasia telenovelística. Ver artigo
Nascido na Foz do Douro a 12 de Março de 1867, Raul Brandão é um autor quase esquecido apesar de ser um dos grandes nomes da nossa literatura, especialmente por aliar a modernidade no trabalho sobre a linguagem, contemporâneo de James Joyce ou Virginia Woolf, à metafísica e à existencialidade do Homem.
Felizmente, a Revista Estante da Fnac mediante um júri de 5 elementos nomeou Húmus como uma das 12 melhores obras da literatura nacional dos últimos 100 anos, e este ano foram ainda publicadas pela Quetzal as Memórias do autor. Celebram-se este ano 130 anos sobre a data de nascimento de Raul Brandão, o que parece justificar o lançamento no passado mês de Abril pela Ponto de Fuga desta bela e cuidada edição de O Pobre de Pedir (onde não faltam fotografias) que inclui um elucidativo prefácio do autor açoriano João de Melo, onde está bem patente a sua admiração por este mestre da linguagem que aliás parece ter influenciado a sua própria escrita e onde, talvez porque narram as suas ilhas, não deixa de tentar justificar que acha As Ilhas Desconhecidas uma obra rival «em qualidade e inovação» a Húmus. Segue-se uma apresentação do editor, onde se incluem excertos de cartas, e se explana que esta foi a derradeira obra do autor, escrita em cerca de 3 meses, sendo que não terá havido, infelizmente, tempo para revisões pelo próprio. A edição aqui apresentada de uma novela há muito ausente das livrarias procura restituir o texto à sua forma original, ignorando alterações ao manuscrito introduzidas pela devota esposa do autor, Maria Angelina Brandão, que na sua maioria não tinham «razão ou critério objetivo». Sem querer apresentar o original de 1931 com as suas variantes fastidiosas notas de rodapé, a presente edição procura «apresentar o mais fielmente possível o conteúdo do manuscrito, atualizando a ortografia e corrigindo apenas gralhas evidentes».
Escreve João de Melo que O Pobre de pedir mantém uma «estrutura fragmentária» e o «monólogo interior», numa «dualidade típica» recorrente à escrita do autor. São duas histórias paralelas, narradas na primeira pessoa, onde se confronta a natureza íntima do homem com a sociedade, e tudo é questionado, em especial a efemeridade da vida e a morte, como signo omnipresente no universo brandoniano, sendo que a obra ganha ainda mais sentido se considerarmos que o autor esperava já esse ocaso conforme lutava por terminar o seu manuscrito. Ver artigo
A Casa das Tias, publicado pela Teorema, é o romance de estreia de Cristina Almeida Serôdio. A autora nasceu em 1958 no Porto e é mestre em Literatura Portuguesa Moderna pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde foi professora convidada entre 1991 e 2006. Professora de Português e de Literatura Portuguesa no ensino secundário, investigadora do Centro de Estudos do Teatro, publicou trabalhos sobre literatura, teatro e sobre a educação literária dos jovens. É ainda co-autora do Programa de Literatura Portuguesa do 10.º e do 11.º anos.
A Casa das Tias é uma promissora estreia literária, pela elegância e poesia da escrita em que a autora apresenta uma história de família de modo fragmentado e recortado, como um enigma ou um álbum de família composto por fotos em tons sépia, como na capa, ou mais geralmente em fotos de cores vivas que retratam o percurso das duas tias e dos irmãos, bem como dos que se sucederam na família: «A casa dali era a casa das tias, assim o dizíamos nós e a nossa mãe, no tempo em que o mundo parava nos eternos dias de Setembro da nossa infância feliz, cheia de mimos.» (p. 181)
O livro é narrado numa sucessão de episódios, muitas vezes breves, constituíndo capítulos curtos, intitulados de forma sugestiva e em jeito cúmplice com o leitor, como no primeiro capítulo: «Eram duas as tias».
A herança
A história começa naturalmente pelo fim, isto é, num tempo presente mais próximo ao leitor em que M., a herdeira, recebe a casa na aldeia em Constantim onde as tias Teresinha e Francisca sempre viveram: «Ficaram ali para sempre. Os irmãos saíram cedo de casa. Os mais velhos para trabalhar em Lisboa, os mais novos para estudar no liceu e se formarem depois.» (p. 6). Apesar de as tias serem solteiras e sem filhos conseguem manter este legado da família que teria cabido a todos os irmãos por igual, e aos seus descendentes, se não fosse um estranho revés do destino: «A casa com cem anos que ficou para M. de modo inesperado era a casa das tias, a dos pais do seu avô materno, onde elas viveram a vida toda. Era a casa de um lavrador rico com nove filhos, melhor, oito, com a morte de uma menina muito nova que não conheceu, nem de fotografia.» (p. 5). Ao herdar a casa, M. herda ainda os sussurros da memória, os objectos perdidos, meio trastes, meio relíquias, e as fotografias, e, como se pode deduzir da passagem anterior, mesmo quando não há registo ou instantâneos que o comprovem, M. reúne ainda as histórias de família que foram passadas de boca em boca. Existem ainda agendas, cartas (pelo menos até à década de 50, até serem substituídas pelo telefone), cadernetas do liceu… Mas as histórias são muitas vezes apenas rumores e deduções e não encerram todo o passado ou toda a verdade: «Nunca se casaram. Talvez por não haver na aldeia noivos da mesma condição dos irmãos. Conta-se que a mais velha teria gostado de um rapaz dali, que a ela se chegara, mas tinha interrompido a voz do coração e feito com a irmã um acordo para a vida. Prometeram as duas ficar sós e amparadas uma à outra, a gastar os dias naquele lugar parado e seco, com pouco mundo para além da gestão do azeite e das uvas, dos bordados e das missas.» (p. 6). Desta passagem, destaque-se o advérbio Talvez ou a forma verbal Conta-se que são palavras recorrentes na narrativa e que ilustram como se tenta narrar uma história a partir de suposições e, ao jeito de qualquer narrativa que se preze, do divagar e do fazer de conta. Oscilamos entre o facto e o rumor, o imaginado e o vivido, o afirmativo e o negativo ou a certeza e a dúvida, mas no fim é como nos diz a voz narratorial: «De que mais precisa um escritor senão de assunto?» (p. 196).
Recuperar o fio da história
Em quase todos os capítulos, em jeito de conclusão, existe um depoimento de M. que nos é transcrito ou transmitido pela narradora – nem mesmo no fim saberemos se é de facto uma narradora, apesar de se referir que foram colegas do colégio, mas preferimos acreditar que sim…
A narradora está sempre presente no livro, como uma cúmplice de M., e é a ela que cabe, mais do que ouvir e reunir os fragmentos das memórias da amiga, reinventar e reencaixar as peças de um passado fragmentado e incompleto: «Fala-me dos tios em pequenas histórias, algumas já conhecidas, porque as contava nos dias do colégio para nos entreter. São momentos de maledicência benigna, caricaturas de figuras da casa com qualquer coisa embaraçosa e ridícula, fixada por repetidos recontos.» (p. 196). Ainda que lhe tenha delegado expressamente essa tarefa de cronista, M. por vezes exaspera-se com a amiga e narradora e prefere rasurar as releituras que esta faz, não sabemos se num assomo de pudor da verdade ou de manter o bom nome da família: «M. não quer que continue, não percebe o interesse desta história, diz que é melhor ficar o que está como está.» (p. 75); «M. acha cruel o que escrevo. Que não devo escrever tudo o que conta.» (p. 30); «M. acha que são de folhetim estes bocados, que me desvio da verdade, invento muito.» (p. 95). A narradora chega aliás mesmo a narrar em alguns momentos como episódio verídico aquilo que não passa de congeminações como no final declara.
Incestos e convenções
A Casa das Tias é também uma viagem através do século XX, a um tempo de convenções e etiqueta romântica, com pontuais referências históricas ou a figuras como a de Salazar, muito parecido com um dos irmãos. Contudo é curiosamente o tempo presente que impera na narrativa, como se apesar do desalinho da casa que é preciso reorganizar, o passado fosse visto como um instantâneo fotográfico que se projecta como um filme na tela a decorrer aqui e agora: «Afonso é o mais bonito dos filhos rapazes, com grandes olhos cor de mel, expectantes. Tem um nariz forte, o cabelo liso e vigoroso, a boca larga desenhada no rosto claro.» (p. 32).
Ainda que vivessem na aldeia a verdade é que nem por isso as vidas das tias eram completamente secas ou paradas, uma vez que iam por vezes passar longas temporadas a Lisboa, ficando hospedadas na casa do irmão Afonso que lhes dava todos os mimos que se podem prestar a uma amada. Reina, novamente no campo da dúvida e da suposição, a ideia de que há algo de levemente incestuoso no sentimento das duas irmãs pelos seus manos solteiros que por vezes também vêm à aldeia «passar muitos dias, em busca de mimos.» (p. 125). As suas vidas não são aliás realmente vazias, como ficamos a saber por exemplo na passagem em que Teresinha terá salvo um rapaz do Outeiro de uma perna com gangrena, «livrando-o de uma amputação certa, já marcada» (p. 126).
Teresinha, porque reconhece que «terá chegado o momento em que as duas ficarão solteiras para sempre, declaradamente tias, espera que elas possam conquistar o direito aos diplomas de Professoras de Corte e de Contramestras de Costura, que lhes servirão, tanto de ornamento como de instrumento de trabalho, caso precisem.» (p. 127). Não sabe ela que os irmãos se conluiam entretanto para salvaguardar os seus direitos apesar de as irmãs serem membros marginais na família, na medida em que não darão frutos, em detrimento inclusive do irmão Afonso, que recebe um duro golpe capaz de dividir a família quando sabe da alteração ao testamento. O que é facto indiscutível é que a certa altura as tias passam por uma transformação quando se tornam inegavelmente avarentas. Talvez por saberem que no seu mundo não há espaço a mulheres independentes, até porque estas estão aquém?
«A crosta do pão recente estala-lhe nos dedos e nem fala, admirada com o que o irmão Afonso conta ao pai sobre as suas funções, a justiça, o país, o mundo vibrante que escuta, ávido, na telefonia e lê nos jornais. Os homens discutem as notícias, sabem o nome de países, capitais, tratados, e tudo parece natural e fluido como as conversas de todos os dias.» (p. 149).
Apesar de apaixonada por Joaquim, Francisca recusa a possibilidade de um amor com um rapaz de aldeia, porque este poderia nunca estar à altura dos seus, da casa, de si…
«De novo, no escuro, a dúvida antiga, corrosiva. E se quisesse dela só o que ela tinha, ou teria um dia? Se o desejo fosse só desejo de uma vida rica?» (p. 151).
Respira-se no texto, pela densidade da memória circular ou fragmentada e nem sempre linear, pela respiração da casa como entidade viva, uma narrativa tecida com esmero com passagens belíssimas remanescente de feminismos, como quando se fala na toilette pensada e anotada como entrada de diário, na costura, no anseio por uns braços que nos cinjam na noite. Ver artigo
A vida política Ver artigo
A desconstrução do silêncio Ver artigo
Este é talvez o livro mais intrigante (e para alguns poderá ser desconcertante) que li recentemente desta nova e jovem voz da literatura portuguesa, finalista do Prémio Leya, publicado pela editora casa das Letras, mas com outros romances já publicados e com colaboração assídua na imprensa de crónicas e artigos.
Sem querer adiantar algumas das surpresas do livro para não tirar a devida surpresa ao leitor podemos começar por situar a acção num tempo incerto, numa localidade rural onde se sente a primitividade de tempos remotos, que mais tarde saberemos ser na noite de 2 de Fevereiro de 1893, anos antes da morte do rei D. Carlos e do fim da monarquia.
O início do livro lembra um romance gótico ou, na tradição portuguesa, um episódio de Montedemo, de Hélia Correia, quando a população da aldeia sai em peso armada de forquilhas e archotes para expurgar um pecado hediondo, sempre nomeado mas nunca explicado até vários capítulos depois, fazendo justiça pelas suas mãos como forma de expulsar o Diabo das suas terras. A voz narratorial ou a forma como a autora escolhe narrar a história é um dos pontos fortes do livro. No primeiro capítulo, quando nos vemos apanhados numa míriade de vozes em catadupa, onde o leitor toma conhecimento da acção através da corrente de consciência das personagens, e do seu discurso tantas vezes entrecortado e interrompido, o narrador quase parece desaparecer, deixando o palco a esta polifonia de vozes que constituem a aldeia – o que lembra essa quase ausência de voz narratorial em O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge. Por isso mesmo proliferam certos arcaísmos de uma linguagem que se procura mais popular, mas em que prosa é ainda assim muitas vezes poética: «Movem-se os archotes, mais altas do que as chamas as vozes. Movem-se os archotes, e as chamas como que ferem a lua.» (pág. 20). Poderemos ler mais à frente sobre a «noite em que tomaram varapaus e foices, tochas e carqueja, em que se moveram com robustez de passos e com as vozes em tão grande arruído, as vontades como uma só e toda sanha» (pág. 50).
Mas são as personagens de Ana e do padre Engrácio, ausentes dessa turba de «coração empedernido», que se destacam no romance, justamente porque irão salvar do fogo duas crianças, fruto do pecado. Ana e o padre são-nos assim apresentados como figuras de bondade e rectidão, ainda que se movam entre mundos muito distintos: «Disse o padre Deus é grande e depois Rómulo e Remo. O quê, senhor padre? indagou a Ana. Nada que seja importante dar-te a conhecer agora, nem nunca. O padre tem noção de que a sabedoria da Ana lhe vem do coração, dos sentidos e da experiência e que em nada lhe acresceria ter acesso a erudição, conhecer um mito da fundação de Roma para quê?» (pág. 26). E estes mundos tão apartados, que são essa ciência de se ser homem ou mulher, são uma constante ao longo do romance, nomeadamente na forma como o homem é mais virado para a força bruta enquanto a mulher vive de pressentimentos e de conhecimento íntimo que lhe chega do coração. É o caso de Ana, parteira que nunca perdeu uma criança, que vive de uma sabedoria interior e de pressentimentos, ou da Brites parteira e curandeira. Contudo as mulheres são também capazes de crueldade, «piores do que os homens, pois muito entre si pelejavam de língua», como a Ascensão: «uma mulher de maus fígados e de coração enfaixado em liações de crueldade, o Álvaro Bouça é um pau-mandado da mulher, todos o sabem. É ele o regedor, mas é ela que o incita, que lhe sussurra ao ouvido, como a serpente a Eva, todas as decisões que ele deve tomar.» (pág. 35). Talvez não seja por acaso que Ascensão é descrita como sendo de «modos pouco de mulher» e um «ventre seco», à semelhança de Jesuína Palha, essa mulher varonil que em, uma vez mais, O Dia dos Prodígios é quem tem a coragem e a força para matar a cobra voadora, símbolo do pecado, sendo aqui Ascensão quem incitou a população a deitar fogo à casa na orla da floresta onde estavam as duas crianças, e quem depois incita a matar a cadela prenhe, por ser uma lembrança do pecado que tentaram extirpar pelo fogo. O Diabo é assim uma figura omnipresente no romance, cujo rasto se pode encontrar nas mais diversas aberrações, como é o caso do Carrocinha que nasce com «marca da coisa ruim», «mostrengo que nascera de cópula com Satã», mas que a mãe consegue salvar à sanha de uma outra aldeia, mas sem nunca lhe dar um nome.
Nos capítulos seguintes, onde o narrador passa muitas vezes à primeira pessoa, os anos vão-se sucedendo, e a perspectiva vai oscilando de uma personagem para outra, dando conta de como a aldeia parece ter-se esquecido do sucedido, com a consciência aparentemente tranquila ou, como diz o padre Engrácio, «a hipocrisia dos homens é aquilo que melhor os define. Pessoas que vão à missa e que aparentam virtude afinal não passam de sepulcros caiados.» (pág. 51).
Quinze anos depois, coincidentemente no ano da morte do rei e da monarquia (ainda que este fundo histórico seja sempre pouco relevante), chegamos finalmente até Laura e Lourenço Duchamp, no capítulo 6.1 (haverá depois um capítulo 6.2 que dá conta de um romance bipartido a partir daqui entre estes dois protagonistas, como duas metades que se completam, a narrar directamente o que lhes sucedeu), as crianças salvas ao fogo por Ana e o padre e que foram baptizados e entregues a orfanatos distintos. O pecado continua presente, nomeadamente na vida de Laura enclausurada num asilo, protegida dos «vícios que vêm de fora» pois «o mundo é casa do demónio»: «À noite despimos a bata, o vestido e o corpete para vestirmos uma camisa também grossa e longa, parda, (…) claridade não permite que nos vejamos umas às outras, (…) olhar-se e olhar as outras é pecado» (pág. 122).
Somos introduzidos por Ana na segunda parte (e metade) do romance quando dezasseis anos depois regressa ao local do sucedido para, nos capítulos seguintes, recuarmos até ao princípio da história e conseguir perceber afinal esse mistério que se foi adensando desde as primeiras linhas do romance e ainda não desvendado, acompanhando Jacques Duchamp, um desertor do exército francês, pouco depois do cerco de Almeida e pouco antes de Fevereiro de 1811. O narrador é agora omnisciente e leva-nos por vezes a certas prolepses que o confirmam, além de ganhar uma certa ironia que lembra por vezes o jeito de Saramago: «a felicidade não apresenta dados interessantes para deles se fazer história» (pág. 179).
A linguagem é cada vez mais carregada de sentido, conforme o desfecho se aproxima, e prende cada vez mais o leitor que se sente agora puxado para uma alegoria sobre o amor (e que me lembra não sei bem porquê o mito do andrógino) e uma história que é afinal cheia da força do mito; as terras da casa outrora consumida pelas chamas são recorrentemente descritas como sendo o paraíso; António, que parece personificar o mito do bom selvagem, pois era um doutor de leis mas procura um meio de vida mais primitivo e vive como pastor pois um «homem preso a leis é um homem triste»; um gémeo que nasce filho único e desde aí é perseguido por uma saudade e uma solidão incompreensíveis aos olhos de todos (o que lembra este tema explorado na obra de João de Melo, autor açoriano, em Gente Feliz com Lágrimas ou no conto «O gémeo e a sombra»); a mesma solidão que acompanhará Laura e Lourenço; até que regressam finalmente, conduzidos unicamente pelo destino, mas avassalados pelo reconhecimento, à terra e à casa de onde foram arrancados para poder sobreviver, até chegarem a essa paisagem perto da qual corre um ribeiro de águas «tão puras como se apenas a mão do Criador as tivesse tocado num gesto inicial», sob um «céu rosa-laranja-azul como o do início dos tempos», na «primordialidade de um nascer inteiro».
Paula de Sousa Lima é certamente uma nova voz narrativa a descobrir melhor. Ver artigo
«Contos à Moda do Porto de Miguel Miranda» in O Conto Português Pós-25 de Abril. O Grande Prémio Camilo Castelo Branco, Org. de Petar Petrov, Roma Editora, Lisboa, 2012, pp. 105-110. Ver artigo
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