Nascido em 1991 em Bangu, um bairro no Rio de Janeiro, incorre na senda de grandes autores brasileiros que trabalharam a linguagem, como Guimarães Rosa, ou fizeram literatura a partir da realidade visceral, como Rubem Fonseca. Geovani Martins trabalhou como homem-sanduíche, empregado de mesa e ajudante em barracas de praia até se dedicar por completo à escrita, com este seu primeiro livro que se converteu num fenómeno editorial, vendido para editoras de mais de 10 países, aclamado por autores brasileiros e com uma adaptação ao cinema já em curso. No Brasil, este livro já vai na 8.ª edição e vendeu 50 mil exemplares; em Portugal está publicado pela Companhia das Letras. São 13 histórias que compõem um mosaico da vida na favela, escritas por quem lá vive, e com a plasticidade da linguagem da favela, dos marginais, dos toxicodependentes, que apesar do glossário, convenhamos, nem sempre é fácil de acompanhar, com essa gíria de um mundo fora do mundo.
No seu cartão de identificação é designado como pardo. «Sou um negro de pele clara. (…) Cresci ouvindo que era moreno, que não é uma coisa nem outra. A minha mãe e o meu pai são negros, a minha avó paterna é indígena, o meu avô paterno é negro, a minha avó materna, que me ensinou a ler, era branca, bem branca (…); no fim, é tudo uma grande mistura.» (da entrevista a Isabel Lucas, no Público, de 26-07-2019)
Geovani Martins tinha vergonha de dizer que vivia no bairro do Vidigal até que percebeu que essa era a sua identidade e a sua força como escritor, permitindo-lhe escrever sobre o racismo, a clivagem social, a criminalidade.
«É foda sair do beco, dividindo com canos e mais canos o espaço da escada, atravessar as valas abertas, encarar os olhares dos ratos, desviar a cabeça dos fios de energia elétrica, ver seus amigos de infância portando armas de guerra, pra depois de quinze minutos estar de frente pra um condomínio, com plantas ornamentais enfeitando o caminho das grades, e então assistir adolescentes fazendo aulas particulares de tênis. É tudo muito próximo e muito distante. E, quanto mais crescemos, maiores se tornam os muros.» (p. 14)
Um livro que tem tanto de duro como de real, como o sol que arde permanentemente sobre a cidade do Rio de Janeiro, ou como uma cabeça queimada pelo ácido.
« – Vocês só falam de droga, nunca vi.
– Isso é porque o mundo tá drogado, irmão. Até parece que tu não sabe. Já te falei, vou falar de novo: uma semana sem drogas e o Rio de Janeiro para. Não tem médico, não tem motorista de ônibus, não tem advogado, não tem polícia, não tem gari, não tem nada. (…) A droga é o combustível da cidade.» (p. 91) Ver artigo
O Prémio Leya 2018 foi atribuído ao romance Torto Arado do autor brasileiro Itamar Vieira Júnior. O vencedor do Prémio foi anunciado em Outubro de 2017 e a cerimónia de entrega do prémio decorreu no passado domingo, dia 2 de Junho, na Feira do Livro de Lisboa.
Torto Arado é um livro de grande solidez narrativa e que bebe da herança dos clássicos, pois lembra o universo romanesco de João Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas ou mesmo o realismo mágico sul-americano. Aqui a acção não se centra, portanto, nas metrópoles e no caos urbano ao jeito de Rubem Fonseca, mas sim num universo rural, suspenso num tempo incerto, em que eventos místicos são comuns na vida do povo de Água Negra.
Bibiana e Belonísia são duas irmãs, que nascem na Fazenda Água Negra, no sertão da Bahia, onde os seus pais trabalham a terra e nunca de lá saíram. Depois de um trágico acidente, provocado pela curiosidade involuntária de uma das irmãs, ao remexer numa velha mala escondida debaixo da cama, as circunstâncias impõem que com o passar dos anos uma aliança se crie entre elas, nem sempre pacífica, em que uma será a voz da outra: «Deveria se aprimorar a sensibilidade que cercaria aquela convivência, a partir de então. Ter a capacidade de ler com mais atenção os olhos e os gestos da irmã. Seríamos as iguais. A que emprestaria a voz teria que percorrer com a visão os sinais do corpo da que emudeceu. A que emudeceu teria que ter a capacidade de transmitir com gestos largos e também vibrações mínimas as expressões que gostaria de comunicar.» (p. 24)
Torto Arado coloca ênfase nas figuras femininas, atentando como os seus corpos continuam a registar marcas do domínio violento exercido pela sociedade patriarcal. Em simultâneo, denuncia-se os abusos dos senhores das roças sobre aqueles que trabalham a terra e vivem do pouco que conseguem retirar para si: «Mas as batatas do nosso quintal não são deles», alguém dizia, «eles plantam arroz e cana. Levam batatas, levam feijão e abóbora. Até folhas pra chá levam. E se as batatas colhidas estiverem pequenas fazem a gente cavoucar a terra para levar as maiores» (p. 46). A isto acresce uma nota de magia graças aos poderes de Zeca Chapéu Grande, o pai das duas irmãs, um curador de jarê, que tem o dom de curar a saúde do espírito e do corpo dos aflitos, dos doentes, dos necessitados que chegam a sua casa e por lá ficam durante semanas.
Itamar Vieira Júnior nasceu em Salvador, Bahia, em 1979. É escritor, geógrafo e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA).
Nesta 10.ª edição, o Prémio LeYa contou com 348 originais provenientes de 13 países. Portugal e Brasil são aqueles de onde provém a maioria dos originais avaliados, tendo chegado obras de países tão diversos como Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, China ou Islândia, entre muitos outros. Com o valor de 100 mil euros, o Prémio LeYa é o maior prémio literário para romances inéditos de todo o mundo de língua portuguesa.
O escritor estará presente no próximo dia 6 de Junho, quinta-feira, na Biblioteca Municipal Sophia de Mello Breyner Andresen, em Loulé, para a apresentação do livro pelas 18h. A apresentação da obra estará a cargo da Professora Doutora Mirian Tavares. Ver artigo
Se o nome causa alguma estranheza é por causa da sua herança galega.
A autora nasceu em 1937 no Rio de Janeiro. Formou-se em Jornalismo em 1956 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Colaborou em vários jornais e revistas literários e foi correspondente no Brasil da revista Mundo Nuevo, de Paris. Publicou o seu primeiro romance, Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, em 1961.
Actualmente com 81 anos, este é o primeiro livro que a autora publica depois de ter recebido o Prémio Vergílio Ferreira 2019. Um livro intimista, feito de memórias, pensamentos soltos, reflexões, aforismos.
«Escrever é o que sei fazer. Narrar me insere na corrente sanguínea do humano e me assegura que assim prossigo na contagem dos minutos da vida alheia. Pois nada deve ser esquecido, deixado ao relento. Há que pinçar a história dos sentimentos a partir da perplexidade sentida pelo homem que na solidão da caverna acendeu o primeiro fogo.» (p. 18) Ver artigo
O escritor angolano Pepetela, vencedor do Prémio Camões em 1997, é o escritor homenageado na edição deste ano do festival literário Escritaria, em Penafiel.
A 11.ª edição do Escritaria vai decorrer de 1 a 7 de outubro e ficará ainda assinalada pelo lançamento do novo livro de Pepetela. O autor angolano, de seu verdadeiro nome Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, nascido em Benguela, em 1941, licenciado em Sociologia, foi guerrilheiro, político e membro do MPLA, professor universitário em Angola, membro da Comissão Directiva da União dos Escritores Angolanos, e tem publicado romances regularmente desde 1978.
A Dom Quixote publicou em Setembro 3 livros do autor: a 7.ª edição de Yaka (1985), a 12.ª edição de Jaime Bunda, Agente Secreto (2001), uma paródia a James Bond, e Sua Excelência, de Corpo Presente, o seu mais recente romance que chega hoje, dia 25 de Setembro, às livrarias. Reza a sinopse que: «Num enorme salão cheio de flores, deitado num caixão forrado a cetim branco, jaz um ditador africano. Está morto, mas vê, ouve e pensa. Vê os que lhe foram prestar uma última homenagem (ou certificar-se de que morreu), ouve as suas conversas e sussurros, e pensa… (…) O novo romance de Pepetela é também uma crítica mordaz ao abuso de poder e aos sistemas de governo totalitários disfarçados de democracias.» Ver artigo
Ungulani Ba Ka Khosa é dos escritores moçambicanos mais reconhecidos da sua geração. Francisco Esaú Cossa nasceu a 1 de Agosto de 1957 em Inhaminga, na província de Sofala, membro da tribo étnica Tsonga e falante da língua Tsonga, e adoptou como “pseudónimo” o seu nome Tsonga. Formado em Direito e em Ensino de História e Geografia, exerce actualmente as funções de director do Instituto Nacional do Livro e do Disco. É membro e secretário-geral da Associação dos Escritores Moçambicanos.
Gungunhana é um livro que reúne Ualalapi, o romance de estreia de Ungulani Ba Ka Khosa, publicado em 1987 e eleito como um dos cem melhores romances africanos do século XX, e As Mulheres do Imperador, uma nova novela deste autor moçambicano que constitui um regresso a este universo romanesco. Este livro assinala assim trinta anos de escrita ao mesmo tempo que o autor parece fechar um ciclo. Ualalapi narra o fim do império de Ngungunhane, último imperador de Gaza que resistiu ferozmente aos portugueses, entre 1884 e 1895, até que foi feito prisioneiro por Mouzinho de Albuquerque, levado para Lisboa e depois exilado para os Açores.
Ungulani Ba Ka Khosa explora nesta obra, na linha dos sul-americanos, o imaginário mítico do seu país. A obra situa-se entre o conto e o romance, constituída por seis partes, mas sem ser uma narrativa fragmentária. As seis narrativas entretecem-se como unidades in(ter)dependentes, cada uma antecedida por um pequeno texto, intitulado «Fragmentos do fim», textos esses que se encontram numerados de um a seis, numeração essa que parece marcar também a própria evolução histórica que se sente até chegar à queda do império. Esses pequenos fragmentos constituem um levantamento feito a partir de fontes históricas, escritas na óptica do colonizador. Contribuem para esta paródia intertextual o acrescento de citações bíblicas (Job 2, Apocalipse 3, Mateus 6), na precedência de quatro dos contos, frases aforísticas referentes a Ngungunhane, citações de fontes fictícias da autoria do próprio autor e um dos textos trata-se de um fragmento mínimo do discurso de Ngungunhane, antes de embarcar para o exílio. Através da intertextualidade entramos assim no domínio da metaficção historiográfica, como modo de questionar o passado e o presente. Há ainda uma valorização da oralidade, patente no próprio facto de o narrador ser um jovem que mexe em papéis e ouve um velho, junto a uma fogueira, a transmitir uma estória que, por sua vez, lhe foi contada pelo avô.
As Mulheres do Imperador, uma novela com pouco menos de cem páginas, é – conforme anunciado na contracapa – um tributo ao papel das mulheres na História, neste caso as favoritas da corte do imperador, «sempre secundarizadas pela História». Mas, na verdade, as mulheres já estavam bem presentes em Ualalapi, até porque é quase sempre a partir da perspectiva do outro que o autor constrói aos nossos olhos a figura do mítico imperador. O que se configura nesta nova novela é o fim definitivo do império, quinze anos depois, quando as mulheres do imperador regressam do seu exílio em S. Tomé a Lourenço Marques, para testemunhar o início de uma nova época, quando os nativos vivem completamente subjugados e dominados pelo colono, e novos bairros começam a surgir em torno da cidade, conforme os pretos vão sendo empurrados para bairros fora da cidade, como o da Mafalala, ao mesmo tempo que assimilam uma nova cultura. O narrador esquece muitas vezes essas mulheres que toma como personagens centrais, para nos dar, uma vez mais, uma perspectiva dispersa e fragmentada ou complementada por diversos olhares. As características que tornam a escrita de Ungulani Ba Ka Khosa tão peculiar e interessante estão também bem presentes nesta obra, como, por exemplo, a forma como muitas vezes recorre a termos das línguas locais para designar algo, explicando depois ao leitor o equivalente semântico da palavra ou qual o significado e/ou origem da palavra, ou ainda os diálogos entre as personagens, que muitas vezes consistem numa réplica sucessiva de provérbios, geralmente alusivos aos animais e à natureza. A linguagem de Khosa é imaginativa, visual, densa, violenta, o que por vezes se revela de forma chocante, de forma a transluzir uma forte carga simbólica e mito-poética, conforme à tecitura poética do maravilhoso e do realismo mágico. Ver artigo
Ponta Gea é o mais recente livro de João Paulo Borges Coelho e provavelmente o mais corajoso, assumindo não somente uma narrativa feita na primeira pessoa como também uma perspectiva em que os acontecimentos narrados são filtrados a partir do espaço-memória de infância. O autor, muitas vezes enquanto criança, rememora os lugares que persistem, muitas vezes, apenas na memória e na imaginação de uma cidade inventada.
Não posso deixar de assumir eu próprio esta recensão como um levantamento topográfico feito na primeira pessoa, uma vez que quando a Caminho publicou esta obra e gentilmente ma enviou como oferta, estava longe de imaginar que uns meses depois eu próprio estaria a viver ao lado da Ponta Gea, na cidade da Beira, local que ainda recentemente foi notícia, pelas piores razões.
O título do livro tem origem no nome de um bairro da cidade da Beira, «com centro nas coordenadas 19º50’47.14”S e 34º50’25.91’E.
Composto por quinze textos que se interseccionam, e que podem ser lidos numa sequência cronológica, ou isoladamente, como se se tratassem de crónicas, as memórias do autor correm aqui o risco de ressurgir ficcionadas. Escreve o autor no «Preâmbulo»:
«A infância não é um lugar, nem tão-pouco um tempo. O que é ela, afinal?
Se tomássemos a imagem das ilhas, estaríamos neste livro face a um arquipélago de episódios em que o núcleo de cada um me fosse imposto com insistente nitidez, mas em que as margens, mais incertas, exigissem um esforço contrário ao de evocar – o esforço da partida.» (p. 11)
Para o autor, pelo menos assim se refere no livro, Ponta Gea não se trata de um livro de memórias da infância, mas de um exercício de ficção, de como o mundo era visto a partir dessa idade em que, como escreveu Proust, «se acredita que criamos aquilo que nomeamos». Na linha de autores que João Paulo Borges Coelho admira, como Thomas Bernhard ou W. G. Sebald, o deambular parece associado ao rememorar, e o recontar associado a um relembrar que se reinventa, mesmo que o autor nos apresente recortes de jornais e fotografias que procuram cristalizar essa memória fidedigna.
«Se evocar for trazer para a idade adulta, então talvez a infância seja, no seu sentido mais puro, aquilo de misterioso que se nos escapa por entre os dedos quando evocamos, a viagem que nunca chegou a ser feita e por isso resiste incólume à passagem do tempo. A potência daquilo que imaginamos poder ainda vir a ser.» (p. 12) Ver artigo
Nomeado para o International Man Booker Prize 2016 e agora vencedor do International Dublin Literary Award recordo que quando comecei a ler as primeiras páginas deste livro de José Eduardo Agualusa, publicado pela Dom Quixote, de repente fiquei agarrado. Ludovica sofre de agorafobia e vive fechada no seu mundo de sobrevivência, o que de alguma forma espelha a realidade do que se passou durante o caos pós independência em Angola e reflecte a luta de cada um para sobreviver. Contudo, apesar de isolada no seu apartamento, chegam-lhe ecos do que se passa em Angola e vai conhecer alguém de forma inesperada… Ver artigo
João Paulo Borges Coelho, nascido no Porto em 1955, mas radicado em Moçambique desde a infância. Escritor e historiador, é professor de História Contemporânea de Moçambique e África Austral na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, onde vive. Tem dedicado o seu estudo sobretudo à investigação das guerras colonial e civil em Moçambique, bem como à política da memória e às questões de segurança regional na região da África Austral.
Normalmente quando se fala em literatura moçambicana ressalta o nome de Mia Couto mas existem outros grandes autores menos conhecidos entre nós, como Ungulani Ba Ka Khosa (já aqui apresentado a propósito de Choriro, publicado pela Sextante) ou o autor que hoje vos trazemos. João Paulo Borges Coelho tem aliás toda a sua obra publicada pela Caminho e foi o vencedor do Prémio Leya em 2009 com O olho de Hertzog, sendo o único autor já com obra publicada a ter ganho o prémio (os restantes vencedores têm sido autores inéditos e estreantes). Já em 2004 o autor foi vencedor do Prémio José Craveirinha da Literatura, a maior distinção literária em Moçambique. Este autor pode não ser muito popular entre nós mas merece muito ser lido com atenção e tem tratado na sua obra literária diversas épocas históricas do país.
Esta obra, cujo tema principal está desde logo designado no título, e subtitulada de «Uma novela rural», apontando para o género a que pertence, sendo a novela algo entre a brevidade do conto e a complexidade do romance, assente em princípios de economia narrativa. A concisão define de facto esta obra, cuja escrita é constituída por frases muito curtas, com capítulos muito breves (no total de 144 capítulos), o que gera uma velocidade rápida de leitura. À medida que nos aproximamos do final a prosa ganha o ímpeto da força da correnteza da água aqui protagonizada, transfigurada em parágrafos que se estendem por páginas e capítulos que ganham mais terreno, como forma de dar conta do fantástico crescendo e desse enigmático final. Essa concisão própria de uma novela parece contudo posta em causa se atentarmos no considerável número de personagens. Os nomes das personagens são simbólicos, e alusivos a elementos naturais (Praado, Laago, Heera), como quem lembra que todos nós apesar de estarmos cada vez mais mergulhados em tecnologia não deixamos de fazer parte da natureza, tal como a água de que precisamos para viver e que faz parte do corpo humano. Além disso, são sempre grafados com dupla vogal, como que a ecoar na narrativa a pronúncia das vogais mais abertas (próprias de um Português mais cantado).
A alternar com a intriga principal pontuam os diálogos de Laama e Ryo que «passam metade do tempo a sondar as entranhas da natureza, a outra metade a discutir a interpretação dos resultados» (p. 17). Estes dois anciãos discutem «hoje, a água. Ou melhor, a falta dela, que aquilo que outrora era um pesado e líquido cordão não passa hoje de um tortuoso arabesco (…). No fundo, repetem sempre a mesma discussão» (p. 17), discussão essa muitas vezes feita da réplica de frases que se afiguram provérbios, sendo Ryo o mais «moderno» e «volúvel» e Laama o mais «consistente na obsessão de desnudar os fumos primordiais» (p. 17), enquanto procuram sondar a natureza e ler os seus desígnios, recorrendo mesmo a certas práticas ancestrais – presumirá o leitor – capazes de trazer a água de regresso, como quando caminham ao luar com uma concha de água. Contudo, como a própria narrativa declara, por muito que a ciência (e incluímos nós a religião) se procure instituir como «esforçada leitura paralela, as coisas seguem o seu curso cego imunes às interpelações. A natureza é um misterioso veículo em movimento deixando sacerdotes e cientistas em terra, ocupados ainda assim na tentativa de determinar o rumo da viagem!» (p. 17).
Este é portanto um romance de carência que narra a história de uma comunidade rural que atravessa um período de seca pois o rio há muito secou. As personagens que por aqui se movem estão todas elas ligadas à água, seja o pastor que precisa de campos férteis para apascentar o seu gado, seja a lavadeira que lava a roupa no rio, ou ainda os técnicos e investigadores que estudam a água ou, melhor dizendo, a falta desta. Mas esta novela rural está eivada de modernidade. Note-se a profusão de onomatopeias que dão conta dos sons e ruídos próprios de um mundo urbano que começa a transbordar para esta localidade rural, como os camiões («Vrrrrrr! Vrrrrrr!») ou os sons dos telemóveis de Ervio e Maara («Críí! Críí!»), enamorados que se contactam quase exclusivamente por esta via – como se por pertencerem a mundos diferentes vissem também o contacto entre si limitado a este meio de comunicação. Os “celulares” são aliás uma presença cada vez mais forte na sociedade moçambicana, à semelhaça do resto do mundo, pois toda a gente, por muito apartada que viva do centro urbano, possui o seu. Contudo existe a particularidade de, tal como acontece muitas vezes nos telefonemas trocados entre o casal amoroso cheios de interferências, os telemóveis serem mais um motivo de desentendimento do que de comunicação eficaz entre Ervio e Maara. Configurado principalmente na relação amorosa entre Ervio e Maara, há todo um jogo de contrários a começar pelo título da obra pois, conforme se referiu, rapidamente percebemos que Água não é algo que existe e daí dar título à obra mas sim algo que é preciso redescobrir ou reaver. A questão do colonialismo também se encontra presente neste jogo de opostos, como se pode ler quando se refere a loja do português que apesar de fechada continua a ser um marco. Por outro lado, retrata-se a presença de apoios externos em Moçambique, bem como no continente africano em geral, mediante a figura do engenheiro alemão Waasser (e adivinhe-se o que significa Wasser em alemão? Pois é: Água!).
Não deixa de haver uma reflexão em torno destas contradições moçambicanas, ao mesmo tempo que se parece denunciar também como certos apoios externos parecem completamente despropositados ou, por outro lado, infrutíferos mesmo, como é a intenção de se construir uma ponte sobre um rio seco. Mesmo o diálogo entre Laama e Ryo é aliás a representação de uma discussão assente em pontos de vista distintos apesar de serem ambos membros de uma certa antiguidade na comunidade.
É interessante atentar como o narrador se assume sempre como um nós, uma voz colectiva, pertencente a essa comunidade rural, ou assumindo-se como a própria comunidade. Este aspecto é algo que também se pode encontrar em Ungulani Ba Ka Khosa e atesta de um cuidado da literatura pós-independência em encontrar a sua voz e escrever de forma interventiva como uma consciência social ou política, pois afinal esta obra que oscila entre a seca e a cheia é também um retrato da realidade moçambicana em diferentes zonas do país, como aconteceu no rio Limpopo com as cheias de 2000, em que as pessoas subiram aos telhados das casas, mas também mais recentemente, em 2014 ou em 2015. O autor declarou, em entrevistas, tentar dar conta de como Moçambique é um país feito de desequilíbrios, como acontece justamente com a água, acontecendo por vezes haver zonas ameaçadas pelas secas enquanto que outras são simultaneamente afectadas pelas cheias. O autor debruça-se ainda, como se pode perceber no emblemático e alegórico final, sobre a questão do mundo rural como um espaço que parece condenado a desaparecer em África, cada vez mais circunscrito a terrenos que se reclamam, por vezes, para reservas naturais. Assiste ainda à narrativa um certo sentido de ironia e de humor, como por exemplo quando o engenheiro alemão Waasser reflecte como «o mundo será perfeito quando os caminhos dos rios forem todos rectos como as fronteiras de África. Não há perfídia nem ironia nesta sua aspiração, apenas racionalidade. As coisas perfeitas são as que seguem a direito evitando desnecessários gastos de energia.» (p. 49). Ainda em relação ao final, não deixa de ser sintomática a intrusão de uma certa magia, como que um resquício do realismo mágico característico de uma certa literatura pós-colonial, nomeadamente nas borboletas, símbolo caro justamente ao realismo mágico (relembre-se Cem Anos de Solidão) e na personagem cujo ventre seco de repente parece transmutar-se em nascente. Ver artigo
Ao preparar-me para reler Autópsia de um Mar de Ruínas, de João de Melo, sobre a guerra colonial em Angola, decidi ler em paralelo este livro agora integrado na Coleção Essencial Livros RTP, editada pela Leya, constituíndo o 11.º volume, foi originalmente publicado em 1992 pela Dom Quixote.
Dividida em quatro partes, com um salto temporal de mais ou menos uma década entre cada uma das partes, esta obra acompanha a história de 4 jovens que em 1961 se reuniam na Casa dos Estudantes do Império, salta depois para o período da guerra civil, quando acompanhamos um jovem guerrilheiro na chana (algo entre deserto e floresta), para 20 anos depois encontrarmos um deles afastado da sociedade a viver quase como um eremita, até que em 1991, 30 anos depois, o livro fecha num epílogo incerto, que não se sabe se é uma nota de esperança ou de profunda ironia e desencanto perante a sociedade que estes mesmos jovens, três décadas antes, idealizavam e “desconseguiram” de realizar. Cada uma das partes do livro centra-se à vez em torno das personagens de Sara, Aníbal, Malongo e Vítor. A voz do narrador é muitas vezes entretecida com a corrente de consciência das personagens, num discurso indirecto livre que nos permite acompanhar os seus ideais e os seus ressentimentos, se bem que em cada uma das partes, exceptuando na primeira, é sempre preciso juntar as pistas até percebermos por fim quem é o protagonista. A primeira parte, talvez por acompanhar a juventude destes jovens oriundos de Angola, ora brancos (Sara), ora negros ou mestiços, que estão em vias de terminar os seus cursos, é narrada num tom mais vivo e os acontecimentos sucedem-se, entre o íntimo e pessoal e o colectivo, sendo a Casa o centro da acção, onde se reúnem para discutir os assuntos da actualidade ou simplesmente para se rever. Dez anos depois, e nas partes que se seguem, à medida que nos adentramos na idade adulta das personagens vence o tom de desencanto de uma geração que parece ter falhado o sonho que se destinava cumprir: «Isto de utopia é verdade. Costumo pensar que a nossa geração se devia chamar a geração da utopia. Tu, eu, o Laurindo, o Victor antes, para só falar dos que conheceste. Mas tantos outros, vindos antes ou depois, todos nós a um momento dado éramos puros e queríamos construir uma sociedade justa, sem diferenças, sem privilégios, sem perseguições, uma comunidade de interesses e pensamentos, o Paraíso dos cristãos em suma. A um momento dado, mesmo que muito breve nalguns casos, fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e lutando por ele.». O próprio autor, à semelhança de algumas das personagens masculinas, passou por militar, político, para depois se dedicar exclusivamente à escrita. E nesta obra da póscolonialidade o autor assume claramente a sua identidade pois não há qualquer desejo de escrever o português da metrópole ou do Império pois o autor institui a diferença da sua escrita logo na primeira linha: «Portanto, só os ciclos eram eternos.», colocando-a na boca de um narrador que supomos ser Aníbal pois é ele quem o leitor surpreende a escrever pensamentos soltos. Segue-se a esta frase um parêntesis (literalmente) em jeito de nota explicatória e introdutória: «(Na prova oral de Aptidão à Faculdade de Letras, em Lisboa, o examinador fez uma pergunta ao futuro escritor. Este respondeu, hesitantemente, iniciando com um portanto. De onde é o senhor?, perguntou o Professor, ao que o escritor respondeu de Angola. Logo vi que não sabia falar português; então desconhece que a palavra portanto só se utiliza como conclusão dum raciocínio? Assim mesmo, para pôr o examinando à vontade. (…) )». O autor faz recurso portanto de diversos termos usados ainda hoje em Angola se bem que próximos de uma certa coloquialidade e não propriamente apanágio de uma norma: maka, kamba, desconseguir ou a deliciosa expressão “Esse é o problema que estamos com ele.”.
É nos diálogos entre as personagens que percebemos os ideais em confronto e principalmente a forma como se falhou (um dos jovens promissores da Casa, por exemplo, torna-se um político receoso de manter o seu poder e a servir os seus próprios interesses) perante um país que depois da guerra colonial continuou em guerra civil durante 20 anos mais. Pepetela narra sem medo e de forma magistral um amplo mosaico da sociedade angolana (consegue narrar diversas realidades, entretecendo-as sem custo como o excelso contador de histórias que é) das últimas décadas (se bem que desde a publicação desta obra se tenham entretanto passado outros 20 anos mais, sobre os quais podemos ler em Se o passado não tivesse asas, mas pouca coisa parece ter mudado) e daquela que era uma geração promissora que partiu para a Europa para beber de outros ideais mas viu ainda assim goradas as suas expectativas e utopias. Ver artigo
Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, tem várias edições mas a que lemos é a de formato de bolso da Cotovia, numa edição cuidada e esmerada que dá gosto transportar para todo o lado para nos sentirmos em boa companhia. Ao fechar um livro como este, cuja leitura não termina, fica sempre a sensação de que há muito a dizer mas resta ainda o conforto da certeza de que voltaremos a ele. O título diz tudo: Memórias, escritas pelo próprio, mas Póstumas, isto é, de um qualquer lugar pós-morte e talvez por isso Brás Cubas ganha em objectividade e desprendimento quando nos deixa este magnífico relato na primeira pessoa da sua vida. O narrador-personagem não se foca jamais na morte ou naquilo que está para lá dela – pelo que os seguidores do espiritismo podem ficar um pouco desiludidos. Sabe-se apenas que ele escreve a partir do sepulcro ou, paradoxalmente, de algum sítio entre as nuvens: «Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola» (pág. 53). Tem sido ainda apontado que Brás Cubas possui um certo cunho autobiográfico, fantasia à parte, o que pode explicar passagens em que o narrador se assume como o autor, sempre interpelando directamente o leitor (o que muito contribui para a modernidade deste texto), por vezes até quase o ridiculariza ao mesmo tempo que arvora saber quais os gostos do leitor (que são apenas uns cinco…); ou pela certeza expressa de que as suas Memórias de além túmulo serão publicadas e lidas por aqueles que o conheceram em vida, aliás, pelos poucos que lhe sobreviveram, nomeadamente Virgília. Neste livro, não há personagem que não seja introduzida que não seja depois retomada, e conforme a vida de Brás Cubas decorre assistiremos a várias mortes, sendo a da mãe aquela que despoleta o maior abalo na personagem – levando ao desabrochar da flor da melancolia de que Anabela Mota Ribeiro fala. Brás Cubas parece sempre perder a sua oportunidade, mas fica também a ideia de que é por inércia – como na passagem em que a sege já está parada no seu destino e ele se pergunta porque não avançam – que a sua vida, afinal, se resume por uma série de falhanços pois ao contrário do que o pai pretendia, e por isso o mimava, Brás Cubas não parece deixar grande feito de «nomeada». O seu ímpeto cesariano parece perder-se, como se traduz num bacharelato feito sem grande aproveitamento, um noivado falhado e uma carreira pública que é referida mas parece que sempre de forma indirecta – ou talvez porque Brás se deixa mais depressa enredar nos seus amores e desamores do que num feito que perdure, mas agora vistos de forma clínica e crua: «Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis» (pág. 63). É um claro golpe de ironia, que revela como alguém apesar do seu berço de ouro e das aspirações que lhe teciam pode falhar na vida, que a noiva de Brás Cubas seja depois a sua amante.
Os capítulos são curtos, por vezes limitando-se a certas piadas gráficas, todos eles intitulados de forma sugestiva, outras vezes num piscar de olho irónico ao conteúdo («Vá de intermédio»), a linguagem é escorreita e puxa o leitor imediatamente para o centro da história e talvez por isso ficamos sempre com a sensação de que Brás Cubas, ao narrar as suas desventuras, é um ser, aliás, uma alma que mais do que resignada se encontra em paz com o destino que lhe coube em sorte – e que terá sido ele próprio a traçar até porque entidades omnipotentes como Deus não são para aqui chamadas. Por isso nunca sofremos como tragédias as perdas e as desilusões do protagonista, dado o tom ligeiro e quase jocoso por vezes assumido na narração, até porque «o leitor (…) não se refugia no livro, senão para escapar à vida» (pág. 262).
Tenho sempre a clara sensação de estar a ler Eça de Queirós, com a sua lupa de análise crítica da sociedade, na forma como se narram adultérios que parecem conhecidos por toda a cidade, como Brás Cubas acaba por gorar as expectativas de uma «grande futuro» e nunca chega a assentar como se esperaria de alguém na sua posição, pela amizade com Ega, perdão, Quincas Borba, na sua filosofia revolucionária, talvez fruto de uma semidemência, nos presságios que por vezes se sentem – e mesmo em Eça também os há – como as borboletas negras,…
E por fim, e acho que aqui reside a grande magnitude deste livro, quando chegamos ao fim somos remetidos novamente para o princípio numa circularidade fechada e que deixa ao leitor o critério de como opta por se adentrar neste texto ou de como prefere deixá-lo: «hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte» (pág. 19). O último capítulo é todo ele de «negativas» mas a verdade é que a história começa nas primeiras páginas, onde se narram também os últimos episódios da sua vida, como o emplastro para a melancolia que não se cumpriu, e é a elas que deveremos voltar para apurar se afinal essa vida se cumpriu ou não. A circularidade traduz-se ainda na forma como a partir deste livro podemos chegar a outras personagens de outros escritos do autor, como Quincas Borga ou o alienista do seu conto.
Machado de Assis, cuja vida dava ela própria um filme, perdão, um livro, nascido em 1839 no Rio de Janeiro na pobreza, sofrendo de epilepsia – o que pode explicar a sombra da morte e do ridículo neste livro, como quando Brás se recusa a pensar casar com uma coxa – até se tornar fundador da Academia Brasileira de Letras de que foi o primeiro presidente, influenciou muitos autores – até Woody Allen elege este livro de entre os seus cinco favoritos. Ver artigo
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