O Gato Que Chora Como Pessoa, de Geremias Mendoso, foi publicado pela Caminho e agraciado com o Prémio Branquinho da Fonseca Expresso/Gulbenkian 2019, na sua 10.ª edição, na Modalidade Juvenil. Esta cuidada edição de capa dura conta ainda com belíssimas ilustrações de Samuel (Arão) Djive, artista plástico já com relevo. Ver artigo
O Mapeador de Ausências é o mais recente romance de Mia Couto, publicado no final de 2020 pela Caminho. Ver artigo
O Plantador de Abóboras, de Luís Cardoso Ver artigo
A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, de José Eduardo Agualusa, foi publicado em maio de 2017 pela Quetzal
Numa sátira política que é, ao mesmo tempo, uma homenagem, inspirado pela prisão dos 17 jovens angolanos, onde se destacava Luaty Beirão, que a 20 de Junho de 2015 foram presos em Luanda, quando se reuniam para discutir um livro de filosofia política, intitulado Da ditadura à democracia de Gene Sharp. Os jovens foram acusados, na vida real, de preparar um golpe de Estado e foram presos. Escrito na altura em que começaram a surgir as primeiras manifestações em Angola pró-democracia, Agualusa escreve este romance como arma crítica.
O autor usa a sua relação pessoal com os sonhos e a situação política angolana para criar uma fábula dos nossos tempos (no livro há elementos próximos do fantástico, como o homem que consegue entrar nos sonhos das pessoas). O sonho aqui não é fuga ao real nem é libertação dos nossos desejos inconscientes, mas sim uma utopia, um desejo, uma aspiração a uma sociedade melhor.
José Eduardo Agualusa recupera uma personagem sua, do seu livro Teoria Geral do Esquecimento, Daniel Benchimol, um jornalista que investiga desaparecimentos, José Eduardo Agualusa explora o papel dos sonhos na vida das pessoas, através de várias personagens: Hossi Kaley é um antigo guerrilheiro da Unita que continua assombrado pelos traumas da guerra; Moira Fernandez, artista plástica que usa os seus sonhos como principal matéria-prima (e que Daniel já conhecia dos seus sonhos); Hélio de Castro, neurocientista que desenvolveu uma técnica capaz de filmar sonhos.
A Sociedade dos Sonhadores Involuntários é uma homenagem a todos os que lutam pelo cumprimento do processo democrático angolano. É também uma crítica à geração que lutou pela independência do país mas depois se resignou, desistindo de concretizar o seu sonho de democracia e liberdade plena. Por outro lado, o livro presta tributo àqueles que, não tendo vivido o conflito armado, não desistem de lutar, questionando o status quo, neste caso a geração mais jovem, como a filha do narrador.
Um livro poderoso, com uma crítica feroz e ousada à democracia reinante em Angola. Daí que a palavra sonho tenha uma forte carga valorativa neste livro, em que as personagens sonham recorrentemente e há personagens capazes de entrar no sonhos de outros.
Numa sátira política que é, ao mesmo tempo, uma homenagem, inspirado pela prisão dos 17 jovens angolanos, onde se destacava Luaty Beirão, que a 20 de Junho de 2015 foram presos em Luanda, quando se reuniam para discutir um livro de filosofia política, intitulado Da ditadura à democracia de Gene Sharp. Os jovens foram acusados, na vida real, de preparar um golpe de Estado e foram presos. Escrito na altura em que começaram a surgir as primeiras manifestações em Angola pró-democracia, Agualusa escreve este romance como arma crítica.
O autor usa a sua relação pessoal com os sonhos e a situação política angolana para criar uma fábula dos nossos tempos (no livro há elementos próximos do fantástico, como o homem que consegue entrar nos sonhos das pessoas). O sonho aqui não é fuga ao real nem é libertação dos nossos desejos inconscientes, mas sim uma utopia, um desejo, uma aspiração a uma sociedade melhor.
José Eduardo Agualusa recupera uma personagem sua, do seu livro Teoria Geral do Esquecimento, Daniel Benchimol, um jornalista que investiga desaparecimentos, José Eduardo Agualusa explora o papel dos sonhos na vida das pessoas, através de várias personagens: Hossi Kaley é um antigo guerrilheiro da Unita que continua assombrado pelos traumas da guerra; Moira Fernandez, artista plástica que usa os seus sonhos como principal matéria-prima (e que Daniel já conhecia dos seus sonhos); Hélio de Castro, neurocientista que desenvolveu uma técnica capaz de filmar sonhos.
A Sociedade dos Sonhadores Involuntários é uma homenagem a todos os que lutam pelo cumprimento do processo democrático angolano. É também uma crítica à geração que lutou pela independência do país mas depois se resignou, desistindo de concretizar o seu sonho de democracia e liberdade plena. Por outro lado, o livro presta tributo àqueles que, não tendo vivido o conflito armado, não desistem de lutar, questionando o status quo, neste caso a geração mais jovem, como a filha do narrador.
Um livro poderoso, com uma crítica feroz e ousada à democracia reinante em Angola. Daí que a palavra sonho tenha uma forte carga valorativa neste livro, em que as personagens sonham recorrentemente e há personagens capazes de entrar no sonhos de outros.
Sinopse:
O jornalista angolano Daniel Benchimol sonha com pessoas que não conhece. Moira Fernandes, artista plástica moçambicana, radicada na Cidade do Cabo, encena e fotografa os próprios sonhos. Hélio de Castro, neurocientista brasileiro, filma-os. Hossi Kaley, hoteleiro, antigo guerrilheiro, com um passado obscuro e violento, tem com os sonhos uma relação ainda mais estranha e misteriosa. Os sonhos juntam estas quatro personagens num país dominado por um regime totalitário à beira da completa desagregação.
A Sociedade dos Sonhadores Involuntários é uma fábula política, satírica e divertida, que desafia e questiona a natureza da realidade, ao mesmo tempo que defende a reabilitação do sonho enquanto instrumento da consciência e da transformação.
José Eduardo Agualusa nasceu na cidade do Huambo, em Angola, a 13 de dezembro de 1960. Estudou Agronomia e Silvicultura. Viveu em Lisboa, Luanda, Rio de Janeiro e Berlim. É romancista, contista, cronista e autor de literatura infantil.
Os seus romances têm sido distinguidos com os mais prestigiados prémios nacionais e estrangeiros, como o Grande Prémio de Literatura RTP (atribuído a Nação Crioula, 1998) e o Independent Foreign Fiction Prize (para O Vendedor de Passados, 2004). Mais recentemente, o romance Teoria Geral do Esquecimento foi finalista do Man Booker Internacional e do International Dublin Literary Award (antigo IMPAC Dublin Award). Também os seus contos e livros infantis foram merecedores de prémios, como o Grande Prémio de Conto da APE e o Grande Prémio de Literatura para Crianças da Fundação Calouste Gulbenkian.
Os Vivos e os Outros é o novo romance do autor angolano José Eduardo Agualusa que pode, e deve, ser lido no seguimento do anterior A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, publicado em maio de 2017 também pela Quetzal. Três anos depois o autor regressa uma segunda vez a uma personagem sua, o Daniel Benchimol de Teoria Geral do Esquecimento, jornalista que investiga desaparecimentos, e que foi também o protagonista do romance A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, onde o autor explora o papel dos sonhos na vida das pessoas. Entre estes dois romances, Os Vivos e os Outros e A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, há pontos em comum ainda que não imediatamente reconhecíveis.
Em Os Vivos e os Outros abandona-se o tom satírico e a questão política, e há uma divertida – mas nada leviana – exploração da literatura e do seu papel na vida dos leitores e na vida dos escritores, dos temas (por vezes saturados) que hoje são caros à crítica e à moderação de tertúlias literárias, a mesa dos escritores negros, etc.
Há ainda, claramente, como que uma elegia a diversos autores, ora mencionados, ora indirectamente evocados: «Camões, Alberto de Lacerda, Rui Knopfli, Luís Carlos Patraquim, Nelson Saúte» (p. 88)
A própria escritora Cornelia lembra a autora nigeriana Chimamanda (p. 88)
Tal como no romance anterior, mas de forma ainda mais complexa, esta narrativa encaixa diversas histórias, a começar pelo facto de o próprio livro ter tido origem num conto do autor, «O construtor de castelos» publicado em 2012 e que terá continuado a crescer dentro do autor – esta explicação surge numa nota do autor no final do livro, se bem que um leitor atento estranhará as várias páginas que essa história efectivamente ocupa dentro do romance. E com as várias histórias entram no romance várias personagens, a começar por Moira Fernandez, artista plástica que usava (no romance anterior) os seus sonhos como principal matéria-prima, e que Daniel já conhecia em sonhos.
Este romance é também um memorial da ilha de Moçambique, da sua história e riqueza cultural, e dos ilhéus que lá vivem e que acolheram o autor – Agualusa vive há alguns na ilha. Penso que se não fosse assim também não teria feito uma crítica tão feroz à política angolana no seu anterior romance.
Em Os Vivos e os Outros abandona-se o tom satírico e a questão política, e há uma divertida – mas nada leviana – exploração da literatura e do seu papel na vida dos leitores e na vida dos escritores, dos temas (por vezes saturados) que hoje são caros à crítica e à moderação de tertúlias literárias, a mesa dos escritores negros, etc.
Há ainda, claramente, como que uma elegia a diversos autores, ora mencionados, ora indirectamente evocados: «Camões, Alberto de Lacerda, Rui Knopfli, Luís Carlos Patraquim, Nelson Saúte» (p. 88)
A própria escritora Cornelia lembra a autora nigeriana Chimamanda (p. 88)
Tal como no romance anterior, mas de forma ainda mais complexa, esta narrativa encaixa diversas histórias, a começar pelo facto de o próprio livro ter tido origem num conto do autor, «O construtor de castelos» publicado em 2012 e que terá continuado a crescer dentro do autor – esta explicação surge numa nota do autor no final do livro, se bem que um leitor atento estranhará as várias páginas que essa história efectivamente ocupa dentro do romance. E com as várias histórias entram no romance várias personagens, a começar por Moira Fernandez, artista plástica que usava (no romance anterior) os seus sonhos como principal matéria-prima, e que Daniel já conhecia em sonhos.
Este romance é também um memorial da ilha de Moçambique, da sua história e riqueza cultural, e dos ilhéus que lá vivem e que acolheram o autor – Agualusa vive há alguns na ilha. Penso que se não fosse assim também não teria feito uma crítica tão feroz à política angolana no seu anterior romance.
Fica uma amostra de um artigo a partir de uma comunicação sobre Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo, de Luis Cardoso de Noronha – um livro extraordinário (em todas as acepções da palavra) publicado em 2001 pela Dom Quixote:
No dia do baptismo de Beatriz, a «aglomeração de gente» é tal que «o acontecimento antes de mais parecia o dia do juízo final», «um dia especial porque era o dia em que se comemorava a assunção de Nossa Senhora aos céus. Não era todos os dias que se poderia ter uma coincidênciadessas. Padre Santa dizia que, ou era desta que me baptizava e eu aproveitava a boleia da Virgem, ou eu ficava em terra e eternamente gentia. Estava lá mais gente do que ele esperava, inclusive pessoas que tinham morrido durante as guerras. Todos me queriam ver. Apresentaram-se com todos os apetrechos e alguns provavelmente tiveram de ir às aldeias mais remotas para recuperarem as respectivas partes corporais. (…) Os que não conseguiam colocar as respectivas cabeças nos seus lugares tinham-nas nas mãos. (…) Padre Santa fez então o louvor do labor do meu pai por ter mobilizado tanto catecúmeno, sendo que alguns vieram directamente das catacumbas.» (p. 114-115)
Padre Santa finalmente dá-lhe o nome de Beatriz e coloca-lhe uma venda nos olhos porque «eu já tinha visto tudo. Doravante não precisaria mais de olhos para ver.» (p. 116)
Mas depois repara «no lento aproximar da multidão dirigindo-se para o altar. Todos me queriam tocar e provavelmente me quereriam ver com olhos bem abertos. (…) E vendo que não paravam e temendo um rapto ou linchamento afastou-os, aos mortos com sal e água benta e aos vivos com a maldição do inferno.» (p. 116)
Há romances inesperados que nos tomam de assalto. E cuja riqueza só se revela quando ao tentarmos enrolar o fio da história este só se desenrola ainda mais, até nos guiar a labirintos que se adentram nos bosques de ficção. É o caso de A Última Morte do Coronel Santiago, de Luís Cardoso, publicado pela Dom Quixote (e infelizmente esgotado). Uma pessoa pensa escrever umas ideias sobre o livro em meia dúzia de páginas e, subitamente, apercebe-se que umas quantas dezenas são apenas o arranhar da superfície…
O adjectivo última remete-nos inevitavelmente para a ideia de fim, e a morte enquanto último destino na viagem da vida é uma constante no livro, como na passagem que nos remete para esse paraíso «depois da morte, quando se atravessa o mais estreito de todos os corredores, frio e escuro, antes de entrar no último comboio que atravessa um extenso túnel de luz.» (p. 54)
A ideia da morte sempre presente como a última viagem é reforçada poucas linhas depois, quando Lucas parece estar num delírio, ao acordar no hospital depois de um acidente que é determinante na sua vida, em que a sua mente deriva entre a ilha de Ataúro e o Entroncamento (para espanto de Clara, a médica), e expressa bem o desejo de morrer no sítio de onde partiu há cerca de 25 anos:
«- Quero morrer num outro sítio, tão distante que está a minha ilha de Ataúro. (…) Não quero que ninguém me veja defunto, nem chore penas e mágoas por um corpo que me serviu para fazer a travessia do tempo, entre uma margem e outra, deste mar que não sei onde acaba, desta vida que provavelmente acaba na cama onde estou deitado.» (p. 54-55)
O adjectivo última, patente no título, além de poder desconcertar o leitor pelo estranhamento de se referir uma última morte (como se alguém morresse várias vezes) remete ainda para a ideia de encerramento, o que se confirma no próprio livro, pois no fim do romance, para que não restem dúvidas da intenção do autor de encerrar aqui um “capítulo” da sua obra narrativa, poderemos ler «O Fim da Travessia». Uma frase que surge como uma espécie de epitáfio (ou epígrafe ao contrário), logo depois da última frase do romance, «O sol fazia-se anunciar.» (p. 293), como se fosse ainda uma última frase do livro – até porque não há qualquer espaçamento gráfico na página. Estas duas frases remetem para um álfa e um omega, como a serpente que se recolhe, enrolada em torno de si mesma, como um mundo narrativo perfeito autotélico que passa a existir eternamente fora do tempo.
Se voltarmos um pouco atrás, apenas 2 capítulos, poderemos ler, também, como Lucas ao regressar a Timor se demora por Díli conforme tenta fazer jus à bolsa literária que ganhou e que lhe exige dedicação exclusiva à escrita, mas continua sem conseguir «alinhavar sequer uma única frase» (p. 221). Saberemos ainda como «um amigo de longa data» lhe sugere, «por antecipação», um nome para esse livro ainda por nascer: «depois de ter lido em língua inglesa a tradução do seu primeiro romance que o título fosse.
«O Fim da Travessia.»
Assustou-se com esta sugestão. Ainda ficou a olhar para ele abismado. Era como se lhe tivesse anunciado a sua própria morte.» (p. 221)
Pois, num exercício perfeito de metaficção, a morte do livro é o fim do autor ou, por outras palavras, o fim do livro é a morte do autor.
O título do livro A Última Morte do Coronel Santiago parece ainda estabelecer uma relação intertextual com Crónica de uma Morte Anunciada, de García Márquez, o que não é de todo forçado se atentarmos na sombra omnipresente da morte ao longo do livro e no carácter extra-ordinário ou sobrenatural de alguns aspectos da narrativa.
Além de que, no final do livro, o protagonista a certa altura adormece e quando acorda apercebe-se que lhe vestiram a roupa branca que era do seu pai, sem nunca se perceber se é o traje do seu casamento ou simultaneamente o do seu enterro, até porque Lucas começa de facto a incorporar mais e mais o velho coronel Santiago, ao ponto de usar a sua cigarreira e inalar o rapé.
A Ocupação é o mais recente romance de Julián Fuks, novo autor brasileiro a que convém estar atento, publicado pela Companhia das Letras. É uma narrativa tão breve quanto fulgurante, onde até as páginas em branco, as pausas de respiração entre a leitura e a escrita, parecem representar o que fica por dizer. Cada palavra é pesada e cada frase um encadeamento perfeito de uma autoficção que vai desfiando em prosa poética a história de Sebastián, num momento crítico da sua vida, entre a morte do pai que se faz próxima e a sua própria paternidade. O romance evoca a respiração narrativa de Mia Couto (que surge logo em epígrafe) na primeira frase: «Todo homem é a ruína de um homem, eu poderia ter pensado. Aquele homem que se apresentava aos meus olhos era a encarnação dessa máxima, um ser em estado precário, um corpo soterrado em seus próprios escombros.» (p. 13). Ou, mais à frente: «Era um menino novo demais para ser uma ruína de menino, para ser sua própria ruína.» (p. 14). A influência de Mia é aliás tão presente que o autor vai mesmo trazê-lo para dentro do romance. À parte a sua tragédia, Sebastián tenta dar voz aos outros, seguindo justamente o conselho do seu amigo escritor, vagueando por São Paulo rumo ao Hotel Cambridge, ruína agora ocupada por «moradores sem-tecto» (p. 120), cujas histórias recolhe e narra. Mas a história que mais destaque ocupa será a de Najati, o refugiado sírio.
Ainda que no início, o narrador na primeira pessoa consiga esconder-se sob a máscara de Sebastián, este alter-ego será progressivamente revelado, até ao momento-chave do diálogo entre filho e pai:
«Pai, eu vou ter um filho.
Que notícia linda, Julián. Obrigado por me dizer.
Obrigado a você, pai. Mas aqui você me chama de Sebastián.» (p. 90)
Após este episódio, é cada vez mais comum depararmo-nos com personagens que estão cientes de que aquele é o escritor que ocupa no Hotel «o quartinho do décimo quinto» (p. 95) e que tem por ocupação escrever a história dos outros.
Neste intenso exercício de reescrita da vida, onde é impossível saber onde esta termina para dar lugar à ficção, os vocábulos ruína, ocupação e resistência são recorrentes, revestindo-se a cada página de novo significado. Note-se, em jeito de conclusão, a dissertação do sírio, ao falar do Brasil como país errado para destino de fuga, por viver um «presente em ruínas» (p. 120), tão periclitante como o edifício em ruínas:
«Na ocupação eles insistem que formamos uma família, uma família de refugiados em terra própria ou estrangeira, e isso de início me pareceu estranho, disse Najati. Depois pensei que não poderia haver definição mais precisa. Sim, porque o mundo é feito de infinitos trânsitos, do movimento contínuo de seres. Como a minha, toda família tem, se recuarmos o bastante no tempo, uma infinidade de deslocamentos em sua génese. Toda a humanidade é feita desse movimento incessante, e só existe tal como a conhecemos graças a esses deslocamentos.» (p. 92)
Ainda que no início, o narrador na primeira pessoa consiga esconder-se sob a máscara de Sebastián, este alter-ego será progressivamente revelado, até ao momento-chave do diálogo entre filho e pai:
«Pai, eu vou ter um filho.
Que notícia linda, Julián. Obrigado por me dizer.
Obrigado a você, pai. Mas aqui você me chama de Sebastián.» (p. 90)
Após este episódio, é cada vez mais comum depararmo-nos com personagens que estão cientes de que aquele é o escritor que ocupa no Hotel «o quartinho do décimo quinto» (p. 95) e que tem por ocupação escrever a história dos outros.
Neste intenso exercício de reescrita da vida, onde é impossível saber onde esta termina para dar lugar à ficção, os vocábulos ruína, ocupação e resistência são recorrentes, revestindo-se a cada página de novo significado. Note-se, em jeito de conclusão, a dissertação do sírio, ao falar do Brasil como país errado para destino de fuga, por viver um «presente em ruínas» (p. 120), tão periclitante como o edifício em ruínas:
«Na ocupação eles insistem que formamos uma família, uma família de refugiados em terra própria ou estrangeira, e isso de início me pareceu estranho, disse Najati. Depois pensei que não poderia haver definição mais precisa. Sim, porque o mundo é feito de infinitos trânsitos, do movimento contínuo de seres. Como a minha, toda família tem, se recuarmos o bastante no tempo, uma infinidade de deslocamentos em sua génese. Toda a humanidade é feita desse movimento incessante, e só existe tal como a conhecemos graças a esses deslocamentos.» (p. 92)
A leitura de O Diabo foi Meu Padeiro, de Mário Lúcio Sousa, publicado pela Dom Quixote, pareceu-me a melhor forma de assinalar o 25 de Abril.
A Colónia Penal de Chão Bom, ou Campo de Concentração, no Tarrafal, criada durante o Estado Novo na ilha de Santiago, em Cabo Verde, foi estreada em 1936 com centena e meia de prisioneiros políticos vindos da metrópole, que era preciso afastar e punir como exemplo. As exímias condições de vida dos encarcerados (sem água, sem comida, sem higiene, sujeitos ainda a doenças tropicais e a torturas) são conhecidas, para quem leu aqueles que por lá passaram (como Luandino Vieira), aqui recontadas por este autor cabo-verdiano nascido justamente no Tarrafal, em 1964.
Pela voz de vários prisioneiros, todos eles chamados Pedro, o livro atravessa as várias décadas de existência da colónia penal (e enfatize-se a palavra colónia), enquanto narra a história do final da ditadura portuguesa e da descolonização, pois esta é também a história da luta pela liberdade, conforme os presos planeiam fugas, mesmo não havendo para onde fugir. A narrativa inicia com Pedro Santos Soares, português levado para a colónia, na primeira leva de prisioneiros em 1936, de onde sai 4 anos depois, mas regressa em 1943 e ainda em 1951; Pedro José da Conceição, outro português, que será depois amnistiado, em 1946, tal como Pedro Soares (nesta fase teremos mesmo 2 narradores). Em 1954, julga-se que a Colónia seria encerrada, mas em 1962 chegará Pedro Benge com mais 30 angolanos – «afinal, mandaram para Portugal os brancos, e para cá os pretos» (p. 185). Depois, “Preto” Mancanha, preso guineense. E, por fim, em 1971, será a vez do narrador Pedro Rolando dos Reis Martins, cabo-verdiano. O autor, ao optar por várias vozes narrativas, e adoptando o registo da língua de cada um, da variante portuguesa à guineense, celebra assim os vários modos de falar uma mesma língua – a língua do país que os subjugou mas, também, a língua que os une e lhes permite resgatar a sua memória, pois é em português que registam as suas histórias. Afinal, este livro é também um ajuste de contas com o passado, onde se registam as datas de morte, os nomes e as ocupações, dos vários presos cuja vida a colónia vai devorando – surgindo, no final, uma espécie de índice onomástico das centenas de presos do Tarrafal que “comeram o pão que o Diabo amassou”.
A Colónia Penal de Chão Bom, ou Campo de Concentração, no Tarrafal, criada durante o Estado Novo na ilha de Santiago, em Cabo Verde, foi estreada em 1936 com centena e meia de prisioneiros políticos vindos da metrópole, que era preciso afastar e punir como exemplo. As exímias condições de vida dos encarcerados (sem água, sem comida, sem higiene, sujeitos ainda a doenças tropicais e a torturas) são conhecidas, para quem leu aqueles que por lá passaram (como Luandino Vieira), aqui recontadas por este autor cabo-verdiano nascido justamente no Tarrafal, em 1964.
Pela voz de vários prisioneiros, todos eles chamados Pedro, o livro atravessa as várias décadas de existência da colónia penal (e enfatize-se a palavra colónia), enquanto narra a história do final da ditadura portuguesa e da descolonização, pois esta é também a história da luta pela liberdade, conforme os presos planeiam fugas, mesmo não havendo para onde fugir. A narrativa inicia com Pedro Santos Soares, português levado para a colónia, na primeira leva de prisioneiros em 1936, de onde sai 4 anos depois, mas regressa em 1943 e ainda em 1951; Pedro José da Conceição, outro português, que será depois amnistiado, em 1946, tal como Pedro Soares (nesta fase teremos mesmo 2 narradores). Em 1954, julga-se que a Colónia seria encerrada, mas em 1962 chegará Pedro Benge com mais 30 angolanos – «afinal, mandaram para Portugal os brancos, e para cá os pretos» (p. 185). Depois, “Preto” Mancanha, preso guineense. E, por fim, em 1971, será a vez do narrador Pedro Rolando dos Reis Martins, cabo-verdiano. O autor, ao optar por várias vozes narrativas, e adoptando o registo da língua de cada um, da variante portuguesa à guineense, celebra assim os vários modos de falar uma mesma língua – a língua do país que os subjugou mas, também, a língua que os une e lhes permite resgatar a sua memória, pois é em português que registam as suas histórias. Afinal, este livro é também um ajuste de contas com o passado, onde se registam as datas de morte, os nomes e as ocupações, dos vários presos cuja vida a colónia vai devorando – surgindo, no final, uma espécie de índice onomástico das centenas de presos do Tarrafal que “comeram o pão que o Diabo amassou”.
Nascido em 1991 em Bangu, um bairro no Rio de Janeiro, incorre na senda de grandes autores brasileiros que trabalharam a linguagem, como Guimarães Rosa, ou fizeram literatura a partir da realidade visceral, como Rubem Fonseca. Geovani Martins trabalhou como homem-sanduíche, empregado de mesa e ajudante em barracas de praia até se dedicar por completo à escrita, com este seu primeiro livro que se converteu num fenómeno editorial, vendido para editoras de mais de 10 países, aclamado por autores brasileiros e com uma adaptação ao cinema já em curso. No Brasil, este livro já vai na 8.ª edição e vendeu 50 mil exemplares; em Portugal está publicado pela Companhia das Letras. São 13 histórias que compõem um mosaico da vida na favela, escritas por quem lá vive, e com a plasticidade da linguagem da favela, dos marginais, dos toxicodependentes, que apesar do glossário, convenhamos, nem sempre é fácil de acompanhar, com essa gíria de um mundo fora do mundo.
No seu cartão de identificação é designado como pardo. «Sou um negro de pele clara. (…) Cresci ouvindo que era moreno, que não é uma coisa nem outra. A minha mãe e o meu pai são negros, a minha avó paterna é indígena, o meu avô paterno é negro, a minha avó materna, que me ensinou a ler, era branca, bem branca (…); no fim, é tudo uma grande mistura.» (da entrevista a Isabel Lucas, no Público, de 26-07-2019)
Geovani Martins tinha vergonha de dizer que vivia no bairro do Vidigal até que percebeu que essa era a sua identidade e a sua força como escritor, permitindo-lhe escrever sobre o racismo, a clivagem social, a criminalidade.
«É foda sair do beco, dividindo com canos e mais canos o espaço da escada, atravessar as valas abertas, encarar os olhares dos ratos, desviar a cabeça dos fios de energia elétrica, ver seus amigos de infância portando armas de guerra, pra depois de quinze minutos estar de frente pra um condomínio, com plantas ornamentais enfeitando o caminho das grades, e então assistir adolescentes fazendo aulas particulares de tênis. É tudo muito próximo e muito distante. E, quanto mais crescemos, maiores se tornam os muros.» (p. 14)
Um livro que tem tanto de duro como de real, como o sol que arde permanentemente sobre a cidade do Rio de Janeiro, ou como uma cabeça queimada pelo ácido.
« – Vocês só falam de droga, nunca vi.
– Isso é porque o mundo tá drogado, irmão. Até parece que tu não sabe. Já te falei, vou falar de novo: uma semana sem drogas e o Rio de Janeiro para. Não tem médico, não tem motorista de ônibus, não tem advogado, não tem polícia, não tem gari, não tem nada. (…) A droga é o combustível da cidade.» (p. 91)
No seu cartão de identificação é designado como pardo. «Sou um negro de pele clara. (…) Cresci ouvindo que era moreno, que não é uma coisa nem outra. A minha mãe e o meu pai são negros, a minha avó paterna é indígena, o meu avô paterno é negro, a minha avó materna, que me ensinou a ler, era branca, bem branca (…); no fim, é tudo uma grande mistura.» (da entrevista a Isabel Lucas, no Público, de 26-07-2019)
Geovani Martins tinha vergonha de dizer que vivia no bairro do Vidigal até que percebeu que essa era a sua identidade e a sua força como escritor, permitindo-lhe escrever sobre o racismo, a clivagem social, a criminalidade.
«É foda sair do beco, dividindo com canos e mais canos o espaço da escada, atravessar as valas abertas, encarar os olhares dos ratos, desviar a cabeça dos fios de energia elétrica, ver seus amigos de infância portando armas de guerra, pra depois de quinze minutos estar de frente pra um condomínio, com plantas ornamentais enfeitando o caminho das grades, e então assistir adolescentes fazendo aulas particulares de tênis. É tudo muito próximo e muito distante. E, quanto mais crescemos, maiores se tornam os muros.» (p. 14)
Um livro que tem tanto de duro como de real, como o sol que arde permanentemente sobre a cidade do Rio de Janeiro, ou como uma cabeça queimada pelo ácido.
« – Vocês só falam de droga, nunca vi.
– Isso é porque o mundo tá drogado, irmão. Até parece que tu não sabe. Já te falei, vou falar de novo: uma semana sem drogas e o Rio de Janeiro para. Não tem médico, não tem motorista de ônibus, não tem advogado, não tem polícia, não tem gari, não tem nada. (…) A droga é o combustível da cidade.» (p. 91)
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