Há romances inesperados que nos tomam de assalto. E cuja riqueza só se revela quando ao tentarmos enrolar o fio da história este só se desenrola ainda mais, até nos guiar a labirintos que se adentram nos bosques de ficção. É o caso de A Última Morte do Coronel Santiago, de Luís Cardoso, publicado pela Dom Quixote (e infelizmente esgotado). Uma pessoa pensa escrever umas ideias sobre o livro em meia dúzia de páginas e, subitamente, apercebe-se que umas quantas dezenas são apenas o arranhar da superfície…

O adjectivo última remete-nos inevitavelmente para a ideia de fim, e a morte enquanto último destino na viagem da vida é uma constante no livro, como na passagem que nos remete para esse paraíso «depois da morte, quando se atravessa o mais estreito de todos os corredores, frio e escuro, antes de entrar no último comboio que atravessa um extenso túnel de luz.» (p. 54)
A ideia da morte sempre presente como a última viagem é reforçada poucas linhas depois, quando Lucas parece estar num delírio, ao acordar no hospital depois de um acidente que é determinante na sua vida, em que a sua mente deriva entre a ilha de Ataúro e o Entroncamento (para espanto de Clara, a médica), e expressa bem o desejo de morrer no sítio de onde partiu há cerca de 25 anos:
«- Quero morrer num outro sítio, tão distante que está a minha ilha de Ataúro. (…) Não quero que ninguém me veja defunto, nem chore penas e mágoas por um corpo que me serviu para fazer a travessia do tempo, entre uma margem e outra, deste mar que não sei onde acaba, desta vida que provavelmente acaba na cama onde estou deitado.» (p. 54-55)
O adjectivo última, patente no título, além de poder desconcertar o leitor pelo estranhamento de se referir uma última morte (como se alguém morresse várias vezes) remete ainda para a ideia de encerramento, o que se confirma no próprio livro, pois no fim do romance, para que não restem dúvidas da intenção do autor de encerrar aqui um “capítulo” da sua obra narrativa, poderemos ler «O Fim da Travessia». Uma frase que surge como uma espécie de epitáfio (ou epígrafe ao contrário), logo depois da última frase do romance, «O sol fazia-se anunciar.» (p. 293), como se fosse ainda uma última frase do livro – até porque não há qualquer espaçamento gráfico na página. Estas duas frases remetem para um álfa e um omega, como a serpente que se recolhe, enrolada em torno de si mesma, como um mundo narrativo perfeito autotélico que passa a existir eternamente fora do tempo.
Se voltarmos um pouco atrás, apenas 2 capítulos, poderemos ler, também, como Lucas ao regressar a Timor se demora por Díli conforme tenta fazer jus à bolsa literária que ganhou e que lhe exige dedicação exclusiva à escrita, mas continua sem conseguir «alinhavar sequer uma única frase» (p. 221). Saberemos ainda como «um amigo de longa data» lhe sugere, «por antecipação», um nome para esse livro ainda por nascer: «depois de ter lido em língua inglesa a tradução do seu primeiro romance que o título fosse.
«O Fim da Travessia.»
Assustou-se com esta sugestão. Ainda ficou a olhar para ele abismado. Era como se lhe tivesse anunciado a sua própria morte.» (p. 221)
Pois, num exercício perfeito de metaficção, a morte do livro é o fim do autor ou, por outras palavras, o fim do livro é a morte do autor.
O título do livro A Última Morte do Coronel Santiago parece ainda estabelecer uma relação intertextual com Crónica de uma Morte Anunciada, de García Márquez, o que não é de todo forçado se atentarmos na sombra omnipresente da morte ao longo do livro e no carácter extra-ordinário ou sobrenatural de alguns aspectos da narrativa.
Além de que, no final do livro, o protagonista a certa altura adormece e quando acorda apercebe-se que lhe vestiram a roupa branca que era do seu pai, sem nunca se perceber se é o traje do seu casamento ou simultaneamente o do seu enterro, até porque Lucas começa de facto a incorporar mais e mais o velho coronel Santiago, ao ponto de usar a sua cigarreira e inalar o rapé.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.