Juliet Marillier, autora de culto do fantástico, tem agora a sua primeira obra relançada pela Planeta, numa novíssima edição da obra A Filha da Floresta. Este livro originalmente publicado em 1999 marcou a estreia da autora e o início da trilogia Sevenwaters, que teve ainda, mais tarde, outras obras que se podem enquadrar neste ciclo como A Vidente de Sevenwaters e A Chama de Sevenwaters.
A autora recupera nas suas obras mitos e lendas da tradição céltica, sendo que o cenário das suas obras remonta quase sempre à antiga Irlanda. Desta vez, a autora não se baseia numa história da Escócia ou da Irlanda, mas sim numa história alemã, «Os seis cisnes», recolhida pelos irmãos Grimm.
Sorcha é a sétima filha de um sétimo filho, o Lorde Colum. Todos os outros seis irmãos são rapazes. Lady Oonagh consegue seduzir Lorde Colum com a sua beleza mas não ilude completamente os seus sete filhos. Frustrada e furiosa por ver que os seus planos podem fracassar, acaba por enfeitiçar os irmãos de Sorcha, transformando-os. Cabe a Sorcha desfazer a maldição, enfrentando temíveis provas com determinação e amor, para que os seus seis irmãos possam recuperar a forma humana e sobreviver à maldição.
Conforme ao espírito dos contos populares, existe uma madrasta malvada, uma transformação, e uma maldição a ser resolvida com a ajuda de intervenientes mágicos, pois Sorcha conta com a ajuda das Criaturas Encantadas do Outro Mundo, que a tomam sob a sua protecção, pois Sevewaters é um espaço mágico no coração da Bretanha:
«A nossa casa tinha o nome dos sete riachos que desciam dos montes para o grande lago cercado de árvores. Era um lugar remoto, calmo, estranho, bem vigiado por homens silenciosos que deslizavam pelos bosques vestidos de cinzento e que mantinham as armas bem afiadas.» (p. 18)
Neste recanto isolado, no centro da floresta, num anel formado pelos montes, os habitantes de Sevenwaters estão a salvo de salteadores, reis, assaltantes, dos nórdicos ou dos pictos. Mas não estarão completamente a salvo da magia de Lady Oonagh. Ver artigo
Escrito em 1961, este é um romance belo, melancólico, perturbante, em que se realiza uma meditação sobre a sexualidade e a morte.
Eguchi é um senhor que ouve falar numa casa de prazer para «clientes no inativo», o que não é de todo o seu caso, como a personagem constantemente lembra o leitor, apesar de a narração ser feita na terceira pessoa, mas realizada a partir da corrente de consciência e da focalização do próprio Eguchi.
«O velho Eguchi, ao longo dos seus sessenta e sete anos de vida, tinha conhecido, evidentemente, noites bastante desagradáveis com mulheres. (…) Eguchi não sentia nenhuma vontade, com a idade que tinha, de experimentar uma nova sensação desagradável com uma mulher.» (p. 19)
Mas apesar de haver memórias indeléveis, Eguchi apenas parece lembrar boas recordações das mulheres que passaram pela sua vida, enquanto dá por si a entrar naquela casa, primeiro por curiosidade, depois por uma ânsia cada vez maior que não chega nunca a ser sexual.
As belas adormecidas são como «bonecas vivas»: «tinham feito dela um brinquedo vivo a fim de evitar qualquer sentimento de vergonha a velhotes que já nada tinham de homens.» (p. 25)
Durante o seu sono profundo, Eguchi pode observar estas jovens virgens, que serão quatro, uma por capítulo, ao longo das suas quatro espaçadas visitas a essa Casa, belas inconscientes que cheiram ainda literalmente a leite, pois são postas a dormir durante toda a noite, sem haver o risco de acordarem e testemunharem a companhia dos velhos que as procuram para as mirar ou dormir a seu lado.
A Casa das Belas Adormecidas inspirou Gabriel García Márquez, com o seu Memória das Minhas Putas Tristes.
Nascido em Osaka, em 1899, ficou órfão aos dois anos de idade. Formou-se em Letras pela Universidade Imperial de Tóquio, em 1924, e publicou o seu primeiro livro em 1927.
Yasunari Kawabata foi Prémio Nobel da Literatura em 1968. Suicidou-se em 1972, com 72 anos.
As suas obras mais populares estão publicadas pela Dom Quixote. Ver artigo
«O meu nome é Karim Amir, e sou inglês de nascimento e criação, ou quase. É frequente considerarem-me um tipo de inglês singular, estranho, uma espécie de raça nova, uma vez que sou fruto de duas velhas civilizações.» (p.9)
Assim inicia este retrato irreverente de um “indiano” nascido na Inglaterra e da sua entrada na vida adulta, numa Londres diversa étnica e culturalmente, de frenesim musical, de liberdade sexual, de devaneio artístico, onde o leitor acredita mesmo que Karim frequenta a mesma escola onde David Bowie estudou.
Karim tem dezassete anos e é um adolescente dos subúrbios do Sul de Londres na década de 1970. Além da sua própria ambivalência sexual, tão depressa atraído por Charles como envolvido com Jamila ou Eleanor, Karim, duplamente à margem, como suburbano e como fruto do casamento de um imigrante com uma inglesa, está desesperado por se mudar para o centro de Londres para poder pulsar nas suas veias e viver a vida no único meio que o cativa, o da arte do palco.
Um livro que conta uma vida de excessos, de descoberta e ascensão de classes, com uma linguagem cómica e enfeitiçante. Mas onde se sente também como o autor procura desfazer os próprios mitos criados em torno dos imigrantes, como acontece tão exemplarmente na personagem do pai que dá nome ao livro.
Hanif Kureishi, é ele próprio filho de pai paquistanês e mãe inglesa. Nasceu em Londres, cenário dos seus romances, contos, ensaios, peças de teatro e argumentos para cinema, como A Minha Bela Lavandaria, filme de Stephen Frears de 1985, filme em que um paquistanês beija um skinhead branco.
A obra do autor tem sido publicada na íntegra pela Relógio d’Água. Ver artigo
Daphne du Maurier nasceu em Londres, em 1907, no seio de uma família de artistas e intelectuais. Filha de actores e neta de escritor, revelou-se desde tenra idade, não só uma leitora voraz, mas também possuidora de uma imaginação fértil. Começou a escrever artigos e contos em 1928 e publicou o seu primeiro romance, The Loving Spirit, em 1931. Foi no entanto Rebecca, o seu quinto romance, que a popularizou. Ao longo da sua carreira, continuou a escrever contos e escreveu igualmente peças e biografias.
Rebecca foi em boa hora relançado pela Editorial Presença, que publicou ainda outras obras da autora, como A Pousada da Jamaica e A Minha Prima Rachel.
A Minha Prima Rachel inicia quando Philip se recorda com nitidez de um momento da sua infância em que viu um homem de grilhetas enforcado nos Quatro Caminhos.
Philip sabe bem que «não se pode voltar atrás» mas é a partir dessa estranha lembrança que nos conduz pela história de como perdeu o seu pai adoptivo e encontrou a sua prima Rachel.
«Na vida não se pode voltar atrás. Não há recuo. Não há segunda oportunidade. Aqui sentado, vivo e na minha própria casa, é-me tão impossível retirar uma palavra proferida ou desfazer um ato realizado como o era ao pobre Tom Jenkyn a oscilar nas suas grilhetas.» (p. 13)
Passaram-se dezoito anos, e entretanto Philip tem vinte e cinco, mas é a partir da recordação nítida desse homem suspenso, com o rosto e o corpo cobertos de alcatrão, que se espoletam as memórias que constroem o fio da narrativa.
«O rapaz que estava debaixo da janela dela na véspera do seu aniversário, o rapaz que permaneceu à entrada da porta do quarto dela na noite da sua chegada, desapareceu, tal como desapareceu a criança que atirou uma pedra a um homem morto num patíbulo para criar uma falsa coragem.» (p. 13)
Quase como se um condenado à morte por ter morto a mulher estivesse na mesma condição humana de um desgraçado que se apaixona pela mulher errada. Como lhe vaticina o seu padrinho: «Há mulheres, Philip, boas mulheres, muito possivelmente, que, sem que a culpa seja sua, atraem a fatalidade. Tudo o que tocam se transforma em tragédia. Não sei porque te digo isto, mas sinto que devo dizê-lo» (p. 13).
Philip é criado pelo seu primo Ambrose, após a morte dos seus pais quando ele tinha cerca de dezoito meses, altura em que se muda para o solar do primo onde é criado inicialmente por uma ama que acaba por ser despedida quando esta dá umas palmadas no rabo de Philip, então com três anos, altura em que Ambrose toma definitivamente a seu cargo a educação e a criação da criança, começando por lhe ensinar o alfabeto usando a letra inicial de todos os palavrões.
Philip considera que ele era como o seu primo Ambrose: «dois sonhadores, pouco práticos, reservados, cheios de grandes teorias nunca postas à prova, e, como todos os sonhadores, adormecidos para o mundo real» (p. 12). Ver artigo
A Minha Prima Rachel inicia quando Philip se recorda com nitidez de um momento da sua infância em que viu um homem de grilhetas enforcado nos Quatro Caminhos.
Philip sabe bem que «não se pode voltar atrás» mas é a partir dessa estranha lembrança que nos conduz pela história de como perdeu o seu pai adoptivo e encontrou a sua prima Rachel. Ver artigo
Reler um romance como Rebecca após 10 anos tem o condão de fazer ressurgir lembranças bem vívidas, como a sinistra Mrs. Danvers, a ingénua protagonista sem nome, e o emblemático final em que a sugestão paira no ar como um clarão distante, ao mesmo tempo que se faz a leitura de todo um novo livro que desconhecíamos por completo e que merece justamente ser revisitado, como quem regressa a Manderley.
Os pressentimentos e maus presságios conferem um ambiente fantástico ao romance, que se afasta do melodrama romântico para se aproximar mais do universo policial e misterioso, em que a eterna inominada e jovem heroína, Mrs. de Winter, segunda esposa de Maximilian de Winter e sucessora de Rebecca, tenta juntar as peças desse enigma chamado Rebecca para poder compreender o comportamento do seu enigmático e por vezes irascível marido, o ódio da governanta que se move como uma sombra a dominar a casa, ao mesmo tempo que tenta lutar contra o fantasma omnipresente da sua antecessora, senhora da mansão de Manderley, que parece capaz de devorar tudo e todos, inclusivamente a sua própria identidade.
Rebecca, de Daphne Du Maurier
Originalmente publicado em 1938, conheceu inúmeras reedições e Alfred Hitchcock adaptou-o ao cinema em 1940, vencendo dois Óscares. Foi em boa hora relançado pela Editorial Presença, que aliás já publicou outras obras da autora, também adaptadas ao pequeno e grande ecrã, como A Pousada da Jamaica e A Minha Prima Rachel. Ver artigo
Uma prosa enfeitiçante e um livro cativante que prende rapidamente o leitor, apesar da ambiguidade próxima de um ambiente fantástico que por vezes toca o grotesco mas sempre sem perder o lirismo.
Depois do êxito de A Vegetariana, vencedor do Man Booker International Prize de 2016, a Dom Quixote publica o segundo romance da autora sul-coreana Han Kang, professora de Escrita Criativa no Instituto de Artes de Seul, publicado originalmente em coreano em 2014 e traduzido a partir do inglês numa tradução atenta e cuidada.
No primeiro capítulo narra-se a história de um rapaz que procura o amigo, sendo esta voz narrativa bastante peculiar pois é narrada na segunda pessoa, como se o narrador falasse com a própria personagem: « – Parece que vai chover – murmuras para ti próprio.» (p. 13)
Esta segunda pessoa que parece dirigir-se ao leitor, identificando-o com o rapaz, marca o tom desde a primeira linha atrás citada, e apesar da ambiguidade e dos contornos incertos do que se descreve incita a uma leitura implícita da obra como um retrato político de uma realidade traumática vivida na Coreia do Sul, nos anos 1980, que resultou num dos piores massacres da história do país.
No segundo capítulo, encontraremos «O amigo do rapaz» e perceberemos que ele está morto, contando-nos a sua perspectiva do desfecho do massacre, primeiro como cadáver e depois como fantasma.
Neste livro narra-se, primeiro com ambiguidade, mas depois sem rodeios e cada vez com mais precisão, a brutalidade da repressão e da censura, num momento particularmente delicado na história da Coreia do Sul, quando o país vive sob a lei marcial e depois Park Chung-hee é assassinado pelo próprio chefe dos seus serviços de segurança, apenas para suceder ao poder outro militar autocrata.
Para narrar o inacreditável mas verídico massacre de quando em 1980 os estudantes se revoltaram contra o encerramento das universidades e a falta da liberdade de expressão, a autora Han Kang opta por filtrar os acontecimentos de forma intimista e pessoal, num tempo narrativo em que o passado se intromete recorrentemente no presente, a lembrar que a voz da história não dá descanso. Ver artigo
Uma colectânea de onze contos – transgressores, subversivos, por vezes desconcertantes –, de Hilary Mantel, autora inglesa, com catorze livros publicados, duas vezes premiada com o Man Booker Prize pelas obras Wolf Hall (adaptada a mini-série televisiva) e O Livro Negro, que formam parte de uma trilogia centrada no reinado de Henrique VIII.
Em «Desculpe incomodar» encontramos um relato estranhamente intimista num apartamento claustrofóbico na Arábia Saudita, como que simbolizando o próprio ambiente reclusivo que as mulheres vivem nesse país, sejam elas locais ou as esposas que acompanham os seus maridos em missão. Há seis meses que a protagonista vive na Arábia Saudita com o marido, enquanto tenta escrever e sobreviver às suas dores de cabeça, quando faz uma amizade improvável com um vendedor.
No conto «Férias de Inverno», uma viagem de férias por uma estrada de montanha tem um desfecho trágico enquanto um casal no banco traseiro do táxi parece considerar se é melhor ter filhos ou investir em férias.
«O assassinato de Margaret Thatcher: 6 de Agosto de 1983» é o último conto da colectânea que confere o título ao livro e aparentemente um conto original nunca antes publicado, enquanto que outros nove dos onze contos foram anteriormente publicados em revistas ou colectâneas de vários autores. Com a ambiguidade que tantas vezes perpassa nas outras histórias, temos uma senhora que mora numa rua silenciosa e tranquila, sombreada por grandes árvores antigas, de grandes casas vitorianas ou georgianas, e que espera o homem que vai arranjar a caldeira mas depara-se com o que julga ser um fotógrafo pois ele entra-lhe pela casa afirmando que precisa de um bom plano da primeira-ministra que está prestes a sair do hospital onde fez uma cirurgia ocular. O diálogo que se segue, e onde não podia faltar a preparação de uma chávena de chá oferecida ao visitante/intruso, é deliciosamente ambíguo, pois o leitor apercebe-se entranto que a vista desimpedida que o homem pretende é para poder atirar sobre Margaret Thatcher, o que não ofende particularmente a sensibilidade da dona da casa…
Transversal a todos os contos destaca-se ainda a mordacidade narrativa como, por exemplo, na passagem: «Mesmo que nunca tenham passado por Harley Street, já devem ter criado uma imagem na vossa mente: (…) no geral, um ambiente que sugere que, se tivermos uma doença terminal, pelo menos partimos em grande estilo.» (p. 80) Ver artigo
A Casa das Letras continua a publicar na íntegra a obra do autor japonês Haruki Murakami, regressando agora ao registo do conto. Homens sem mulheres reúne sete contos do autor publicados originalmente no Japão entre 2013 e 2014, que não são propriamente breves, de fôlego curto, mas lêem-se muito bem e fazem-nos regressar ao usual universo onírico do autor. É por vezes difícil destrinçar entre autor e narrador, nomeadamente na forma como se assume a narrativa na primeira pessoa em diversos contos, além de o narrador se assumir quase sempre como um escritor, que interpela directamente o leitor, ou proprietário de um bar, como Murakami foi em tempos. A riqueza das histórias aqui reunidas parece advir dos relatos que esses narradores vão recolhendo: «Ao saber que eu era escritor, Tokai começou a revelar-me a pouco e pouco a sua faceta mais intimista. Talvez pensasse que, à imagem e semelhança dos terapeutas e dos padres, os escritores têm o legítimo direito (ou o dever) de ouvir o que os outros sentem necessidade de confessar.» (p. 103). A voz do narrador e, por vezes, a do autor são aqui claramente assumida, o que aliás só faz sentido uma vez que assim que se começa a ler Murakami em conto ou em romance é fácil sentirmo-nos puxados para esse estranho mundo familiar que se equilibra de forma periclitante, tensa, entre o onírico e o fantástico e dados que poderiam ser realistas mas que nunca são claramente objectivos. Entretecem-se assim referências comuns ao autor – literárias, cinéfilas – e, claro, a música, sempre essencial à sua escrita, do jazz ao pop, também pontuada por algumas referências clássicas, pois a música «tem o condão de ressuscitar a vivacidade das lembranças, ao ponto de fazer doer» (p. 86). Além do universo estranho que Murakami cria, onde não falta um conto inspirado em A Metamorfose de Kafka, em que o inusitado não é Gregor Samsa acordar como um insecto gigante mas sim como um jovem humano.
Homens sem mulheres, como o título deixa adivinhar, são também sete histórias de amor e desamor, quase sempre dominadas pela solidão destes sete homens, vítimas do luto ou da separação ou da saudade de uma mulher: «ao recordar a época em que eu tinha vinte anos, o que vem à tona é a minha solidão. Não tinha namorada para me aquecer o corpo e o coração, nem um amigo no qual pudesse confiar. Não sabia o que fazer dos meus dias, era incapaz de imaginar o que o futuro me reservava. Estava quase sempre fechado na minha concha, ao ponto de passar uma semana sem falar com ninguém.» (p. 86)
Como a Xerazade do seu conto, acerca de Murakami poderemos dizer um dia que se ignora «se as histórias eram reais, se não passava tudo de pura invenção, ou se era uma combinação das duas. Realidade e efabulação, observação e sonho pareciam inextricavelmente ligados, e raramente era capaz de as destrinçar.» (p. 129-130). Ver artigo
A autora nasceu em Los Angeles em 1963 e cresceu no Tennessee, onde continua a viver. Publicou o seu primeiro romance em 1992 que foi destacado pelo New Yok Times como um dos melhores do ano. Tem recebido diversos prémios e encontra-se traduzida em mais de trinta línguas. Comunidade, com o título original de Commonwealth, é o seu sétimo e mais recente romance, publicado pela Minotauro.
Num domingo à tarde, no sul da Califórnia, terra das laranjas, um membro da comunidade aparece na festa de baptizado de Franny Keating, filha de Beverly e Fix Keating, e leva como presente impróprio para a ocasião uma garrafa de gim. Bert Cousins decide aparecer sem ter sido convidado como forma de fugir à confusão do seu próprio lar, onde estão os seus três filhos e a mulher grávida.
A partir deste acontecimento fortuito, aparentemente muito pouco relevante, precipitam-se consequências drásticas na vida de dois casamentos e duas famílias, cujo impacto se arrastará durante cinco décadas. Pois foi também nesse dia que se despoletou uma forte atracção de Bert por Beverly, o que leva a um beijo e depois a um caso entre os dois que anos mais tarde motiva o divórcio dos seus cônjuges, um novo casamento e a sua mudança para a Virgínia, onde os filhos de ambos se passarão a encontrar nas férias de Verão. O destino de seis crianças com muito pouco em comum é assim unido à força, apesar de entre elas não existir qualquer animosidade, embora todas partilhem um ódio reverente aos pais.
Mais tarde, quando Franny, a bebé, se torna uma mulher adulta e se envolve com Leon, um aclamado escritor, ao nível de Roth ou Updike, é a história dos verões da juventude da namorada que irão alimentar o tão aclamado romance que os leitores de Leon há muito aguardavam, romance esse que se intitula justamente Comunidade e dará depois origem a um filme. A autora parece assim explorar a questão da validade ou justiça do aproveitamento da matéria real da vida de algumas pessoas para a criação de uma história que se faz passar por ficção, quando na verdade o que se faz a exposição pública de segredos de família.
O romance está magistralmente narrado, sem tecer juízos ou considerações, deixando a interpretação a cargo do leitor, e construído de modo a deixar pistas de que algo trágico terá ocorrido entretanto mas só ao progredir na leitura é que se poderá juntar a informação em falta. Além disso, a autora nunca procura subsumir a complexidade das personagens de forma ligeira, como na passagem: «A filha do primeiro casamento estava sempre a precisar de dinheiro, na realidade precisava de muito mais do que dinheiro, mas esta era a forma mais fácil de ela expressar as suas necessidades.» (p. 183). Ou como acontece por exemplo com a personagem de Albie, a criança mais nova e particularmente irritante que era drogada pelos irmãos com antialérgicos para que não os incomodasse. Afirma o pai que «É possível relacionar muitos dos problemas daquele miúdo com o nome.» (p. 39), mas se Albie se revela um adolescente problemático, podemos também remontar o que mais tarde acontece e que resulta na morte de uma das crianças como culpa dos pais, como no episódio emblemático do motel, em que os pais decidem dormir até tarde e as crianças ficam por sua conta, decidindo ir a pé até a um lago que fica a 3 km de distância, não sem se fazerem acompanhar de uma arma que estava no porta-luvas do carro cuja porta Caroline consegue destrancar, pois Fix, o pai, ensinara-lhe a destrancar um carro com um cabide de arame.
Uma belíssima narrativa que se pode ler como uma alegoria da família e das relações humanas como elos inquebráveis, mesmo quando apesar dos laços sanguíneos muito pouco os parece unir, e em que uma acção por muito inconsequente que pareça, tem repercussões em todos os outros, mesmo que entretanto se tenham passado cinco décadas, à semelhança de uma liga de países ou aos membros de uma comunidade que se unem apesar das suas (des)identidades distintas. Ver artigo
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