Em 1768 uma expedição deixou a Inglaterra sob o comando do capitão James Cook e regressou em 1771, depois de fazer o reconhecimento de várias ilhas do Pacífico e visitar a Austrália e a Nova Zelândia. Nos cem anos subsequentes, as terras mais férteis foram retiradas aos seus ocupantes, os aborígenes na Austrália e os maoris na Nova Zelândia, cuja população decresceu em 90 % e foram racialmente discriminados. Na Tasmânia, os nativos depois de viverem 10.000 anos em isolamento, foram completamente exterminados. Não sobrou ninguém. Mesmo depois de mortos, os seus corpos foram profanados e estudados por antropólogos e curadores de museus.
Neste magnífico novo romance, publicado pela Sextante, talvez um dos melhores da carreira de Peter Carey, autor nascido na Austrália que vive actualmente em Nova Iorque, duas vezes premiado com o Booker Prize, a intriga remonta a 1954, depois da Segunda Guerra Mundial portanto. Em capítulos alternados na primeira pessoa, entre Irene Bobs, a mulher de Titch, o melhor vendedor de carros do sudoeste da Austrália, e Willie Bachhuber, um jovem alemão, louro e bonito de 26 anos, em fuga à justiça, um mestre-escola suspenso, rato de biblioteca e vencedor (sem prémio) de um conhecido concurso radiofónico de cultura geral, o autor faz uma longa circunvolução na primeira parte do romance, isto é, em 160 páginas, o que constitui quase metade do livro. Percebemos, gradualmente, e conforme as personagens vão sendo despidas e reveladas na sua densidade psicológica, que a narrativa nos prepara para a eminente viagem em torno da Austrália, pois Titch quer a todo o custo entrar na Prova Redex Trial, ao ponto de convencer a mulher a juntar-se-lhe, para o poder controlar neste seu arroubo, se bem que ela própria percebe de carros e é boa condutora. E é também imediatamente antes da narração da viagem, uma corrida em volta do continente australiano à velocidade de 50 milhas por horas a que poucos carros sobrevivem, ficando atravessados na paisagem inóspita como carcaças, que percebemos afinal o segredo que Willie guarda. Note-se quando logo no início do romance ele se apresenta a Irene Bobs, sua vizinha: «Eu sou Willie Bachhuber, disse eu, porque a guerra tinha terminado há menos de dez anos e era melhor arrumar logo com a questão alemã.» (p. 20) Mas não é esse o segredo do nosso Willie, um jovem que fugiu à mulher e aos pais, a partir do momento em que o médico num esgar lhe mostra o filho, que nasceu negro e de cabelo preto.
Na última parte do romance, que se chama justamente «Uma bifurcação na estrada», temos 140 páginas de desfecho, em que a prova Redex – que primeiro serviu para apresentar o continente na sua magnitude e nos seus perigos, assim como o seu tecido social complexo e racista – é quase esquecida, conforme o romance dá uma guinada súbita para algo que foi sendo indiciado muito subtilmente, e apanha todos de surpresa, o leitor e a própria personagem que desconhecia as suas verdadeiras origens. Há pistas, naturalmente, como quando Irene Bobs encontra a caveira de uma criança na terra e tenta entregá-la às autoridades.
O narrador declarou em entrevista que há muito tempo que evitava abordar o tema do racismo, pois achava que não era essa a função de um escritor branco, mas neste seu décimo quarto romance, e o mais ousado, percebeu que não podia continuar a fugir à evidência de ser um escritor australiano branco beneficiário de um genocídio.
O final do romance tem alguma coisa de mito, e o próprio título ganha um sentido que vai além da corrida Redex, na forma como depois de descobrir a sua verdadeira origem étnica, aparentemente óbvia para todos os outros com que se confrontava, um mestiço (que se julgava branco) que em criança foi levado por uma águia passa a viver como um aborígene, enquanto procura preservar o legado cultural desse povo em extinção, a «registar a verdade e manter o segredo» (p. 396) e educar a geração mais nova de puros nativos.
«O meu pai pode ter sido, como tantos deram a entender, um bem-intencionado antropólogo amador abelhudo, mas era também um homem instruído e muito culto, um intelectual cuja alma tinha sido seriamente deformada devido à prática de limpeza étnica do seu país.» (p. 391) Ver artigo
Este pequeno livro de bolso da Bertrand Editora começa como um trabalho de metaficção, em que um argumentista, instalado numa casa de férias nos Alpes com a mulher e a filha de 4 anos, tenta escrever o argumento da sequela do seu filme de sucesso. Mas se de início a narrativa é perpassada por uma escrita que se pensa a si própria e onde não faltam referências a uma linguagem cinematográfica, com alguns fade in e flashback, a história começa rapidamente a transformar-se em mais do que a tentativa de escrita de um argumento muito imberbe, pois assemelha-se a um diário, organizado com entradas por datas, entre 2 a 7 de Dezembro de um ano qualquer. Pode até bem ser o caderno inacabado a que o escritor se refere, onde escreve os seus pensamentos, intercalado com as cenas e diálogos do argumento, e descreve alguém que parece transpôr o limiar da loucura.
Se de início o narrador, sempre sem nome, começa por dar conta de como o seu casamento parece estar em crise, com discussões constantes, e ele próprio parecer um pouco alienado e preferir isolar-se no seu próprio mundo, enquanto tenta dar mostras de progresso no trabalho, que na verdade pouco evolui, a partir de metade do livro a narrativa ganha contornos de um thriller psicológico. Curiosamente, assim que se sai do cenário da casa e o narrador vai até à aldeia para se reabastecer de provisões, uma mulher avisa-o: «Vá-se embora depressa.»
A partir daí o livro descende numa espiral de distorção do real. Os estranhos sonhos e pesadelos são recorrentes. A casa ganha quartos novos e outros há que mudam de lugar. No seu caderno aparecem palavras que ele não escreveu. As leis da geometria são abolidas. Os reflexos nas janelas surgem distorcidos em relação à realidade espelhada, pois não reflectem o escritor na sala. Fotografias aparecem e desaparecem das paredes. Outra pessoa parece andar pela casa. Ou talvez a dissociação entre escritor e pessoa seja tão forte que ele se começa a projectar a si próprio. E é pela escrita que ele tenta salvar-se e reencontrar-se:
«Escrevo muito depressa, anoto o que se passou. Tenho de escrever isso para não enlouquecer. Ou para o caso de qualquer coisa me acontecer.» (p. 63)
Daniel Kehlmann, alemão, é um dos escritores favoritos de Ian McEwan e de Jonathan Franzen. O livro está a ser adaptado ao cinema, numa produção e interpretação de Kevin Bacon. A sua obra A Medida do Mundo é um dos mais conhecidos bestseller da literatura alemã, traduzido para mais de quarenta línguas, e igualmente adaptado ao cinema.
Esta obra de Daniel Kehlmann foi adaptado ao cinema no ano de 2020 com o título idêntico, You Should Have Left, e conta com a interpretação de Kevin Bacon e de Amanda Seyfried. Ver artigo
Neste livro originalmente publicado em 1975, e lançado em junho deste ano pela Dom Quixote, Norman Mailer parece escrever um ensaio sobre boxe, com o rigor e a profundidade de quem escreve um ensaio literário. Refere o narrador que «A estética do boxe é muito difícil de explicar, ainda que superficialmente» (p. 199). Mas se no primeiro capítulo um leitor que nada percebe de boxe se pode sentir atemorizado, a verdade é que a prosa e a ironia do autor depressa nos agarra e gradualmente constatamos que este é um hino ao boxe de pesos-pesados e especialmente a Muhammad Ali: «No auge da sua preparação, os pugilistas vivem em dimensões de aborrecimento que as outras pessoas nem conseguem imaginar. É assim que tem de ser. O aborrecimento cria uma impaciência com a vida e um desejo violento de a melhorar. O aborrecimento cria aversão à derrota.» (p. 17)
Mas este livro é também uma memória, pois foi o autor que acompanhou o combate entre Ali e George Foreman que se realizou em Kinshasa, no então Zaire, e que sofreu um atraso de um mês devido a um corte numa sobrancelha. É ainda uma análise à identidade afro-americana, que o autor começa finalmente a perceber através do boxe, e uma elegia ao povo africano ou, melhor dizendo, congolês. Bem como uma denúncia à corrupção que assola o país:
«Considerando que Mobutu também tinha ficado conhecido pelo seu pagode chinês nacionalista e comunista, pelas residências particulares que tinha na Bélgica, em Paris e em Lausanne, pelas contas em bancos suíços, pelo namoro em curso com os árabes e pelos notáveis serviços que a CIA lhe prestava em Kinshasa, incluindo, ao que se dizia, a montagem do golpe que o havia posto no poder, não era injusto pensar no presidente Mobutu como um eclético. (Era, na verdade, a quinta-essência do ecletismo!)» (p. 34)
Norman Mailer é claramente um fã de Ali, mas não se coíbe de o descrever de forma tão humana ao ponto de assinalar as suas falhas. Um peso-pesado que «flutua como uma borboleta, ferra como uma abelha» (p. 15), «um dos melhores lutadores corpo a corpo no ringue» (p. 13) que era também um fala-barato, servindo-se aliás disso mesmo para de alguma forma desarmar os seus oponentes, um boxeador que escrevia poemas que impingia à imprensa, talvez como arma de silenciar as suas perguntas idiotas. No final do segundo capítulo, Mailer revela que é ele o narrador, o autor convidado a cobrir o combate, o que parece granjear-lhe mais fama do que tinha antes como escritor. Mas Mailer, autodesignando-se apenas como o entrevistador, apelidado de «No’min Million» por Ali, narra sempre na terceira pessoa. Inclusivamente quando se narra a si mesmo, sem pudor de o fazer a uma luz pouco abonatória:
«Acontece que o nosso sábio tinha um vício. Escrevia sobre si próprio. Não só descrevia os acontecimentos que via, mas também o seu pequeno efeito pessoal sobre os acontecimentos. Isto irritava os críticos. Falavam de devaneios do ego e das desagradáveis dimensões do seu narcisismo. Tais críticas não o incomodavam excessivamente. Já tivera um caso amoroso consigo mesmo, e nele consumiu uma boa dose de amor.» (p. 36) Ver artigo
«Há muito tempo, na ilha de Creta, uma mulher engravidou e, quando se avizinhava a data do parto, o marido, que era um homem de boa índole, foi ao seu encontro e disse: se for menino, podemos ficar com ele; mas, se for menina, não.» (p. 75) A mulher aterrorizada com a ideia de ter de matar a sua filha, foi ao templo de Ísis rezar, e a Deusa apareceu-lhe, confortando-a de que tudo iria correr bem. Quando a criança nasceu era uma menina e a mãe criou-a como se fosse um rapaz, baptizando-a com o nome Ífis, comum a ambos os sexos.
Volto a esta fantástica colecção da Elsinore de Mitos reescritos por grandes autores. Rapariga encontra Rapaz é uma reinvenção do mito de Ífis, incluído nas Metamorfoses de Ovídio, transpondo essa história para a contemporaneidade e para os seus problemas.
Anthea e Imogen Gunn são duas irmãs que vivem em Inverness, na Escócia, mas completamente diferentes. Anthea é idealista, ao ponto de não conseguir permanecer a trabalhar na empresa Pura, que faz da água potável o seu negócio, até porque é um bem essencial e um produto perfeito por estar a esgotar-se. E no dia em que um rapaz começa a grafitar a placa com o logótipo da marca com a mensagem «A água é um direito humano. Vendê-la seja de que maneira for é moralmente condenável.» e assina como Ifís, Anthea não resiste a ir ao seu encontro apenas para ser avassalada por uma tempestade interior quando ele se vira de frente para ela:
«Era o mais belo rapaz que alguma vez vira.
Mas parecia mesmo uma rapariga.
Aquela rapariga era o mais belo rapaz que alguma vez vira.» (p. 44)
Imogen é a irmã que permanece na empresa, a dar o seu melhor desempenho, envergonhada por Anthea que entretanto se torna lésbica. Até que o chefe a promove para o Departamento da Narrativa Dominante da Pura, onde «Desmentir Desacreditar Reformular» será a sua função, de modo a desacreditar notícias, com estudos fundamentados e estatísticas fidedignas, que contestem o produto que comercializam, acusando-as de terrorismo cibernético.
O trabalho de Ali Smith sobre a linguagem é, como sempre, de elevada beleza, transpondo a força do mito e o sentimento da poesia para o nosso quotidiano, contrabalançando o perigo em que colocamos o mundo:
«Graças a nós, as coisas fundiam-se numa só. Tudo era possível.
Antes de nós, desconhecia que cada veia no meu corpo era capaz de transportar luz, como um rio visto de um comboio esculpe na paisagem um canal de céu. Na verdade, desconhecia que podia ser muito mais do que eu própria. Desconhecia que um outro corpo podia fazer isto ao meu.
Agora tornara-me um rastilho ambulante, como naquele poema sobre a flor, e a força, e o verde rastilho através do qual a força impede a flor; a força que arranca as raízes das árvores arrancava agora as raízes de mim, era como uma espécie que nem se dera conta de que vivia num quase-deserto até ao dia em que a sua raíz mestra achou a água.» (p. 71) Ver artigo
Jay Parini é poeta, romancista biográfico e autor de biografias de autores de relevo, como John Steinbeck, Robert Frost e William Faulkner. A sua obra A Última Estação retrata os últimos dias de Tolstoi, e foi adaptada ao cinema. A Travessia de Benjamin de Jay Parini, obra publicada pela Elsinore, segue o mesmo modelo dessa obra (e de outra ainda não publicada entre nós sobre Herman Melville), mas agora com maior profundidade, ao narrar os últimos meses da vida de Walter Benjamin, quando em 1940 este alemão de origem judaica, que se faz acompanhar constantemente de uma mala onde transporta a sua obra de uma vida, um manuscrito com cerca de 100 páginas e outros textos, se vê enclausurado com a sua irmã numa Paris cercada pelos nazis.
Neste romance biográfico, vamos seguindo o percurso de Walter Benjamin, um homem com os seus cinquenta anos, desfasado da realidade, desde os dias que passa numa biblioteca, onde fica conhecido como «o homem que se senta na Bibliothèque Nationale e nada produz» (p. 204), passando por um período em que esteve detido num centro de recolha (quase como um campo de concentração) onde é instado a dar prelecções como forma de ocupar o tempo e as mentes de uma série de refugiados, também eles intelectuais, até ao dia que é atirado, com a sua omnipresente pasta e manuscrito, borda fora de um barco onde tentava fugir, para por fim tentar uma travessia por terras de Espanha que o levem até Portugal.
«Atravessaríamos Espanha e entraríamos em Portugal, que era considerado um local mais adequado do que Marrocos para esperar pelo fim da guerra. Portugal manter-se-ia, certamente, uma zona neutra, e o nível de vida lá era razoavelmente elevado.» (p. 197)
A personagem de Walter Benjamin, uma das mentes mais brilhantes de uma geração de intelectuais e de um círculo de figuras com que conviveu, como Bertolt Brecht ou a sua prima Hannah Arendt, é sabiamente refractada através da perspectiva de outros que com ele conviveram, e poucas vezes a uma luz abonatória: «Ouvir um homem como aquele punha à prova a paciência de uma pessoa. Tudo lhe fazia recordar um livro, uma personagem de um livro ou o autor de um livro. No seu leito de morte, haveria de gritar: «Lembro-me de uma cena num livro onde acontece assim!» Só com a sua morte cessariam as referências, provavelmente tanto para ele como para toda a gente.» (p. 213)
O autor recorre ainda a fragmentos escritos da obra de Walter Benjamin no início de cada capítulo, traduzidos por si mesmo, e na própria narrativa não se inibe em, por vezes, levar-nos em dissertações filosóficas que equivalem a entrar na cabeça do nosso protagonista. Os eventos, locais e datas são fiéis à realidade, e o autor baseou-se ainda em cartas bem como testemunhos escritos e escutados de quem conviveu com Benjamin, figuras essas também convertidas nesta obra em personagens. Ver artigo
Irène Némirovsky nasceu em 1903 em Kiev, então pertencente ao Império Russo, numa familia abastada. De ascendência judia, o seu pai era banqueiro e com o deflagrar da Revolução Russa em 1917 a família foge para a Finlândia, por um ano, e depois assenta em Paris. Em 1929 publica o seu primeiro romance, que é desde logo um sucesso, e adaptado ao cinema no ano seguinte. As Moscas de Outono é um dos seus primeiros romances, publicado em 1931. Apesar do nome e prestígio que ganha como escritora, quando a França entra em guerra a autora é impedida de escrever e os seus livros tornam-se proibidos. Em 1942 é detida e deportada para o campo de concentração de Auschwitz (um dos lugares mais tenebrosos que já visitei, onde me senti fisicamente mal) e morreu com 39 anos. A sua obra caiu no esquecimento durante o pós-guerra até que em 2004 o romance inacabado Suite Francesa (que li há bastante tempo) foi publicado, tornando-se um sucesso mundial, vencedor póstumo do Prémio Renaudot, e adaptado ao cinema em 2014.
As Moscas de Outono evoca justamente os lugares e desventuras da sua juventude, tendo sido escrito quando tinha pouco menos do que 28 anos, ao narrar a vida da velha serva Tatiana Ivanovna que dedicou a sua vida aos Karine. Tendo criado duas gerações da família desde a sua tenra idade, e sendo ela que permanece sozinha na propriedade da família, outrora cenário de opulência e luxo, quando tem início a Revolução Russa, a velha ama irá percorrer o país a pé no encalço dos seus amos que fugiram para Paris, transportando consigo os diamantes que simbolizam o remascente da sua riqueza e que lhes permitirá sobreviver como nobres exilados russos.
«O apartamento era pequeno, escuro, abafado; cheirava a poeira, a tecidos velhos; o tecto baixo parecia pesar sobre as cabeças; (…) e nessas quatro pequenas divisões escuras, os Karine viviam até à noite, sem sair, estonteados com os ruídos de Paris (…). Eles iam, vinham, de um muro ao outro, silenciosamente, como as moscas de Outono, quando o calor, a luz e o verão aparecem, voam penosamente, exaustas e arreliadas, contra os vidros, arrastando as asas mortas.» (p. 52)
Enquanto os Karine envelhecem e definham, Tatiana Ivanovna parece não mudar, firme e digna apesar da idade de um século, como um símbolo da Mãe-Rússia, da pátria que tiveram de abandonar.
«-Nós envelhecemos, hã, minha pobrezinha? Mas tu, tu não mudas. Dá gosto ver-te… Não, realmente tu não mudas.
– Na minha idade, já só se muda no caixão – disse Tatiana Ivanovna com um sorriso esguio.» (p. 64) Ver artigo
Deus ajude a criança conta a história, em modo alternado, de diversas personagens: Sweetness, a mãe que dá à luz uma criança negra como a noite; Lula Ann, que passa a adoptar o nome Bride, talvez por melhor condizer com a sua nova identidade; Booker, o namorado, que perdeu o irmão poucos anos mais velho ainda em criança, depois de o seu próprio gémeo ter nascido morto; Rain, uma criança de cor clara, que era prostituída pela própria mãe ainda em criança, depois expulsa de casa, e ser mais tarde resgatada por um casal.
A unir estas personagens está uma infância sofrida que pode deixar danos irreparáveis que as condenam a uma vida irreconciliável com a dádiva do amor ou a confiança da partilha. Lula Ann nasce com tez pálida como qualquer criança, mas de súbito a sua pele passa a um tom preto-azulado de forma tão inexplicável que a mãe, ironicamente chamada de Sweetness, quase a sufoca e o pai acaba por as abandonar. A partir daí a infância de Lula Ann é tão dolorosa que ela chega a desejar que a mãe a agrida apenas para poder sentir o seu toque, até que certo dia, para poder conhecer o amor que a mãe sempre lhe negou, vai ao ponto de mentir e arruinar a vida de uma pessoa apenas para conseguir que a mãe a olhe com orgulho e a segure pela mão, como quem a toca pela primeira vez. Bride, que assim decide passar a chamar-se, talvez por aprender a deixar de ter vergonha da sua cor e evidenciá-la ainda mais ao apenas vestir em tons de branco, tal como uma noiva, é agora uma mulher bem-sucedida, com a sua marca de cosmética. Mas o seu desejo de experienciar o amor mantém-se tão avassalador que ela dá por si a transformar-se, como quem encolhe, num ensejo de regressar à infância.
Deus ajude a criança não será certamente a obra mais emblemática de Toni Morrison, autora afro-americana nascida em 1931 no Ohio, a par de obras como Beloved (Amada), Tar Baby ou Song of Solomon, mas foi a sua última obra publicada em 2015 e traduzida e editada entre nós pela Editorial Presença logo no ano seguinte. Uma obra que mereceu críticas díspares, como a de que as personagens não tinham verdadeiramente densidade psicológica. Mas é, ainda assim, uma obra acima da média, sobre como a mácula da infância nos pode perseguir em adultos ou mesmo para toda a vida, onde ressoam ecos do realismo mágico ou fantástico da sua obra-prima Beloved, em torno da personagem Bride. Toni Morrison foi a primeira autora afro-americana a vencer o Prémio Nobel da Literatura em 1993, é sobejamente distinguida e aclamada, tendo recebido de Barack Obama a Presidential Medal of Freedom, a mais alta distinção civil dos Estados Unidos da América, e faleceu no passado dia 5 de Agosto, aos 88 anos, com uma obra que se distingue pela exaltação dos direitos humanos, nomeadamente sobre a condição de se ser mulher e de se ser negro/a.
«Desconfiava que a maioria das respostas autênticas relacionadas com a escravatura, linchamentos, trabalhos forçados, parcerias rurais, racismo, (…) trabalho na prisão, migração, direitos civis e movimentos de revolução negra se achavam todas ligadas ao dinheiro. Dinheiro retido, dinheiro roubado, dinheiro como poder, como guerra. Onde estava a palestra sobre como a escravatura catapultara sozinha o país inteiro da agricultura para a era industrial em duas décadas? O ódio dos brancos, a sua violência, era a gasolina que mantinha os motores do lucro a andar.» (p. 102)
O romance Beloved, vencedor do Pulitzer em 1988, foi adaptado ao cinema e conta com a interpretação de Oprah Winfrey e Danny Glover. Ver artigo
Olga conta a história de uma menina a partir do seu primeiro ano de idade, que se limita a absorver o interior da casa da vizinha que cuida de si em todos os seus pormenores, até que tendo visto o que havia para ver passa a subir para uma cadeira e a contemplar o mundo pela janela. Silenciosa e solitária, a menina filha de um estivador e de uma lavadeira aprenderá a ler a escrever com a vizinha ainda antes de ir para a escola e cedo se evidencia o seu gosto pela leitura. Quando uns anos mais tarde os pais morrem com tifo, com dez dias de intervalo, Olga será levada pela avó que a desaprova, da mesma forma que foi contra o casamento do filho com uma mulher eslava e que deu o seu nome próprio, igualmente eslavo, à filha. Mas cedo Olga evidencia a sua fibra ao rejeitar que a avó lhe troque o nome. Criada sem amor pela avó numa aldeia a leste do império alemão, num período incerto que se pressente como a viragem do século XIX, em que a própria Alemanha ainda tem as suas fronteiras por definir, Olga continua a evidenciar-se na escola, e mantém a sua curiosidade e admiração pelo mundo, isolando-se na orla da floresta a ler. Além dos livros, tem por companhia Herbert, filho do homem mais rico da aldeia, uma criança que assim que deu os primeiros passos começou a correr, não sabendo mover-se pelo mundo de outra forma, com a ânsia de descobrir com os seus próprios passos aquilo que Olga explora pela leitura. Mas com o tempo as diferenças entre Herbert, a irmã Viktoria e Olga tornam-se mais declaradas, nomeadamente entre a ambição social de Viktoria e o sonho de Olga em continuar os seus estudos, porém impossibilitada pela sua condição de frequentar o magistério público. Até que as suas vidas tomam caminhos distintos. Se no início este romance parece ter algo de conto encantado, como condiz à narração da infância e juventude, o leitor dá depois por si a atravessar o século XX à medida que Olga prossegue com os seus sonhos, vislumbrando alternativas sem se deixar render às poucas oportunidades que a vida lhe dá como mulher e pobre, e Herbert continua a correr mundo, da Namíbia ao Pólo Norte, partilhando da febre expansionista alemã das primeiras grandes explorações pela vastidão de lugares inóspitos e longínquos, numa Alemanha em constante mudança, conforme o império dá lugar à República de Weimar e depois à ascensão dos sociais-democratas, até que deflagra a guerra, e a vida de Olga continua a encaminhar-se por desvios tortuosos.
Em tom nostálgico e límpido, a prosa de Bernhard Schlink mantém-se apaixonante, neste romance publicado pelas Edições ASA, numa magnífica viagem pela Alemanha do século XX que se entrelaça magistralmente com a história desta mãe-coragem que é Olga.
Bernhard Schlink nasceu em 1944 em Bielefeld. Jurista de formação, juiz, professor de Direito Público e de Filosofia do Direito numa universidade em Berlim, é mais conhecido, entre nós, como autor de O Leitor, adaptado ao cinema e que conferiu a Kate Winslet o Óscar de melhor actriz. Ver artigo
Pessoas Normais, de Sally Rooney, publicado pela Relógio d’Água, foi considerado o fenómeno literário da década, o melhor romance do ano, Prémio Costa de Melhor Romance 2018, Livro do Ano da cadeia de livrarias Waterstones, nomeado para o Man Booker Prize 2018, Women’s Prize for Fiction 2019 e Dylan Thomas Prize 2019. Posto isto, é normal começar a leitura com um misto de reserva e de entusiasmo (incomoda sempre quando os livros são demasiado etiquetados).
Porque é que a história de Connell e Marianne, dois estudantes que aparentemente apenas estão ligados porque a mãe de Connell faz limpeza na casa de Marianne, uma enorme casa sobejamente conhecida na localidade, terá apaixonado tantos leitores, escritores e críticos?
Sally Rooney nasceu em 1991, uma jovem autora em início de carreira, já com um romance de estreia igualmente premiado e vencedora do Prémio Sunday Times/PFD Young Writer of the Year. Connell e Marianne são, talvez por isso, apresentados na sua humanidade de adolescentes/adultos (a fronteira é sempre ténue na actualidade), como jovens divididos entre a sua reputação perante a comunidade escolar e o passado familiar que carregam consigo – um não sabe quem é o pai e não quer saber; outra foi abusada pelo pai e tratada pela mãe como uma desconhecida. A acção decorre entre 2011 e 2015, período em que conhecem o seu primeiro amor, deixam o liceu para ingressar na universidade e abandonam o seu mundo familiar por novos horizontes, onde podem reescrever a sua história, de forma invertida, em que a popularidade de outrora passa a vulgaridade e a animosidade dos outros alunos de liceu é convertida em sucesso junto dos colegas de universidade.
«Marianne tinha a sensação de que a sua vida real se desenrolava algures muito longe, que acontecia sem ela, e não sabia se alguma vez iria descobrir onde e tornar-se parte dela. Muitas vezes tinha essa sensação na escola, mas sem ser acompanhada de quaisquer imagens específicas do que a vida real pudesse ser ou parecer.» (p. 18)
Connel e Marianne não são jovens vistos em retrospectiva por um olhar adulto, mas sim adultos em potência vistos por um olhar sensível que está muito próximo do seu mundo, e nos transmite como os nossos dilemas de liceu podem, fatalmente, levar a decisões erradas, apenas porque receamos o amor quando este é demasiado afrontoso para os demais, ou porque o ser amado é impopular, demasiado diferente na sua auto-suficiência, ou porque tem o inconveniente de ter nascido com olhos estrábicos e dentes tortos, ou até porque tem inclinações mórbidas, talvez decorrentes da falta de amor. Ver artigo
Numa Londres alternativa nos anos 1980, quando Margaret Thatcher comete a imprudência de uma desastrosa guerra territorial pelas Ilhas Falkland, Charlie Friend usa as suas poupanças – que dariam para comprar um apartamento – num exemplar de um primeiro lote de seres humanos sintéticos, isto é, um robot com aspecto perfeitamente humano e inteligência artificial, que pode inclusive desempenhar funções de brinquedo sexual vivo, e sugestivamente designado como Adão. Charlie talvez preferisse uma Eva, mas estavam esgotadas…
«Quanto à autonomia, conseguia correr dezassete quilómetros em duas horas sem precisar de ser recarregado ou, com um consumo equivalente de energia, conversar ininterruptamente durante doze dias. Tinha uma vida útil de vinte anos. Era corpulento, de ombros direitos, pele escura, cabelo preto espesso penteado para trás; a cara era estreita, com um nariz ligeiramente adunco a sugerir uma inteligência sólida, uns olhos pensativos» (p. 12)
Ian McEwan, um dos mais importantes autores britânicos, depois do irreverente Numa Casca de Noz em que coloca um embrião a meditar sobre a Inglaterra em fase Brexit, continua a meditar sobre o futuro da raça humana nestes tempos conturbados em que a tecnologia ameaça (?) ultrapassar a inteligência humana. Ver artigo
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