Este é talvez o livro mais intrigante (e para alguns poderá ser desconcertante) que li recentemente desta nova e jovem voz da literatura portuguesa, finalista do Prémio Leya, publicado pela editora casa das Letras, mas com outros romances já publicados e com colaboração assídua na imprensa de crónicas e artigos.
Sem querer adiantar algumas das surpresas do livro para não tirar a devida surpresa ao leitor podemos começar por situar a acção num tempo incerto, numa localidade rural onde se sente a primitividade de tempos remotos, que mais tarde saberemos ser na noite de 2 de Fevereiro de 1893, anos antes da morte do rei D. Carlos e do fim da monarquia.
O início do livro lembra um romance gótico ou, na tradição portuguesa, um episódio de Montedemo, de Hélia Correia, quando a população da aldeia sai em peso armada de forquilhas e archotes para expurgar um pecado hediondo, sempre nomeado mas nunca explicado até vários capítulos depois, fazendo justiça pelas suas mãos como forma de expulsar o Diabo das suas terras. A voz narratorial ou a forma como a autora escolhe narrar a história é um dos pontos fortes do livro. No primeiro capítulo, quando nos vemos apanhados numa míriade de vozes em catadupa, onde o leitor toma conhecimento da acção através da corrente de consciência das personagens, e do seu discurso tantas vezes entrecortado e interrompido, o narrador quase parece desaparecer, deixando o palco a esta polifonia de vozes que constituem a aldeia – o que lembra essa quase ausência de voz narratorial em O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge. Por isso mesmo proliferam certos arcaísmos de uma linguagem que se procura mais popular, mas em que prosa é ainda assim muitas vezes poética: «Movem-se os archotes, mais altas do que as chamas as vozes. Movem-se os archotes, e as chamas como que ferem a lua.» (pág. 20). Poderemos ler mais à frente sobre a «noite em que tomaram varapaus e foices, tochas e carqueja, em que se moveram com robustez de passos e com as vozes em tão grande arruído, as vontades como uma só e toda sanha» (pág. 50).
Mas são as personagens de Ana e do padre Engrácio, ausentes dessa turba de «coração empedernido», que se destacam no romance, justamente porque irão salvar do fogo duas crianças, fruto do pecado. Ana e o padre são-nos assim apresentados como figuras de bondade e rectidão, ainda que se movam entre mundos muito distintos: «Disse o padre Deus é grande e depois Rómulo e Remo. O quê, senhor padre? indagou a Ana. Nada que seja importante dar-te a conhecer agora, nem nunca. O padre tem noção de que a sabedoria da Ana lhe vem do coração, dos sentidos e da experiência e que em nada lhe acresceria ter acesso a erudição, conhecer um mito da fundação de Roma para quê?» (pág. 26). E estes mundos tão apartados, que são essa ciência de se ser homem ou mulher, são uma constante ao longo do romance, nomeadamente na forma como o homem é mais virado para a força bruta enquanto a mulher vive de pressentimentos e de conhecimento íntimo que lhe chega do coração. É o caso de Ana, parteira que nunca perdeu uma criança, que vive de uma sabedoria interior e de pressentimentos, ou da Brites parteira e curandeira. Contudo as mulheres são também capazes de crueldade, «piores do que os homens, pois muito entre si pelejavam de língua», como a Ascensão: «uma mulher de maus fígados e de coração enfaixado em liações de crueldade, o Álvaro Bouça é um pau-mandado da mulher, todos o sabem. É ele o regedor, mas é ela que o incita, que lhe sussurra ao ouvido, como a serpente a Eva, todas as decisões que ele deve tomar.» (pág. 35). Talvez não seja por acaso que Ascensão é descrita como sendo de «modos pouco de mulher» e um «ventre seco», à semelhança de Jesuína Palha, essa mulher varonil que em, uma vez mais, O Dia dos Prodígios é quem tem a coragem e a força para matar a cobra voadora, símbolo do pecado, sendo aqui Ascensão quem incitou a população a deitar fogo à casa na orla da floresta onde estavam as duas crianças, e quem depois incita a matar a cadela prenhe, por ser uma lembrança do pecado que tentaram extirpar pelo fogo. O Diabo é assim uma figura omnipresente no romance, cujo rasto se pode encontrar nas mais diversas aberrações, como é o caso do Carrocinha que nasce com «marca da coisa ruim», «mostrengo que nascera de cópula com Satã», mas que a mãe consegue salvar à sanha de uma outra aldeia, mas sem nunca lhe dar um nome.
Nos capítulos seguintes, onde o narrador passa muitas vezes à primeira pessoa, os anos vão-se sucedendo, e a perspectiva vai oscilando de uma personagem para outra, dando conta de como a aldeia parece ter-se esquecido do sucedido, com a consciência aparentemente tranquila ou, como diz o padre Engrácio, «a hipocrisia dos homens é aquilo que melhor os define. Pessoas que vão à missa e que aparentam virtude afinal não passam de sepulcros caiados.» (pág. 51).
Quinze anos depois, coincidentemente no ano da morte do rei e da monarquia (ainda que este fundo histórico seja sempre pouco relevante), chegamos finalmente até Laura e Lourenço Duchamp, no capítulo 6.1 (haverá depois um capítulo 6.2 que dá conta de um romance bipartido a partir daqui entre estes dois protagonistas, como duas metades que se completam, a narrar directamente o que lhes sucedeu), as crianças salvas ao fogo por Ana e o padre e que foram baptizados e entregues a orfanatos distintos. O pecado continua presente, nomeadamente na vida de Laura enclausurada num asilo, protegida dos «vícios que vêm de fora» pois «o mundo é casa do demónio»: «À noite despimos a bata, o vestido e o corpete para vestirmos uma camisa também grossa e longa, parda, (…) claridade não permite que nos vejamos umas às outras, (…) olhar-se e olhar as outras é pecado» (pág. 122).
Somos introduzidos por Ana na segunda parte (e metade) do romance quando dezasseis anos depois regressa ao local do sucedido para, nos capítulos seguintes, recuarmos até ao princípio da história e conseguir perceber afinal esse mistério que se foi adensando desde as primeiras linhas do romance e ainda não desvendado, acompanhando Jacques Duchamp, um desertor do exército francês, pouco depois do cerco de Almeida e pouco antes de Fevereiro de 1811. O narrador é agora omnisciente e leva-nos por vezes a certas prolepses que o confirmam, além de ganhar uma certa ironia que lembra por vezes o jeito de Saramago: «a felicidade não apresenta dados interessantes para deles se fazer história» (pág. 179).
A linguagem é cada vez mais carregada de sentido, conforme o desfecho se aproxima, e prende cada vez mais o leitor que se sente agora puxado para uma alegoria sobre o amor (e que me lembra não sei bem porquê o mito do andrógino) e uma história que é afinal cheia da força do mito; as terras da casa outrora consumida pelas chamas são recorrentemente descritas como sendo o paraíso; António, que parece personificar o mito do bom selvagem, pois era um doutor de leis mas procura um meio de vida mais primitivo e vive como pastor pois um «homem preso a leis é um homem triste»; um gémeo que nasce filho único e desde aí é perseguido por uma saudade e uma solidão incompreensíveis aos olhos de todos (o que lembra este tema explorado na obra de João de Melo, autor açoriano, em Gente Feliz com Lágrimas ou no conto «O gémeo e a sombra»); a mesma solidão que acompanhará Laura e Lourenço; até que regressam finalmente, conduzidos unicamente pelo destino, mas avassalados pelo reconhecimento, à terra e à casa de onde foram arrancados para poder sobreviver, até chegarem a essa paisagem perto da qual corre um ribeiro de águas «tão puras como se apenas a mão do Criador as tivesse tocado num gesto inicial», sob um «céu rosa-laranja-azul como o do início dos tempos», na «primordialidade de um nascer inteiro».
Paula de Sousa Lima é certamente uma nova voz narrativa a descobrir melhor. Ver artigo
«Contos à Moda do Porto de Miguel Miranda» in O Conto Português Pós-25 de Abril. O Grande Prémio Camilo Castelo Branco, Org. de Petar Petrov, Roma Editora, Lisboa, 2012, pp. 105-110. Ver artigo
Publicado na Colóquio Letras, n.º 190, Set. 2015, p. 229-231. Ver artigo
Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, tem várias edições mas a que lemos é a de formato de bolso da Cotovia, numa edição cuidada e esmerada que dá gosto transportar para todo o lado para nos sentirmos em boa companhia. Ao fechar um livro como este, cuja leitura não termina, fica sempre a sensação de que há muito a dizer mas resta ainda o conforto da certeza de que voltaremos a ele. O título diz tudo: Memórias, escritas pelo próprio, mas Póstumas, isto é, de um qualquer lugar pós-morte e talvez por isso Brás Cubas ganha em objectividade e desprendimento quando nos deixa este magnífico relato na primeira pessoa da sua vida. O narrador-personagem não se foca jamais na morte ou naquilo que está para lá dela – pelo que os seguidores do espiritismo podem ficar um pouco desiludidos. Sabe-se apenas que ele escreve a partir do sepulcro ou, paradoxalmente, de algum sítio entre as nuvens: «Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola» (pág. 53). Tem sido ainda apontado que Brás Cubas possui um certo cunho autobiográfico, fantasia à parte, o que pode explicar passagens em que o narrador se assume como o autor, sempre interpelando directamente o leitor (o que muito contribui para a modernidade deste texto), por vezes até quase o ridiculariza ao mesmo tempo que arvora saber quais os gostos do leitor (que são apenas uns cinco…); ou pela certeza expressa de que as suas Memórias de além túmulo serão publicadas e lidas por aqueles que o conheceram em vida, aliás, pelos poucos que lhe sobreviveram, nomeadamente Virgília. Neste livro, não há personagem que não seja introduzida que não seja depois retomada, e conforme a vida de Brás Cubas decorre assistiremos a várias mortes, sendo a da mãe aquela que despoleta o maior abalo na personagem – levando ao desabrochar da flor da melancolia de que Anabela Mota Ribeiro fala. Brás Cubas parece sempre perder a sua oportunidade, mas fica também a ideia de que é por inércia – como na passagem em que a sege já está parada no seu destino e ele se pergunta porque não avançam – que a sua vida, afinal, se resume por uma série de falhanços pois ao contrário do que o pai pretendia, e por isso o mimava, Brás Cubas não parece deixar grande feito de «nomeada». O seu ímpeto cesariano parece perder-se, como se traduz num bacharelato feito sem grande aproveitamento, um noivado falhado e uma carreira pública que é referida mas parece que sempre de forma indirecta – ou talvez porque Brás se deixa mais depressa enredar nos seus amores e desamores do que num feito que perdure, mas agora vistos de forma clínica e crua: «Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis» (pág. 63). É um claro golpe de ironia, que revela como alguém apesar do seu berço de ouro e das aspirações que lhe teciam pode falhar na vida, que a noiva de Brás Cubas seja depois a sua amante.
Os capítulos são curtos, por vezes limitando-se a certas piadas gráficas, todos eles intitulados de forma sugestiva, outras vezes num piscar de olho irónico ao conteúdo («Vá de intermédio»), a linguagem é escorreita e puxa o leitor imediatamente para o centro da história e talvez por isso ficamos sempre com a sensação de que Brás Cubas, ao narrar as suas desventuras, é um ser, aliás, uma alma que mais do que resignada se encontra em paz com o destino que lhe coube em sorte – e que terá sido ele próprio a traçar até porque entidades omnipotentes como Deus não são para aqui chamadas. Por isso nunca sofremos como tragédias as perdas e as desilusões do protagonista, dado o tom ligeiro e quase jocoso por vezes assumido na narração, até porque «o leitor (…) não se refugia no livro, senão para escapar à vida» (pág. 262).
Tenho sempre a clara sensação de estar a ler Eça de Queirós, com a sua lupa de análise crítica da sociedade, na forma como se narram adultérios que parecem conhecidos por toda a cidade, como Brás Cubas acaba por gorar as expectativas de uma «grande futuro» e nunca chega a assentar como se esperaria de alguém na sua posição, pela amizade com Ega, perdão, Quincas Borba, na sua filosofia revolucionária, talvez fruto de uma semidemência, nos presságios que por vezes se sentem – e mesmo em Eça também os há – como as borboletas negras,…
E por fim, e acho que aqui reside a grande magnitude deste livro, quando chegamos ao fim somos remetidos novamente para o princípio numa circularidade fechada e que deixa ao leitor o critério de como opta por se adentrar neste texto ou de como prefere deixá-lo: «hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte» (pág. 19). O último capítulo é todo ele de «negativas» mas a verdade é que a história começa nas primeiras páginas, onde se narram também os últimos episódios da sua vida, como o emplastro para a melancolia que não se cumpriu, e é a elas que deveremos voltar para apurar se afinal essa vida se cumpriu ou não. A circularidade traduz-se ainda na forma como a partir deste livro podemos chegar a outras personagens de outros escritos do autor, como Quincas Borga ou o alienista do seu conto.
Machado de Assis, cuja vida dava ela própria um filme, perdão, um livro, nascido em 1839 no Rio de Janeiro na pobreza, sofrendo de epilepsia – o que pode explicar a sombra da morte e do ridículo neste livro, como quando Brás se recusa a pensar casar com uma coxa – até se tornar fundador da Academia Brasileira de Letras de que foi o primeiro presidente, influenciou muitos autores – até Woody Allen elege este livro de entre os seus cinco favoritos. Ver artigo
É quase com receio, ou pelo menos com imenso respeito, que nos aventuramos a indagar de um sentido subjacente a este magnífico e desafiador livro de um dos grandes autores da literatura portuguesa (cuja obra está publicada pela Dom Quixote), sobretudo quando nos deparamos com uma passagem que ironiza acerca das teses que hoje se possam conjecturar: «aparecia-me aquele desconchavo como uma metáfora da cultura contemporânea, um labirinto de citações de citações, projectado no espaço virtual, expediente que de resto não deixa de seduzir gente tão desejadamente articulada como o autor desta prosa» (pág. 58). E é esta voz narratorial que se assume como sendo o próprio autor («indaguei de mim próprio em que espécie de salgalhada me deixava envolver, aquele novelo de vidas ligadas a vidas» (pág. 39) que se institui como um dos grandes trunfos deste autor de biografias ficcionalizadas e de sagas familiares com fundo histórico que permitem, dessa forma, ficcionalizar a História. E de modo a reescrever a História, ou aquilo que se toma como certo sobre Luís de Camões, este romance está tripartido de forma sequencialmente regressiva, como só podia ser, de modo a nos deslumbrar no fim com a confirmação de que mesmo as teses mais polémicas e desconchavadas podem esconder um fundo de verdade.
A primeira parte tem lugar na altura em que o autor escreve Tiago Veiga, e dá a conhecer a correspondência encetada por Timothy Rassmunsen, o neto de Tiago Veiga (em que o autor numa estratégia bem pósmodernista recorre a um empréstimo homoautoral, mantendo vivas as suas personagens e fazendo-as transitar de um livro para outro), mas à qual o autor/narrador não considera sequer responder, dada a insólita tese que Timothy vai alimentando de que Camões nunca teria sobrevivido ao naufrágio no delta do Mekong, onde teria afinal perdido não só a sua amada Dinamene mas também a vida. Contudo esta «abstrusa teoria», ainda que apoiada nos escritos do explorador britânico Richard Burton, que é tida como produto de uma mente que caminha na corda bamba entre a crise de meia-idade e a loucura, consegue provocar no autor «o apetite de o converter em protagonista de um livro como este» (pág. 27).
Na segunda parte, situada por volta de 1830-90, o autor ao esbarrar num contratempo que encerra a parte precedente, vê-se forçado a recorrer à figura do camonista e tradutor de Os Lusíadas, passando a narrar algumas das peripécias vividas por este explorador que na «truculência de Luís de Camões, evidenciada pelo registo que ficou do brigão de rua, do soldado destemido, e do rebelde a burocracias, detectaria Richard Burton o traço de uma personalidade afim da sua.» (pág. 92). Será curioso notar como tanto Richard Burton como o neto de Tiago Veiga parecem idolatrar Camões tanto mais quanto se identificarão com ele, ao ponto de começar a declamar os versos da sua obra como se fossem fruto do seu engenho.
Finalmente, a terceira parte recua até ao cenário das conjecturas dos protagonistas das partes anteriores, e Ruy (nome que não é inocente…), o escrivão de bordo, narra o percurso de São Lourenço, a nau anual da China, que parte de Macau com Camões agrilhoado, e Dinamene a seus pés, o que não o impedia de ir escrevendo a sua obra durante a travessia até que, numa passagem que lembra fortemente a do Adamastor, se dá o fatídico naufrágio.
De um fino sentido de humor que perpassa a primeira parte, e em que lemos como se de um diário se tratasse as peripécias do autor/narrador, até à forte crítica social que perpassa na terceira parte, acusando a vida de um Portugal que parece não ter mudado muito nos últimos 500 anos, este é um romance com o seu quê de polémico e que confirma Mário Cláudio como um escritor dos que ficarão na História. Ver artigo
Contra a barbárie – um alerta para os nossos dias, de Klaus Mann
Como governar um país, de Cícero, Um Verão com Montaigne, de Antoine Compagnon, ou Contra a barbárie, de Klaus Mann são alguns dos títulos reunidos pela colecção da «Gradiva breve», onde não falta ainda um texto do Papa Francisco.
O que é que estes pequenos livros que integram esta colecção – com um fantástico formato de bolso como já raramente se vê – têm em comum? Dar a conhecer reflexões de figuras dos nossos dias bem como evidenciar a actualidade de pensadores de tempos mais remotos. É o que acontece com este pequeno livro que se pode transportar no bolso do casaco e folhear nos momentos livres em qualquer lugar. Reúnem-se diversos textos, aparentemente bastante díspares, deste jovem escritor (que se suicidou com cerca de 43 anos, em 1949) que, a par do seu pai Thomas Mann, é considerado um dos mais importantes escritores alemães. Estes textos e intervenções de um escritor politicamente empenhado estão coligidos de forma coesa por anos, desde 1930 a 1945, dando conta da escalada do partido nazi, da ascensão de Hitler (quando, dada a sua «mediocridade» ninguém podia prever que esta «caricatura» de homem pudesse vencer de facto e tornar-se tão perigoso), da desertificação intelectual da Alemanha pelos poetas, músicos, e do seu exílio noutros países, e do preço necessário a outros artistas para puderem permanecer no seu país. Desfilam nestes textos referências a figuras como Einstein, Stefan Zweig, Wagner, Richard Strauss, e não falta ao autor um fino sentido de humor para falar de assuntos bastante preocupantes que chega mesmo a tornar-se cáustico, nomeadamente quando escreve acerca de Hitler: «Relativamente ao estilo de Hitler podemos constatar que ele maltrata tanto a língua alemã como maltrata os seus adversários políticos. A única coisa que Mein Kampf prova é a ignorância e a arrogância do seu autor.» (pág. 88). Ver artigo
A construção do vazio, de Patrícia Reis (autora já aqui apresentada) chega às livrarias no dia 21 de Março e fecha um tríptico iniciado com Por Este Mundo Acima (2011) (um magnífico livro que foi recenseado para o Cultura.Sul – cujo texto podem consultar no blog). A obra da autora, jornalista e directora da Revista Egoísta, tem sido publicada pela Dom Quixote. Ver artigo
O livro-ensaio «A flor amarela – ímpeto e melancolia em Machado de Assis», de Anabela Mota Ribeiro, publicado pela Quetzal, é uma óptima desculpa para se (re)ler uma das grandes obras da literatura de língua portuguesa, Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, que é considerado o maior escritor brasileiro de sempre.
Um ensaio, como a própria autora esclarece em jeito de conclusão, é sobretudo uma interrogação, um tactear caminho, onde não se procura o encerrar definitivo em concha da obra em análise mas sim o ressoar da obra, como um búzio, uma caixa de ressonância onde outras obras e outros autores encontram ou despertam ecos.
Por isso mesmo ainda que partindo de uma ideia em torno da imagem da flor amarela, que simboliza a melancolia da personagem de Brás Cubas, e do seu reverso que é o ímpeto cesariano, «um ímpeto conquistador mais ligado ao fazer social», isto é, deixar algo que perdure para lá da vida, a autora deste ensaio vai lançando pistas e deixando pontas soltas para depois as voltar a atar, ou não. Porque a literatura se mantém viva enquanto aberta a várias leituras, a autora opta por se ir questionando para depois aventar respostas possíveis, sempre com base no texto em análise, que segue de forma mais ou menos sequencial ao início, mas do qual depois acaba por se descolar, conforme as questões que o texto lança se tornam cada vez mais complexas. A melancolia, essa «miséria», «relação não-quite com a vida», que Brás Cubas tenta suprir ao querer deixar um legado que lhe dê nomeada lembra a apatia ou o diletantismo que encontraremos num dos seus seguidores ou confessos admiradores, Eça de Queirós, mais precisamente na personagem de Carlos da Maia.
Em linguagem escorreita e concisa, e frases breves, o livro é composto por 45 capítulos/fragmentos, por vezes de duas páginas apenas, à semelhança dos capítulos breves de Memórias Póstumas de Brás Cubas, todos eles igualmente intitulados de forma sugestiva, para no final, e mais uma vez tal como em Machado de Assis, interpelar directamente o leitor.
Se Brás Cubas, esse narrador que nos fala do sepulcro, segue um fio cronológico, procurando não deixar pontas soltas na obra, ainda que deixe por resolver algumas linhas melódicas que depois retoma apenas para concluir (não há personagem introduzida que não seja posteriormente recuperada), Anabela Mota Ribeiro sem procurar responder a tudo aquilo a que se propõe, nem procurar impôr uma interpretação única, vai conduzindo o leitor pela obra, em certos avanços e recuos, à medida que tenta comprovar a sua tese e enquanto vai desvendando a forma como certos acontecimentos narrados se encadeiam. Pelo caminho, mostra-nos ainda como Machado de Assis foi lido por outros (Harold Bloom e Susan Sontag, por exemplo), quais as ideias que dele retiveram, e conduz-nos ao terreno puro da filosofia de Schopenhauer – de quem bebe o pessimismo –, Nietzsche, Freud… E a partir da metade do ensaio, principalmente quando se desvela esse substrato filosófico que assiste à obra de Machado de Assis, a autora ganha mais ímpeto e este ensaio sobre uma obra literária torna-se, tal como a boa literatura, um texto sobre a vida, o sentido da vida e de como a escrita pode ser o «ímpeto cesariano» que tira sentido da vida, que lhe confere sentido, que transcende a vida:
«entretecidas com fio pessimista, há uma respiração afirmativa, motivada, a nosso ver, pelo ato da escrita. Brás Cubas, ao decidir narrar as suas memórias, e numa cirscunstância post mortem, nega desse modo a morte e a contingência inelutável do humano. Escrever transforma-se num exercício de superação.» (pág. 134).
Este ensaio é um óptimo guia de redescoberta de uma obra prima da literatura em português, onde se exploram influências, imagens recorrentes – como a da flor, metáfora de sentidos vários –, símbolos e presságios, num texto que a certa altura quase se institui como narrativa autónoma e que de forma circular, como a obra que o inspirou, deixa em aberto várias portas de entrada, insinuando que numa leitura não há fim que não remeta para o princípio (o que está magistralmente ilustrado nas Memórias), que ler um livro puxa outras leituras e é no acto da leitura que reside a continuidade da obra. Ver artigo
Este livro estava desaparecido há anos das livrarias pelo que este lançamento da terceira obra publicada por Eco (um dos nossos autores de eleição) em 1994 (na edição original italiana) são óptimas notícias que chegam da Gradiva, e com uma belíssima capa. Ver artigo
Fragmentos de uma análise:
Insânia (Relógio d’Água, 1996) é possivelmente o romance mais enigmático de Hélia Correia. O livro está dividido em duas partes e percebemos logo no início da segunda parte que se aproxima o Natal e que o primeiro livro corresponde ao período de um ano e do que se sucede na Levada desde o estranho aparecimento de uma menina sem nome que passam a chamar de Natalina. No início do segundo capítulo refere-se aliás que o freixo sob o qual Francisco Amor encontra a menina numa «dobra do caminho» «dantes, pelos fins de Dezembro, ofereceria já rebentos de folhagem» (pág. 11). Nunca se percebe bem quem dá nome à menina mas haverá certamente uma correlação entre o período em que aparece e o nome que lhe é atribuído. Também não parece inocente que quem a acolhe sejam Francisco e a esposa Mercês, de seu apelido Amor – Amor de pai, de mãe, de espírito natalício que os leva a acolher a menina por uma noite enquanto alguém não aparece para a reclamar. A associação entre o título do livro e a menina sem nome pode parecer demasiado simplista, mas a isso alia-se a estranheza em torno da menina. A descrição física de Natalina, considerada «atrasada», recorrentemente comparada a um animal («como se fosse o animal da aldeia») pela sua mudez e jeito arisco, é insólita: «olhar de água», «a sua mudez», a sua «ausência de alma», «os seus grandes olhos tão claros que podia disfarçar-se de cega e pôr-se a mendigar», «bonita como um anjo», «o quanto era suspeita a sua luz, a sua palidez» (Mas lembremo-nos de que Lillias Fraser será também descrita como uma estranha criatura).
Insânia é o ambiente que se vive na aldeia da Levada, afigurando-se esta narrativa de Hélia Correia como uma distopia em que se vive, como noutros textos da autora, um prenúncio de fim dos tempos. João Barrento escreveu que a autora cria aqui «um entre-mundo meio mágico, meio absurdo, perpassado apenas por uma ténue vontade racional, onde as personagens vagueiam entre a permanência de forças atávicas e fenómenos inexplicáveis e um processo civilizacional descaracterizado que ameaça sufocar e erradicar o velho mundo.» (pág. 73) .
Mais uma vez sem indicações temporais precisas, delineia-se um tempo de desordem, assinalado por «transtornos da terra e da humanidade» (pág. 11), que antecipa o «termo do milénio» (pág. 13), e é ominosa, através das notícias que passam nos ecrãs televisivos, a presença de uma «guerra que se via progredir à distância» mas que podia, segundo os rumores, encontrar-se já «ali a cem quilómetros», enquanto que as linhas telefónicas parecem praticamente inoperacionais, exitem «estados inteiros a arder» e a Levada vive apartada do mundo, o que pode aliás ser a razão da sobrevivência desta comunidade. Este tempo de fim do mundo (referir-se-á mesmo a palavra «apocalipse») tem também, no entanto, uma dimensão mítica de princípio dos tempos, não faltando no texto referências bíblicas: «E o vento transportava, sem fronteiras, aquela nova cólera de Deus. Qualquer coisa, chegada do princípio dos tempos, qualquer coisa sem forma e sem ideia, ia encobrindo a luz em todo o lado.» (pág. 22). Respira-se o medo, vapores tóxicos e a alimentação parece toda ela artificial, feita de cápsulas – Tito Lívio, considerado o louco da aldeia por andar livremente pelos campos, chega mesmo a arriscar comer os frutos de uma macieira que encontra e cujo sabor já esquecera…
O contacto que há com o mundo é aliás quase sempre passivo, através da televisão ou dos jogos de computador a que a juventude se dedica, claramente interrompido o ritmo normal dos dias, pois ninguém parece trabalhar, nem os jovens vão à escola, nem o Café funciona: «Sabiam, pois, que estavam esquecidos pelo mundo, apesar das cinquenta e tais maneiras com que o mundo lhes ia diariamente a casa» (pág. 129). O tempo que se vive na Levada é aliás um tempo morto e regressivo, como acontece noutras narrativas do segundo quarto do século XX (O Dia dos Prodígios, por ex.): «Parecia-lhes que ouviam escoar-se o próprio tempo, tão vagaroso que ganhara peso e assentava nas coisas como um pó.» (pág. 41); «dir-se-ia dar o tempo gigantescas passadas para trás» (pág. 56). Mas «ninguém esquecia o tempo e o som do seu pulsar» (pág. 57) referindo-se mesmo, páginas adiante, um «tédio português» (pág. 59).
Quanto ao espaço, sabemos que a acção é localizada em Portugal, designado como «País», o que lembra essa indeterminação temporal e espacial que assiste às narrativas do realismo mágico. Refere-se ainda a cidade de Lisboa e os dois outros grandes pólos são Canadá e França, o que configura no romance a temática de uma diáspora portuguesa, da emigração que desertificou certas zonas do país e reforça um sentimento de isolamento da Levada, de lugar abandonado: «À medida que os cérebros concebiam melhor a noção de estrangeiro, limpando-a do fascínio que ainda se lhe agarrava, restos das eras de ouro do turismo, mais se firmavam na intransigência, apaladada ainda pelo facto de se sentirem levemente atraiçoados, eles, que permaneceram fiéis ao seu torrão e agora entendiam que o fizeram por razões merecedoras de elogio» (pág. 64).
A afirmação da diferença através da marginalidade ou da loucura, como temos visto, são dois grandes temas dos romances de Hélia Correia, mas a insânia pode estar ainda associada ao acto da escrita. Primeiramente, ressalve-se que pela primeira vez a voz autoral se impõe como uma narradora mulher: «por isso é que eu falo de harmonia»; «estou»; «Confesso»; «Por mim, direi»; «palavra que aqui avanço como narradora» (pág. 178).
A propósito da linguagem, Agustina Bessa-Luís e José Saramago, mais uma vez, surgem como figuras tutelares da escrita da autora. Tal como José Saramago, a narradora fala com o leitor, ou consigo mesma, enquanto procura as palavras certas e se debate com o desenrolar do fio da história, usando de expressões populares, e brincando com a língua (uso de forma abusiva a expressão cratilismo da linguagem em José Saramago) de que darei apenas dois exemplos que parecem justos: «vestíbulo, palavra que aqui avanço como narradora para já a retirar, chamando hall à zona que antecede as divisões» (pág. 178); ou quando fala na família de apelido Valadios, «Como bem se imagina, convidava a que a pronúncia se economizasse para melhor proveito da língua maliciosa. E não era ali caso de ter a sugestão e a praga da palavra conseguido atraír a vítima para si, transformando-a naquilo que dela se dissesse. Pois nada tinha de vadia aquela gente, só de excessivamente confiada e indulgente com todos, até consigo própria.» (pág. 206). Há depois as frases lapidares que respiram um tom agustiniano: «E o seu sangue ganhava velocidade, tocado por aqueles sentimentos de tribo que facilmente se confundem com princípios.» (pág. 64); «É plausível que andasse ali essa mistura de susto e de ócio de onde comummente saem as mais potentes convicções» (pág. 160); «Há coisas mais potentes que a curiosidade, mesmo na alma feminil que, com a felina, reparte essa lendária acusação.» (pág. 180). Ver artigo
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