Neste breve ensaio, publicado pela Gradiva, George Steiner, professor de Literatura Comparada na Universidade de Genebra e depois em Oxford, começa por discutir a importância da literatura face à oralidade, numa sociedade cujos textos fundacionais são, como se sabe, obras que nasceram justamente da lírica, como a Odisseia ou a Ilíada. Daí parte para a falta de tempo para a leitura como uma das principais ameaças à sobrevivência das letras mas, ainda mais do que isso, a importância do silêncio, como um bem tão difícil de se obter nos tempos modernos (é inevitável lembrar-me de Proust fechado no seu quarto forrado a corticite a escrever Em busca do tempo perdido na cama) e que é fundamental à leitura, como já acontecia nos mosteiros da Idade Média, onde os monges se recolhiam nas suas bibliotecas e, apesar da questão da autoria na altura não se colocar como hoje, muitas vezes criavam um segundo texto a partir dos seus comentários ao texto original. Pondera depois sobre o desinteresse das crianças e jovens pelos livros, a partir do exemplo da personagem-criança alter ego de Proust que deveria ser visto como a anormalidade, apesar de ele na altura conseguir escapar às convenções sociais refugiando-se na leitura sem risco de ser repreendido – isto lembra-me também a estranheza com que muitas vezes as pessoas me olhavam por me verem sempre agarrado a um livro sempre que chego a algum lado (como hoje se agarra um telefone), ou o eco das palavras da minha avó que me anunciava cegueira ou loucura como resultado de tanto ler. Até considerar, em jeito de conclusão, a possibilidade de se estar a aproximar a era do fim da literatura, ao jeito de Umberto Eco em Não contem com o fim dos livros, na sua recentíssima conversa com Jean-Claude Carrière, livro também publicado pela Gradiva. No final do livro, inclui-se ainda outro breve texto, intitulado «Esse vício ainda impune», que constitui a resposta de Michel Crépu a George Steiner. Ver artigo
É o mais recente livro do autor. Foi originalmente lançado em 2008 e publicado pela Relógio d’Água em Janeiro de 2017, no mesmo mês em que este grande pensador polaco faleceu. Num registo claramente contemporâneo, o autor traça um mapa actual de como encontrar a felicidade partindo dos antigos (e regressando aos antigos), passando pelos filósofos alemãos do século XX, nomeadamente Nietzsche, e muitos outros, no nosso «mundo líquido-moderno», numa sociedade capitalista, egotista e individualista. Começando de rompante com a pergunta «O que há de errado com a felicidade?», de modo a desconcertar o leitor, este pode ainda sentir-se perdido ao longo da obra, dividida em três capítulos, com introdução e posfácio, enquanto Zygmunt Bauman disserta entre o consumismo e a publicidade, os dilemas do homem moderno em como gastar o dinheiro, quais os bens necessários à felicidade, a normalidade e a anormalidade, a aleatoriedade da Natureza (como se verificou na catástrofe do Grande Terramoto de 1755), a ordem construída pelos humanos com recurso à ciência e à tecnologia (e que descambou na catástrofe da Grande Guerra e da Segunda Guerra Mundial), os reality show e a sua regra de exclusão semanal como uma lei que faz parte da natureza das coisas, uma juventude apostada em ser catapultada para a fama por algum golpe do destino, a existência de um destino, a profusão de blogues da rede global (em 2006 eram 50 milhões) onde há quem descreve ao pormenor o seu pequeno-almoço diariamente e incorre em actos confessionais despudorados, o livre-arbítrio, a «destruição criativa» que importámos da arte e praticamos diariamente, a construção de uma identidade que raie a Perfeição Absoluta, a pertença a comunidades exclusivas, o discurso de Sarkozy que incita o povo francês a trabalhar mais e ganhar mais, o reconhecimento social vs. fracasso e humilhação, as utopias e as distopias (do agora novamente tão falado 1984 a A possibilidade de uma ilha de Michel Houellebecq), a bulimia e a anorexia de que sofremos entre os produtos com que somos bombardeados e as dietas que se impõem como revolucionárias apenas para na semana seguinte surgir outra nova e melhorada, e das pessoas que arriscaram a sua vida para ajudar as vítimas do nazismo não porque esperavam uma recompensa mas porque não conseguiriam viver com a sua consciência. No fim, entre a lógica organizacional das novas empresas e o compromisso em que assenta o casamento, tudo se entrelaça para justificar o que o autor nos diz desde o princípio deste tratado sobre a busca da felicidade, ao mesmo tempo que nos alerta para os perigos com que somos bombardeados numa sociedade de excesso de informação e sem filtros: «Praticar a arte da vida, fazer da sua existência uma “obra de arte”, significa, no nosso mundo líquido-moderno, viver num estado de transformação permanente, autorredefinir-se perpetuamente» (p. 102). Ver artigo
Este mês de Junho pode ser assinalado por dois grandes romances. O regresso de Arundhati Roy com O Ministério da Felicidade Suprema, vinte anos depois de O Deus das pequenas coisas (obra por que me encantei logo quando saiu tinha eu uns 18 anos, nomeadamente pela forma como brincava com a linguagem enquanto me enfeitiçava numa travessia por um dos países que mais me fascina até hoje e ainda não pude conhecer). E também a tão aguardada tradução de Swing Time, a última obra de Zadie Smith, autora de Dentes Brancos (para quando uma reedição?) e Uma questão de beleza. Deixo para já apenas a sensação de me estar a perder numa míriade de histórias dentro de histórias, em rocambolescas espirais tergiversais à história de Anjum, um homem-mulher que para dormir estende um tapete persa entre duas campas do cemitério. Ver artigo
Documentar
Svetlana Alexievich nasceu em 1948 na Ucrânia, e cresceu em Minsk, capital da Bielorrúsia, onde vive actualmente. Jornalista e escritora, autora de vinte guiões de documentários e cinco livros, tem várias obras adaptadas ao cinema e ao teatro. Foi distinguida com mais de uma dezena de prémios internacionais, do Médicis Essai 2013 ao Books Critics Circle Award 2006, e consagrada com o Prémio Nobel de Literatura em 2015, pela qualidade da sua «obra polifónica» como «um memorial ao sofrimento e à coragem na nossa época». Das cinco obras em prosa, quatro foram publicadas pela Elsinore, sendo as mais recentes, publicadas este ano, Rapazes de Zinco e As Últimas Testemunhas.
Rapazes de Zinco é, à semelhança das outras obras da autora, um livro de não-ficção, onde se entretecem as vozes de centenas de entrevistados numa polifonia que a autora registou e que tenta reunir em coro como testemunho da verdade da guerra soviética no Afeganistão. Estes rapazes são os quinze mil mortos devolvido em caixas de zinco às mães, mesmo quando dentro dos caixões apenas seguia um uniforme de gala e a terra alheia onde combateram «para que o peso seja adequado» (p. 45), e cerca de quatrocentos e cinquenta mil feridos e doentes que combateram o Afeganistão no exército soviético entre 1979 e 1989, isto é, uma geração que viveu numa década de guerra. Ver artigo
A desconstrução do silêncio Ver artigo
Gabo, um dos autores favoritos de muitos leitores, tem agora mais uma obra publicada pela Dom Quixote, originalmente lançada em fascículos na mesma altura e à semelhança de Relato de um Náufrago. O autor então um jovem jornalista viaja por vários países da Europa de Leste, passando por cidades como Berlim, Praga, Varsóvia, Moscovo, Kiev ou Budapeste, e apesar de esta viagem ocorrer durante os anos 50 é um relato inestimável de como mesmo depois da queda da Cortina de Ferro estes países e povos continuam a viver num ambiente triste e fechado, de grande repressão, onde os convidados estrangeiros são raros e se vêem a ser permanentemente acompanhados por intérpretes que não dominam outra língua que não a sua e que, no fundo, têm apenas a função de vigiar e acompanhar. É curioso como o autor não deixa ainda assim de reconhecer a cordialidade e a generosidade das pessoas que vivem sob a sombra do regime soviético, e vai estabelecendo apesar das devidas diferenças comparações pontuais com a vida na América Latina: «A ordem pública na Alemanha Oriental parece-se muito com a da Colômbia dos tempos da perseguição política.» (p. 44).
Fica um testemunho pertinente da passagem deste autor colombiano pelos países socialistas, com laivos do seu humor, ironia e perspicácia. Só tenho pena de não ter podido ler as impressões que o autor aqui nos deixa na altura em que vivi em Varsóvia, cidade completamente arrasada durante a guerra e reconstruída a partir de fotografias (leia-se História natural da destruição, W. G. Sebald), e do seu povo: «É difícil saber o que os polacos querem. São complicados, difíceis de lidar, de uma suscetibilidade quase feminina e com tendência para o intelectualismo» (p. 96). Ver artigo
«Augusto Cury, com mais de 30 milhões de livros vendidos em todo o mundo, marca presença na Feira do Livro de Lisboa hoje, dia 4 de junho, às 15:30. Esta será a estreia no maior evento cultural do país deste reconhecido psiquiatra, psicoterapeuta e cientista, na qual os seus leitores o poderão conhecer na sessão de autógrafos, que decorrerá no primeiro domingo da Feira.
O seu mais recente livro chegou às livrarias portuguesas em abril (publicado pela Pergaminho). O Homem Mais Inteligente da História, uma obra de ficção, conta a jornada épica de Marco Polo, um cientista ateu, que é desafiado a estudar a inteligência do homem mais fascinante da história – Jesus – à luz das ciências humanas. Este livro é o resultado de um processo de escrita de 15 anos e de 20 anos de pesquisas e estudos por parte do autor, que quando iniciou este trabalho era ateu.» Ver artigo
Este livro publicado agora pela Porto Editora cuja capa pode apelar aos mais jovens traz temas bem prementes e actuais e transversais a todas as idades. Com distinções como a nomeação para a Carnegie Medal, seleccionado para o National Book Award, nomeado pelo Goodreads Choice Awards categorias de Autor Estreante e Ficção Jovem-Adulto) e premiado em 2016 como Melhor Estreia Jovem-adulto pelo Williams C. Morris Award, O coração de Simon contra o mundo não choca com o coração de ninguém, antes enternece e deleita qualquer leitor.
Foi lido de um fôlego durante uma tarde com algumas ocasionais risadas que não passaram despercebidas às pessoas em redor e a segunda metade do livro é tão enternecedora que deixa um sorriso na cara de qualquer leitor, por isso cuidado pois corre seriamente o risco de parecer inebriado ou apaixonado enquanto o lê. Não pretendo exagerar, e tomando nesta recensão um registo bastante pessoal para variar um pouco e sair de formalismos literários, devo dizer que o livro surpreendeu especialmente por isso, por esse condão mágico de me fazer recuar uns 20 anos e sentir-me a reviver a minha adolescência.
Tem havido grande burburinho em torno da série da Netflix, 13 reasons why, que narra o testemunho deixado por uma jovem de um liceu americano que se suicidou numa série de cassettes àqueles que terão contribuído para o seu sofrimento. Simon é um jovem do 11.º ano, tem quase 17 anos e vive algures na Georgia, numa cidade que não é inteiramente progressista mas que já revela outra abertura. E por um pequeno lapso, que é deixar a sua conta secreta de email aberta num computador da escola, Simon vê-se a ser chantageado por um colega até que, ironicamente por ser vítima do ciúme desse mesmo colega que está apaixonado por uma das melhores amigas de Simon, este acaba por revelar a toda a escola numa espécie de mural público da vergonha. O romance narra assim de forma actual uma história de descoberta da homossexualidade que é também a descoberta de um outro não muito diferente de nós e do amor numa tenra idade que deveria ser inocente e livre, alternando entre o registo na primeira pessoa do que se vai sucedendo na escola e em casa na vida de Simon e os emails trocados entre Simon e Blue, um amigo virtual que é alguém do seu ano de escola mas que evita deixar pistas quanto à sua verdadeira identidade. É nesta tensão, enquanto vítima de bullying, que Simon se vê denunciado e obrigado a revelar aos pais, amigos e colegas a sua homossexualidade.
Como escreve Nuno Pinto, Presidente da Direcção da ILGA Portugal, a história de Simon é a de muitos de nós: «a descoberta da homofobia, do preconceito, do insulto, do isolamento e da invisibilidade», mas O coração de Simon contra o mundo é também um livro que mostra que já estamos noutros tempos e que a homossexualidade já não significa a vergonha de outros tempos. Sem querer desvelar muito da narrativa, mas para mostrar como este livro escrito por uma psicóloga clínica (a mãe de Simon também é psicóloga) que acompanhou dezenas de jovens, inclusive em questões de género, pode ser útil e pertinente para tantos jovens, pais e professpres, deixo-vos com as palavras do próprio Simon quando ele se vê obrigado a “sair do armário” (e não nos esqueçamos que a própria adolescência era também ela conhecida como a idade do armário): «Tipo, acho que era disto que eu esperava. A minha mãe a perguntar-me o que estou a sentir, o meu pai a transformar tudo numa piada, a Alice a tornar tudo político e a Nora a ficar de boca fechada.» (p. 136).
Depois de rebentar a bomba já não há propriamente expulsões de casa ou pais a perguntarem-se “Oh Meu Deus onde é que eu errei?» mas Simon ainda assim se verá obrigado a enfrentar a humilhação de alguns colegas. Todavia, Simon mantém um humor delicioso (note-se que o título original do livro é Simon vs the Homo Sapiens agenda) enquanto narra o seu périplo e num registo cuidado e por vezes claramente cuidado mas sem cair na pieguice dá-nos conta do que significa ser homossexual nos tempos que correm e assumir o risco de se apaixonar por alguém que nem se conhece pessoalmente: «O que sinto por ele é como o batimento do coração: suave e persistente, subjacente a tudo.» (p. 207).
Este tipo de relação virtual, sabemos, acontece muito hoje, tal como noutras gerações relações e casamentos se construíam quase completamente através de correspondência. É ainda particularmente curioso como na escrita da obra a autora opta em relação a duas personagens por nunca dizer expressamente a sua cor de pele. Só mais tarde é que o leitor acaba por perceber em certo contexto de conversas, o que demonstra um cuidado em abolir qualquer ideia de identidade como etiqueta genérica. Pode haver platonismos ou pode haver concepções romanceadas de como será o outro, mas ainda há quem se veja obrigado a esconder atrás de identidades falsas, até conseguir encontrar alguém que lhe estenda a mão e o faça perceber que o nosso coração também pode bater com o mundo. Ver artigo
João Paulo Borges Coelho, nascido no Porto em 1955, mas radicado em Moçambique desde a infância. Escritor e historiador, é professor de História Contemporânea de Moçambique e África Austral na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, onde vive. Tem dedicado o seu estudo sobretudo à investigação das guerras colonial e civil em Moçambique, bem como à política da memória e às questões de segurança regional na região da África Austral.
Normalmente quando se fala em literatura moçambicana ressalta o nome de Mia Couto mas existem outros grandes autores menos conhecidos entre nós, como Ungulani Ba Ka Khosa (já aqui apresentado a propósito de Choriro, publicado pela Sextante) ou o autor que hoje vos trazemos. João Paulo Borges Coelho tem aliás toda a sua obra publicada pela Caminho e foi o vencedor do Prémio Leya em 2009 com O olho de Hertzog, sendo o único autor já com obra publicada a ter ganho o prémio (os restantes vencedores têm sido autores inéditos e estreantes). Já em 2004 o autor foi vencedor do Prémio José Craveirinha da Literatura, a maior distinção literária em Moçambique. Este autor pode não ser muito popular entre nós mas merece muito ser lido com atenção e tem tratado na sua obra literária diversas épocas históricas do país.
Esta obra, cujo tema principal está desde logo designado no título, e subtitulada de «Uma novela rural», apontando para o género a que pertence, sendo a novela algo entre a brevidade do conto e a complexidade do romance, assente em princípios de economia narrativa. A concisão define de facto esta obra, cuja escrita é constituída por frases muito curtas, com capítulos muito breves (no total de 144 capítulos), o que gera uma velocidade rápida de leitura. À medida que nos aproximamos do final a prosa ganha o ímpeto da força da correnteza da água aqui protagonizada, transfigurada em parágrafos que se estendem por páginas e capítulos que ganham mais terreno, como forma de dar conta do fantástico crescendo e desse enigmático final. Essa concisão própria de uma novela parece contudo posta em causa se atentarmos no considerável número de personagens. Os nomes das personagens são simbólicos, e alusivos a elementos naturais (Praado, Laago, Heera), como quem lembra que todos nós apesar de estarmos cada vez mais mergulhados em tecnologia não deixamos de fazer parte da natureza, tal como a água de que precisamos para viver e que faz parte do corpo humano. Além disso, são sempre grafados com dupla vogal, como que a ecoar na narrativa a pronúncia das vogais mais abertas (próprias de um Português mais cantado).
A alternar com a intriga principal pontuam os diálogos de Laama e Ryo que «passam metade do tempo a sondar as entranhas da natureza, a outra metade a discutir a interpretação dos resultados» (p. 17). Estes dois anciãos discutem «hoje, a água. Ou melhor, a falta dela, que aquilo que outrora era um pesado e líquido cordão não passa hoje de um tortuoso arabesco (…). No fundo, repetem sempre a mesma discussão» (p. 17), discussão essa muitas vezes feita da réplica de frases que se afiguram provérbios, sendo Ryo o mais «moderno» e «volúvel» e Laama o mais «consistente na obsessão de desnudar os fumos primordiais» (p. 17), enquanto procuram sondar a natureza e ler os seus desígnios, recorrendo mesmo a certas práticas ancestrais – presumirá o leitor – capazes de trazer a água de regresso, como quando caminham ao luar com uma concha de água. Contudo, como a própria narrativa declara, por muito que a ciência (e incluímos nós a religião) se procure instituir como «esforçada leitura paralela, as coisas seguem o seu curso cego imunes às interpelações. A natureza é um misterioso veículo em movimento deixando sacerdotes e cientistas em terra, ocupados ainda assim na tentativa de determinar o rumo da viagem!» (p. 17).
Este é portanto um romance de carência que narra a história de uma comunidade rural que atravessa um período de seca pois o rio há muito secou. As personagens que por aqui se movem estão todas elas ligadas à água, seja o pastor que precisa de campos férteis para apascentar o seu gado, seja a lavadeira que lava a roupa no rio, ou ainda os técnicos e investigadores que estudam a água ou, melhor dizendo, a falta desta. Mas esta novela rural está eivada de modernidade. Note-se a profusão de onomatopeias que dão conta dos sons e ruídos próprios de um mundo urbano que começa a transbordar para esta localidade rural, como os camiões («Vrrrrrr! Vrrrrrr!») ou os sons dos telemóveis de Ervio e Maara («Críí! Críí!»), enamorados que se contactam quase exclusivamente por esta via – como se por pertencerem a mundos diferentes vissem também o contacto entre si limitado a este meio de comunicação. Os “celulares” são aliás uma presença cada vez mais forte na sociedade moçambicana, à semelhaça do resto do mundo, pois toda a gente, por muito apartada que viva do centro urbano, possui o seu. Contudo existe a particularidade de, tal como acontece muitas vezes nos telefonemas trocados entre o casal amoroso cheios de interferências, os telemóveis serem mais um motivo de desentendimento do que de comunicação eficaz entre Ervio e Maara. Configurado principalmente na relação amorosa entre Ervio e Maara, há todo um jogo de contrários a começar pelo título da obra pois, conforme se referiu, rapidamente percebemos que Água não é algo que existe e daí dar título à obra mas sim algo que é preciso redescobrir ou reaver. A questão do colonialismo também se encontra presente neste jogo de opostos, como se pode ler quando se refere a loja do português que apesar de fechada continua a ser um marco. Por outro lado, retrata-se a presença de apoios externos em Moçambique, bem como no continente africano em geral, mediante a figura do engenheiro alemão Waasser (e adivinhe-se o que significa Wasser em alemão? Pois é: Água!).
Não deixa de haver uma reflexão em torno destas contradições moçambicanas, ao mesmo tempo que se parece denunciar também como certos apoios externos parecem completamente despropositados ou, por outro lado, infrutíferos mesmo, como é a intenção de se construir uma ponte sobre um rio seco. Mesmo o diálogo entre Laama e Ryo é aliás a representação de uma discussão assente em pontos de vista distintos apesar de serem ambos membros de uma certa antiguidade na comunidade.
É interessante atentar como o narrador se assume sempre como um nós, uma voz colectiva, pertencente a essa comunidade rural, ou assumindo-se como a própria comunidade. Este aspecto é algo que também se pode encontrar em Ungulani Ba Ka Khosa e atesta de um cuidado da literatura pós-independência em encontrar a sua voz e escrever de forma interventiva como uma consciência social ou política, pois afinal esta obra que oscila entre a seca e a cheia é também um retrato da realidade moçambicana em diferentes zonas do país, como aconteceu no rio Limpopo com as cheias de 2000, em que as pessoas subiram aos telhados das casas, mas também mais recentemente, em 2014 ou em 2015. O autor declarou, em entrevistas, tentar dar conta de como Moçambique é um país feito de desequilíbrios, como acontece justamente com a água, acontecendo por vezes haver zonas ameaçadas pelas secas enquanto que outras são simultaneamente afectadas pelas cheias. O autor debruça-se ainda, como se pode perceber no emblemático e alegórico final, sobre a questão do mundo rural como um espaço que parece condenado a desaparecer em África, cada vez mais circunscrito a terrenos que se reclamam, por vezes, para reservas naturais. Assiste ainda à narrativa um certo sentido de ironia e de humor, como por exemplo quando o engenheiro alemão Waasser reflecte como «o mundo será perfeito quando os caminhos dos rios forem todos rectos como as fronteiras de África. Não há perfídia nem ironia nesta sua aspiração, apenas racionalidade. As coisas perfeitas são as que seguem a direito evitando desnecessários gastos de energia.» (p. 49). Ainda em relação ao final, não deixa de ser sintomática a intrusão de uma certa magia, como que um resquício do realismo mágico característico de uma certa literatura pós-colonial, nomeadamente nas borboletas, símbolo caro justamente ao realismo mágico (relembre-se Cem Anos de Solidão) e na personagem cujo ventre seco de repente parece transmutar-se em nascente. Ver artigo
Factotum é a mais recente obra Charles Bukowski publicada pela Alfaguara em Março, que já traduziu e publicou outras sete das dezenas de obras do autor. Este é o seu segundo romance, publicado originalmente em 1975. Charles Bukowski nasceu na Alemanha em 1920 mas cresceu e viveu em Los Angeles durante cinco décadas, tendo publicado o seu primeiro conto em 1944 e começado a escrever poesia uma década depois. O livro, considerado como um dos seus melhores, é descrito, na contracapa, como uma «espécie de retrato do artista enquanto jovem» sendo Henry (Harry) Chinaski um alter ego de Bukowski. À semelhança de outras obras, Factotum foi adaptado ao cinema em 2005, com um resultado feliz, por Bent Hamer, com Matt Dillon, Lili Taylor e Marisa Tomei nos principais papéis.
Seguimos o percurso de Henry Chinaski durante o período da Segunda Guerra Mundial mediante o seu relato na primeira pessoa: «Cheguei a Nova Orleães debaixo de chuva às 5 da manhã» (p. 9). E à medida que o narrador vai desfiando o seu périplo pelos Estados Unidos da América vamos sabendo mais sobre esta personagem-narrador, conforme ele se digna, numa narrativa que se sucede sempre de forma linear, a ir dando pistas do que constituiu o seu percurso. Perceberemos, por exemplo, que tem tendências suicídas (o que aliás está presente no seu comportamento autodestrutivo ao longo do livro): «Fui bebendo devagar e pus-me a pensar outra vez em arranjar uma pistola e despachar o assunto: sem os pensamentos e sem a conversa.» (p. 13). Quando o pai o vai buscar numa certa noite à prisão, tendo de pagar a fiança, também se pode ler, quando este acusa o filho de não ter querido servir o seu país, que o psiquiatra declarou que ele não estaria apto. Depressão? Não se sabe ao certo mas é bem possível pois como se refere páginas depois: «A noite ia no início e eu estava a ter um dos meus acessos de depressão.» (p. 46).
Henry Chinaski procura a solidão como um casulo protector: «Eu era um tipo que se dava bem com a solidão; sem ela, era apenas mais um homem sem comida ou sem água. Enfraquecia a cada dia passado sem solidão. Não me orgulhava da minha solidão; mas dependia dela.» (p. 35). E inclusivamente bebe como forma de escapar ao outro e ao real: «Sempre que alguém se sentava ao meu lado e se punha a conversar, eu sacava de uma das garrafas e dava um gole valente.» (p. 34). A visão do outro é aliás muitas vezes grotesca: «Olhei novamente para os rostos. Parecia uma visão do inferno em repetição ininterrupta. Cada nova remessa de rostos era mais feia, demente e cruel do que a anterior. Dei um golo de vinho.» (p. 35). Se bem que o narrador também não se retrate de forma muito positiva, mas sem qualquer autodepreciação ou autocomiseração: «Apercebi-me subitamente dos pregos das solas dos meus sapatos ranhosos a cravarem-se-me nas solas dos pés. A minha camisa encardida tinha três botões a menos. O fecho das calças estava encravado a meia haste. A fivela do cinto estava partida.» (p. 84).
Começamos assim a perceber como Henry vagabundeia de trabalho em trabalho, chegando a regressar à casa dos pais apenas para logo constatar que nunca lhes conseguirá pagar a estadia, pois o pai exige-lhe o pagamento do alojamento, da comida e da roupa lavada. Dias depois a sua saída é intempestiva e aparentemente permanente, com agressão física pelo meio. A violência é também uma constante, nas relações familiares, amorosas ou no sexo esporádico que vai tendo com as mulheres que encontra, chegando mesmo a haver um momento em que se descreve toda a cena como sendo ele a vítima. Existem ainda relações que se revelam inclusivamente parasitárias – sendo o termo parasita utilizado aqui de forma intencional – como acontece com Jan, a mulher com quem Henry parece passar mais tempo dentro da sua errância. De Nova Orleães a Los Angeles, passando por Louisiana, Filadélfia ou St. Louis, o nosso protagonista, que nada tem de herói – embora entre nalgumas rixas pois encara a luta física como desporto ou diversão – vai somando os mais diversos empregos, e vai estendendo o seu registo criminal. O próprio Henry vive por vezes como parasita social, consoante se agrava a sua incapacidade em adoptar um papel social adequado e cumpridor. Henry nunca é descrito como inepto pois, pelo contrário, adapta-se com grande facilidade às suas sucessivas ocupações, revelando inteligência, até porque não possui qualquer qualificação para os mesmos. O objectivo dele parece ser somente o de chegar ao fim da semana para ganhar o cheque e comprar bebida, numa época em que devido à Guerra haveria escassez de mão-de-obra. Henry parece assim viver à margem e acima dos comuns trabalhadores. Como diz a sua companheira Jan: «Sabes, quando te conheci, gostei da forma como atravessavas uma sala. Não te limitavas a atravessar uma sala, parecia pelo teu andar que ias atravessar uma parede, como se fosse tudo teu, como se nada interessasse.» (p. 98). Henry estudou jornalismo durante dois anos e possui uma aspiração, se bem que esta se vá perdendo ao longo da narrativa, quando se designa como «um escritor temporariamente falho de inspiração» (p. 49), essencialmente um contista que escreve três a quatro contos por semana que envia por correio para diversas revistas, até que vê finalmente um dos seus contos ser aceite para publicação, com o sugestivo título de «A Minha Alma Ébria de Cerveja é mais Triste do que Todas as Árvores de Natal Mortas do Mundo» (p. 57). Apesar de ser cada vez mais evidente que Henry é um alcoólico inveterado percebemos também, inicialmente talvez com espanto, que ele próprio boicota os postos de trabalho que vai conseguindo e percebe sempre o momento em que se prepara para ser despedido, naturalmente também em prol das suas acções que são muitas vezes vexatórias. No final do livro, composto por 87 capítulos ou trechos, as desventuras do nosso herói sucedem-se a ritmo vertiginoso, correspondendo ao longo de diversos capítulos a narração breve de como ele entra e sai de mais um trabalho a cada trecho. Essa recusa de Henry em encontrar um trabalho certo pode aliás ser percebida como uma recusa geral em viver segundo as prescrições sociais. Note-se como se descreve pejorativamente as massas da sociedade: «O dia chegava ao fim. Havia gente a trepar das estações de metro cá para fora. Semelhantes a insectos, anónimas, desvairadas, as pessoas precipitavam-se na minha direcção (…). Rodopiavam e empurravam-se umas às outras; emitiam sons horríveis.» (p. 34). Henry define-se assim como uma pessoa sem ambição, na medida em que a ambição de muita gente é um triunfo vazio: «Como raio haveria um tipo de gostar de ser acordado às seis e meia da manhã por um despertador, saltar para fora da cama, vestir-se, comer à pressa, (…) escovar os dentes e o cabelo, e penar no trânsito para chegar a um sítio onde, fundamentalmente, vai fazer com que outra pessoa ganhe montes de dinheiro e se exige que se mostre grato pela oportunidade?» (p. 116). É em torno desta crítica a uma sociedade capitalista, ainda mais quando a Segunda Guerra colocou tantos valores em causa, que se concentra a ironia e o humor cáustico do autor: «As notas de embalagem nunca estavam erradas, possivelmente porque o tipo do outro lado estava demasiado assustado com perder o emprego para ser desleixado. Normalmente, vai na sétima de trinta e seis prestações do carro novo, a mulher está a tirar um curso de cerâmica à segunda-feira à noite, os juros da hipoteca estão a sugá-lo até ao tutano e cada um dos seus cinco filhos bebe um litro de leite por dia.» (p. 122).
A linguagem é simples, com frases curtas e incisivas, sem pretensiosismos, o que pode levar a julgar a escrita banal, mas a poesia e o cuidado estético estão sempre lá, mesmo quando o autor recorre a linguagem mais gráfica, conforme às personagens retratadas pertencentes a uma classe social de estrato baixo.
Este livro é uma espécie de descida aos Infernos do mito do escritor como ser marginal e liberto das convenções usuais da sociedade. Se bem que o próprio narrador alerte para a falsidade dessas construções míticas, pois o que parece prevalecer sempre é a lei da selva: «O mito do artista que passa fome era um embuste. Assim que nos apercebemos de que tudo não passava de um embuste, ganhámos juízo e começámos a extorquir e a queimar os nossos iguais.» (p. 56). Ver artigo
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