São sete os títulos da colecção da Bertrand em que diversos autores contemporâneos recriam uma obra de Shakespeare, com vista a celebrar Shakespeare. O quinto título da colecção lançada em cerca de 30 países é Semente de Bruxa, em que Margaret Atwood recria a peça A Tempestade. Esta autora canadiana tem dado muito que falar no último ano, com a adaptação para série televisiva de dois livros seus, História de uma serva e Alias Grace, encontrando-se já em produção mais duas adaptações das suas obras.
Felix é um director artístico no Festival de Teatro de Makeshiweg com produções ousadas que fazem com que o público saia cambaleante e ébrio, com cabeças de Macbeth ensopadas em sangue atiradas ao público, o Rei Lear nu em palco, ou Péricles encenado com naves espaciais.
Felix perdeu a mulher e a filha, aos 3 anos, com meningite. E mergulha por inteiro na encenação de Tempestade, aquela que será a sua melhor produção de sempre. Até ao dia em que é traído e afastado pela pessoa em quem mais confiava. A partir daí, Felix vive em reclusão, alucina com a sua filha Miranda, até que anos depois passa a trabalhar numa prisão como professor de literacia e mobiliza os seus alunos a representar Shakespeare.
Doze anos depois, Felix renasce assim como Próspero e tem a possibilidade de encenar finalmente o seu projecto outrora gorado, o que lhe permite também, dentro da prisão e com a ajuda dos presidiários que são seus alunos de teatro, encenar a sua vingança.
A autora abandona o género fantástico ou distópico que normalmente caracteriza as suas melhores obras, mas mostra versatilidade no tratamento do tema central à peça, ao mesmo tempo que atenta na forma como o próprio teatro precisa de ir sendo recriado para se manter actual e continuar a tocar os corações dos homens de hoje com temas e intrigas que foram criadas há séculos, celebrando-se assim, de forma justa, esse vulto maior do teatro mundial que foi, e permanece a ser, William Shakespeare. Ver artigo
Autora de obras de fantasia e de de ficção científica incontornáveis como o Ciclo Terramar (adaptado inclusive num filme de animação japonesa e também numa mini-série) ou A Mão Esquerda das Trevas, Ursula K. Le Guin faleceu em Janeiro de 2018, aos 88 anos de idade.
Autora de mais de 20 livros, com milhões de exemplares vendidos, traduzida em 40 línguas, Ursula K. Le Guin escreveu ainda ensaios e para cima de uma centena de contos.
Os Despojados, editado pela Saída de Emergência, é um dos seus principais livros, e forma, com A Mão Esquerda das Trevas, parte do Ciclo Hainish.
O livro é, mais do que um romance, uma reflexão sobre os sistemas políticos e sobre a identidade e liberdade individual face a culturas alienígenas, mesmo quando o outro é bastante próximo da espécie humana.
Shevek é um jovem físico brilhante, com uma descoberta que pode revolucionar a forma como se viaja no espaço, pois uma fracção de tempo de uma viagem no espaço continua a ser o equivalente a vários anos de vida que se perdem junto daqueles que se deixam para trás.
Shevek vive em Anarres (por vezes considerado um planeta gémeo, outras vezes um satélite ou Lua do planeta vizinho Urras) é convidado a continuar e a desenvolver o seu trabalho na física em Urras. Urras é um planeta próspero de recursos abundantes, onde vigora justamente um sistema capitalista e mesmo hedonista (note-se que o traje de cerimónia das mulheres é estarem despidas da cintura para cima apenas com algumas jóias incrustadas na pele).
Mas Urras, apesar da sua opulência e do cuidado na estética dos artefactos mais básicos, como o mobiliário, não é um planeta perfeito.
«A conversa prosseguiu. Era difícil para Shevek segui-la, tanto na linguagem como no conteúdo. Estava a ouvir falar de coisas das quais não tinha experiência nenhuma. Nunca vira uma ratazana, nem as casernas do exército, nem um asilo de loucos ou de pobres, nem uma loja de penhores, nem uma execução, nem um ladrão, nem um edifício de apartamentos, nem um cobrador de rendas, nem um homem que quisesse trabalhar e não pudesse arranjar emprego, nem um bebé morto numa vala. (…) Este era Urras (…) o mundo do qual os seus antepassados tinham fugido, preferindo-lhe a fome, o deserto, e o exílio interminável.» (p. 241)
Esta passagem recorda-nos como a ficção científica é sempre, por muito escapista e fantasiosa que se afigure, uma forma de escrever sobre o real ou imaginar mundos possíveis como escape ou alternativa melhor à realidade.
Anarres é um planeta desértico (e a capa da editora é brilhante na forma como retrata de modo simétrico essas duas paisagens em cima e em baixo) para onde alguns habitantes de Anarres partiram em tempos na busca de uma vida mais simples e mais regrada, apesar de terem de enfrentar a fome, o deserto, o exílio. A colónia fundada nesse planeta inóspito foi afinal, saberemos depois, uma experiência de comunismo não autoritário, que sobrevive há 170 anos.
Um dos momentos-chave do livro é o diálogo entre Shevek e uma embaixadora terrana, isto é, da Terra, o que resulta num debate filosófico ou político entre as semelhanças e diferenças entre estes três planetas tão similares.
É também particularmente interessante, e possivelmente está relacionado com o próprio estudo de Shevek na área da física e do tempo, a forma como os capítulos, descobriremos depois, não são sequenciais, apesar de assim parecer. Há uma certa distorção cronológica, em que os capítulos não seguem afinal a devida sequência temporal. Lembra um pouco o filme Arrival na forma como nos apresenta um tempo circular em que o futuro e o passado podem estar contidos no agora.
Em 2014, a autora recebeu a medalha National Book Foundation. Foi também distinguida ao longo da sua carreira de escrita com os Prémios Hugo, Nebula e World Fantasy. Ver artigo
Nunca me deixes, do autor Kazuo Ishiguro, Prémio Nobel de Literatura em 2017, cuja obra está publicada pela Gradiva, é considerado um dos melhores livros do autor mas corre o risco de ser tomado como um livro enganosamente simples.
Apesar de numa página introdutória, o autor situar a acção em «Inglaterra, finais da década de 90», este romance tem sido considerado como uma distopia, próxima da ficção científica.
A história está dividida em três partes: a infância de Kathy, Ruth e Tommy em Hailsham, um colégio interno na província inglesa, isolado do mundo; a adolescência ou início da idade adulta, na Herdade, aquilo que resta de uma quinta falida, com uma casa rural, e em redor palheiros, arrecadações e estábulos; a idade adulta, em que Kathy deixa a Herdade para trabalhar no mundo exterior como cuidadora.
Sem querer desvendar muito da intriga, pois o livro só ganha no mistério que vamos desvendando gradualmente e sempre de forma subtil, Nunca me deixes pode ser lido como uma alegoria sobre a vida e o amor.
Hailsham, como cenário idílico, relembra outros colégios internos sobre os quais lemos noutras obras de autores ingleses, como se toda a primeira parte do livro simbolizasse o decorrer do século XX. Os jovens aprendem como numa escola, lêem e debatem filosofia, mas é a arte e a criatividade que desempenha o principal papel. O único momento em que esta rotina parece ganhar vida é quando se dão as Vendas, em que os jovens reúnem todas as fichas que conseguiram juntar para trocar por objectos que, vistas bem as coisas, são perfeitamente inúteis mas que guardam como relíquias e que parecem dar cor à sua vida. Uma crítica a uma sociedade consumista que se foi impondo no decorrer do século XX? Uma reflexão sobre a importância da arte da beleza, nem que seja nalgum objecto estético que criamos ou adquirimos com desvelo?
Quando chegam à Herdade, Kathy (a narradora do livro, num registo discursivo na primeira pessoa que reforça a nossa afinidade com a personagem) reflecte acerca da tese que deve fazer, uma vez que saiu de Hailsham e está em fase transitória para ingressar no mundo exterior, contudo nunca faz a tese que aliás não é propriamente considerada um imperativo. Ao sair da Herdade, uma vez que o confronto entre Kathy e Ruth é inevitável, dispersam-se definitivamente as amizades criadas desde a infância e Kathy, agora com 30 anos, conhece o mundo do qual viveu protegida (ou melhor dizendo escondida), e enquanto aguarda que se cumpra o único propósito pelo qual nasceu (ou foi criada), como dadora, desempenha exemplarmente as funções de curadora, auxiliando outros dadores. Em suma, conhece uma vida feita de abnegação, trabalho, sofrimento e solidão, quando cresceu sempre rodeada de colegas e professores. Fica, no final, um travo melancólico de um amor, e de uma amizade, que quase se perdia em absoluto por causa do ciúme e da inveja.
O livro foi adaptado ao cinema em 2010 (o filme passou há dias na Fox Life), pelo realizador Mark Romanek, com interpretação de Carey Mulligan, Andrew Garfield e Keira Knightley. Ver artigo
Considerando o tema e a dimensão, ou mesmo o peso, deste livro (publicado pela Temas e Debates), não se mergulha de ânimo leve nestas 823 páginas, em que o autor disserta sobre o nascimento de uma nova mentalidade no século XVII. Mas com leveza e até algum humor, aliados à sua erudição e a uma extensa pesquisa, David Wootton acaba por nos levar numa viagem à invenção da ciência moderna, balizada entre o avistamento de uma nova estrela em 1572 e 1704, quando Isaac Newton publica um estudo em que pretende demonstrar como a luz branca é composta por todas as cores do arco-íris em 1704. Considerando como vivemos num mundo quase novo, apesar de a nossa espécie ter já duzentos mil anos, o autor faz uma complexa análise de como o homem teve de inventar novas palavras à medida que se foi criando novo conhecimento, apesar de muitas vezes grandes sábios e filósofos se recusarem a aceitar aquilo que viam porque, simplesmente, ia contra tudo aquilo que os Antigos defendiam. Pode até defender-se, segundo o autor, que a ciência moderna começou com os Portugueses do século XV, na sua navegação rumo à Ásia, que originou o cunho da palavra «descobrimento», que significou exploração e depois descoberta. Numa sociedade onde se cria que o conhecimento era um conjunto estanque de dados assumidos, sem mais nada a aprender, a descoberta de novos continentes, como a América, revelou que o mundo estava ainda todo por descobrir e o conhecimento era um caminho inteiro à espera de ser percorrido. Conforme o racionalismo ceifa o interesse pelo oculto e as crenças no sobrenatural, a sociedade vai sendo encaminhada para a revolução industrial, depois de passar pela revolução cultural.
Esta portentosa obra procura evidenciar como a revolução científica ocorre entre 1572 e 1704 e como a ciência moderna daí decorrente foi o verdadeiro motor de desenvolvimento da revolução intelectual e cultural, conduzindo-nos à atualidade de um mundo inteiramente assente na ciência. Para Wootton, a modernidade começa portanto com a revolução científica, na Europa, e foi a mais importante transformação na história humana, desde a época do Neolítico. Ver artigo
Ungulani Ba Ka Khosa é dos escritores moçambicanos mais reconhecidos da sua geração. Francisco Esaú Cossa nasceu a 1 de Agosto de 1957 em Inhaminga, na província de Sofala, membro da tribo étnica Tsonga e falante da língua Tsonga, e adoptou como “pseudónimo” o seu nome Tsonga. Formado em Direito e em Ensino de História e Geografia, exerce actualmente as funções de director do Instituto Nacional do Livro e do Disco. É membro e secretário-geral da Associação dos Escritores Moçambicanos.
Gungunhana é um livro que reúne Ualalapi, o romance de estreia de Ungulani Ba Ka Khosa, publicado em 1987 e eleito como um dos cem melhores romances africanos do século XX, e As Mulheres do Imperador, uma nova novela deste autor moçambicano que constitui um regresso a este universo romanesco. Este livro assinala assim trinta anos de escrita ao mesmo tempo que o autor parece fechar um ciclo. Ualalapi narra o fim do império de Ngungunhane, último imperador de Gaza que resistiu ferozmente aos portugueses, entre 1884 e 1895, até que foi feito prisioneiro por Mouzinho de Albuquerque, levado para Lisboa e depois exilado para os Açores.
Ungulani Ba Ka Khosa explora nesta obra, na linha dos sul-americanos, o imaginário mítico do seu país. A obra situa-se entre o conto e o romance, constituída por seis partes, mas sem ser uma narrativa fragmentária. As seis narrativas entretecem-se como unidades in(ter)dependentes, cada uma antecedida por um pequeno texto, intitulado «Fragmentos do fim», textos esses que se encontram numerados de um a seis, numeração essa que parece marcar também a própria evolução histórica que se sente até chegar à queda do império. Esses pequenos fragmentos constituem um levantamento feito a partir de fontes históricas, escritas na óptica do colonizador. Contribuem para esta paródia intertextual o acrescento de citações bíblicas (Job 2, Apocalipse 3, Mateus 6), na precedência de quatro dos contos, frases aforísticas referentes a Ngungunhane, citações de fontes fictícias da autoria do próprio autor e um dos textos trata-se de um fragmento mínimo do discurso de Ngungunhane, antes de embarcar para o exílio. Através da intertextualidade entramos assim no domínio da metaficção historiográfica, como modo de questionar o passado e o presente. Há ainda uma valorização da oralidade, patente no próprio facto de o narrador ser um jovem que mexe em papéis e ouve um velho, junto a uma fogueira, a transmitir uma estória que, por sua vez, lhe foi contada pelo avô.
As Mulheres do Imperador, uma novela com pouco menos de cem páginas, é – conforme anunciado na contracapa – um tributo ao papel das mulheres na História, neste caso as favoritas da corte do imperador, «sempre secundarizadas pela História». Mas, na verdade, as mulheres já estavam bem presentes em Ualalapi, até porque é quase sempre a partir da perspectiva do outro que o autor constrói aos nossos olhos a figura do mítico imperador. O que se configura nesta nova novela é o fim definitivo do império, quinze anos depois, quando as mulheres do imperador regressam do seu exílio em S. Tomé a Lourenço Marques, para testemunhar o início de uma nova época, quando os nativos vivem completamente subjugados e dominados pelo colono, e novos bairros começam a surgir em torno da cidade, conforme os pretos vão sendo empurrados para bairros fora da cidade, como o da Mafalala, ao mesmo tempo que assimilam uma nova cultura. O narrador esquece muitas vezes essas mulheres que toma como personagens centrais, para nos dar, uma vez mais, uma perspectiva dispersa e fragmentada ou complementada por diversos olhares. As características que tornam a escrita de Ungulani Ba Ka Khosa tão peculiar e interessante estão também bem presentes nesta obra, como, por exemplo, a forma como muitas vezes recorre a termos das línguas locais para designar algo, explicando depois ao leitor o equivalente semântico da palavra ou qual o significado e/ou origem da palavra, ou ainda os diálogos entre as personagens, que muitas vezes consistem numa réplica sucessiva de provérbios, geralmente alusivos aos animais e à natureza. A linguagem de Khosa é imaginativa, visual, densa, violenta, o que por vezes se revela de forma chocante, de forma a transluzir uma forte carga simbólica e mito-poética, conforme à tecitura poética do maravilhoso e do realismo mágico. Ver artigo
O autor, nascido em Londres em 1967, arquitecto e professor de Artes Visuais, foi finalista do Prémio Leya em 2014 com Perguntem a Sarah Gross, livro que foi depois publicado pela Leya (como tem acontecido com as obras finalistas) e escolhido como Melhor Livro de Ficção Narrativa de 2015 pela Sociedade Portuguesa de Autores. Neste segundo romance, vencedor do Prémio Leya de 2017, João Pinto Coelho regressa à Polónia, país onde integrou já duas acções do Conselho da Europa em Auschwitz, trabalhou proximamente com vários investigadores do Holocausto e realizou intervenções públicas sobre essa matéria.
No Nordeste da Polónia, «numa certa cidade em forma de medalha perdida na floresta» (p. 303), igualmente descrita por vezes como «círculo perfeito» (p. 287) existe um shtetl, termo iídiche para uma pequena cidade do Leste da Europa cuja população é constituída maioritariamente por judeus (p. 29). Este espaço circular, nunca nomeado, surge como alegoria de um lugar que por mais fechado e por muito apartado da civilização sempre resulta como cenário à revelação, esperemos nós, não da verdadeira natureza do homem mas do seu lado mais obscuro e selvagem, num acto fugidio de loucura (para a qual aponta o título) que o tempo não apaga. À luz do que se tem lido ultimamente, e que o autor refere na «Nota do autor», a Polónia parece querer reescrever a sua história de modo a não dar conta da participação polaca nos crimes perpetrados contra concidadãos judeus durante o período da ocupação pela Alemanha nazi. Esta localidade em forma de disco pode representar assim Jedwabne, pequena cidade do nordeste da Polónia, ou, mais livremente, a circularidade da História e de como tantas vezes se cometem os mesmos erros.
A acção tem início em Paris em 2001, quando dois velhos amigos, apesar de os separar agora as largas décadas em que ficaram sem se ver, se reencontram. Yankel é um livreiro cego, que foi belo como um deus, continua bonito, e parece imortal como o tempo, vivendo aliás rodeado de relógios, cuja maior companhia são os romances, e ocasionalmente alguns contos, lidos em voz alta por mulheres que vão ficando «entre as páginas e os lençóis» (p. 10) – a literatura de alcova ganha aqui outro sentido. O melhor da narrativa é a forma como o romance parece escrever-se dentro do próprio romance, e os diálogos entre os dois velhos amigos, quando em 2001 Eryk tenta convencer Yankel a ser o seu “co-autor”, até porque as memórias que pretende deixar escritas não se fizeram sozinhas. Eryk, agora conhecido como Paul Lestrange, tornou-se um escritor famoso e, doente, decide regressar às suas memórias para escrever definitivamente a sua última obra, que o tem acompanhado desde há muito. Vivienne é a editora de Eryk há mais de quarenta anos e a sua mulher, a rasurar a história e a sugerir caminhos. Estabelece-se assim um triângulo amoroso, que alterna com o de há cerca de 70 anos, quando Shionka, a filha da bruxa, toma de assalto a amizade de Eryk, cristão, e Yankel, judeu.
É irónico que Paul Lestrange seja o pseudónimo tomado por Eryk quando começa a escrever, pois é ele quem vê de fora a relação de amizade que resulta em sexo e eventualmente amor de Yankel, cego, e de Shionka, a rapariga muda e quase primitiva. É ainda irónico que Eryk seja assumido como o escritor que decide revisitar a sua infância e reescrever a sua história, quando é Yankel, o cego, que lhe ilumina os recessos da memória, que pode ou não corroborar a sua versão dos factos – sendo que Yankel claramente não viu tudo o que então se passou e não sabe o que Eryk sentiu ou fez – e é ainda a voz de Yankel que podemos ouvir/ler em diversos momentos da narrativa, na primeira pessoa, e surgindo grafada no texto em itálico, numa clara distinção face à tessitura narrativa na terceira pessoa. É essa voz narrativa omnisciente que pretende dar conta de um vasto número de personagens, o que a certa altura pode ser desafiante para o leitor. A complexidade narrativa, repartida por uma pluralidade de vozes e de pontos de vista, chega mesmo, a certa altura, a oferecer-nos a perspectiva de um cão. O que aliás pode fazer todo o sentido, pois nesta narrativa o autor tem a coragem de revelar como a condição humana pode descer ao mais abjecto, quer pelos actos cometidos, quer pela forma como é maltratado e humilhado pelo seu congénere. Os judeus são em diversos momentos, ainda antes do final, encarados e tratados como animais, sendo que um cão pode obter mais simpatia por parte de um cristão do que um judeu. Ver artigo
John Fante não alcançou reconhecimento em vida, mas é hoje considerado um dos grandes autores da sua geração, notabilizado por Charles Bukowski o ter considerado como seu mentor.
É um pequeno livro, com cerca de 100 páginas, cujo discurso entre o lírico e o prosaico fazem desta obra uma pérola literária. Não falta uma boa dose de ironia e de humor, face às situações mais caricatas vivenciadas e provocadas pelo jovem herói. Com 17 anos, a um ano de terminar o liceu, Dominic Molise está desejoso de sair de casa e perseguir os seus sonhos de fama e riqueza como jogador de basebol. Ver artigo
Um livro em formato de bolso, numa belíssima edição de capa dura da Quetzal, fácil de transportar e manusear, como um refúgio a que podemos sempre recorrer durante uma viagem em transportes ou numa pausa no trabalho.
Erling Kagge é um editor norueguês, explorador, montanhista, advogado, coleccionador de arte e pai de três filhas adolescentes. Foi o primeiro ser humano a chegar ao Pólo Norte, Sul e ao pico do Evereste. É ainda autor de livros sobre exploração, sobre filosofia e sobre coleccionismo de arte.
Num livro onde não faltam referências e fontes, partindo de pensadores como Séneca ou Kierkegaard, bem como fotos (ainda que a preto e branco), feito de pensamentos aparentemente soltos, entre o diário e a reflexão, o autor faz uma análise da sociedade moderna, em que o silêncio se tornou um bem precioso. Não somente o silêncio como anulação de ruído, como o do trânsito de quem vive numa grande cidade, mas também o silêncio como espaço interior e mental de tranquilidade.
Convidado a proferir uma palestra numa universidade na Escócia sobre um tema à sua escolha, o autor inspira-se num tema diferente. Tendo caminhado durante cinquenta dias na Antártida com um rádio avariado por companhia, habituado a falar de «viagens em situações extremas até aos confins do mundo», Erling Kagge recorre antes a um assunto que tentou lançar durante um jantar em família, acontecimento cada vez mais raro mesmo a um domingo, com as filhas de 13, 16 e 19 anos, sobre a natureza do silêncio e os segredos que nele residem. Em troca dessa palestra, o autor obtém três perguntas que o perseguirão a partir de então: «O que é o silêncio? Onde é que se encontra? Por que razão é agora mais importante do que era dantes?» (p. 13)
Em Silêncio na Era do Ruído, o autor tenta dar resposta em 33 capítulos, ou «tentativas de resposta», de como é cada vez mais difícil não sermos interrompidos pelo ruído exterior, assim como pelo constante zumbir dos telefones e computadores, que nos puxam para alguma tarefa inadiável, ou, por vezes, num mero reflexo claramente indicador de que é cada vez mais complicado para o ser humano estar quieto e em silêncio, nem que seja uns minutos por dia, pois impera uma noção mais ou menos inconsciente de que temos de estar constantemente ocupados e a fazer algo ou a preencher o vazio da nossa existência… com ruído. Ver artigo
Adoecer (Relógio d’Água, 2010) tem sido extremamente bem recebido e comentado, além de premiado. Esta obra pode ser classificada como uma biografia romanceada, pois a autora parte de uma figura histórica da segunda metade do século XIX inglês. Elizabeth Siddal (Lizzie), uma mulher também ela portadora da marca da diferença, pelo seu ar exangue e pela sua cabeleira ruiva, vive de forma marginalizada, em parte pela sua doença, em parte por ter uma relação que quebrava as convenções da época com Dante Gabriel Rossetti, poeta e pintor excessivo e inconformista. Além disso, Lizzie provinha de origens humildes mas ainda conseguiu frequentar a Escola de Artes de Sheffield, sendo que era quase impossível na altura o acesso das mulheres ao ensino das artes. Foi pintora e poeta, e tornou-se a modelo mais famosa da época e musa inspiradora dos pré-rafaelitas, tendo posado para o quadro Ofélia de John Millais, que a imortalizou. Lizzie foi também poeta. Desta obra pode-se destacar como a autora opta por mais uma vez se focar na figura do artista e do poeta, como alguém à margem da sociedade, e subverte ainda, especialmente no início, as convenções cronológicas do romance, iniciando a narrativa pelo ano de 2005, relatando como visitou o cemitério de Highgate, a fim de visitar a campa de Lizzie, a protagonista do romance que terá iniciado nessa mesma data (o que lembra o início de Lillias Fraser). Hélia Correia não se coíbe de adoptar um tom confessional e confrontar directamente o leitor, além de recorrer a diversos registos, inclusive o diarístico, e constrói um romance que resulta de uma confluência de fontes diversas, como cartas, diários, artigos de jornal, memórias, poemas. São igualmente referidas e aproveitadas como personagens diversas figuras da época vitoriana, como Charles Darwin, Charles Dickens, Byron, a Rainha Vitória, Mary Shelley ou Emily Brontë. Este é o romance mais extenso de Hélia Correia, o mais complexo e ambicioso, numa narrativa extremamente documentada e que requer leitura atenta, até pela prosódia lírica própria da escrita da autora. Ver artigo
O Número dos Vivos (1982), considerado o primeiro romance da autora, sendo as restantes obras usualmente consideradas novelas, situa-se mais uma vez num contexto de província, sendo as personagens principais mulheres, das quais se destacam Romana e Maria Emília, que parecem formar um binómio. Maria Emília recebe de presente da madrinha um espelho aos dezasseis anos, objecto simbólico – «foi aquele pequeno espelho que lhe abriu o destino» (p. 23) – que parece, primeiro, conferir uma nova identidade à jovem, que abandona a vida pobre no campo para passar a viver com uma família em Sangréus, como acompanhante de Romana, a única filha do casal. Maria Emília vai ganhando posição dentro da casa, enquanto que Romana acaba por desaparecer com um grupo de ciganos. Mais tarde, casa-se com Henrique e aos elementos neo-fantásticos do romance alia-se o que pode ser uma reescrita paródica de Madame Bovary. Maria Emília parece condensar em si certos traços de vampira, o que pode ser uma forma de evidenciar a vampirização social que realiza, ao ascender de posição. Entretanto numa atitude de revolta para com aquele mundo de pequena burguesia em que se vê encurralada, entre a sogra e o marido, envolve-se com o sogro, e é também nessa relação incestuosa que parece recuperar do desprezo a que se sentia votada pelo marido, enquanto que o sogro vai definhando. Maria do Rosário, a filha ilegítima, nasce muda, o que Maria Emília acredita ser punição divina, e acaba por enlouquecer – «riso ácido dos loucos» (p. 177) – enquanto crê ser visitada por Romana em visões e aparições. Romana aparece aliás, por diversas vezes, descrita de forma ambígua, como uma presença fantasmática: «Tinha o rosto marmóreo e os olhos parados, muito claros e lisos, como que desprovidos de toda a consistência.» (p. 71); «Por onde ela passava, os móveis, os objectos, os quadros das paredes resplandeciam num luar de fósforo.» (p. 78). Ver artigo
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