Uma das obras mais controversas de Roth é também a mais recente publicada pela Dom Quixote, que já publicou mais 19 obras, e que, tal como as 11 anteriores, conta com tradução de Francisco Agarez.
Originalmente publicada em 1993, Operação Shylock tem o subtítulo Uma Confissão. Se nalgumas das suas obras emblemáticas é manifesta a presença de elementos autobiográficos, o autor vai mais longe nesta obra irreverente, em que assume a autoficção ao extremo, dando forma física a um segundo Philip Roth, conforme anuncia logo na sua primeira frase: «Soube da existência do outro Philip Roth em janeiro de 1988» (p. 17).
Philip Roth, o autor, descobre que há um impostor a fazer-se passar por ele e que ainda por cima advoga a fantástica e mirabolante teoria do diasporismo: «O diasporismo propõe-se reconstruir tudo, não num Médio Oriente hostil e ameaçador, mas sim naquelas terras onde em tempos tudo floresceu, ao mesmo tempo que procura evitar a catástrofe de um segundo Holocausto causado pelo esgotamento do sionismo como força política e ideológica» (51) Ou seja, cinquenta anos depois, reinstalar judeus na Polónia, na Roménia, na Alemanha, num caminho inverso ao genocídio nazi.
Operação Shylock é assim um arrojado exercício de metaficção, com momentos hilariantes, em que o autor põe a nu os seus próprios mecanismos de escrita e a forma como se desdobra nas suas personagens: «Embora a ideia tivesse provavelmente sido suscitada pelo comentário de Aharon, de que tinha a sensação de estar a ler-me uma história escrita por mim, a verdade é que não passava de mais de uma ridícula tentativa minha de converter numa construção mental daquelas que, por profissão, tão bem conhecia aquilo que mais uma vez se havia revelado em toda a sua realidade objetiva. É Zuckerman, pensei, temperamentalmente, estupidamente, fantasiosamente, é Kepesh, é Tarnopol e Portnoy – são todos eles num só, evadidos dos livros e sarcasticamente reconstituídos como um único fac-símile satírico de mim.» Em suma, se não é alucinação, nem sonho, «então só pode ser literatura» (p. 38).
Nascido em 1933 e falecido em 2018, é dos autores norte-americanos mais destacados, que invariavelmente aborda a temática judaica, de forma bastante controversa, o que lhe valeu o ódio de uma parte da comunidade. Voltarei a Roth, um dos meus autores favoritos, dentro em breve com A Conspiração contra a América, provavelmente a mais premiada das suas obras, cuja adaptação a série televisiva está agora a ser exibida. Ver artigo
Fábrica de mentiras – Viagem ao mundo das fake news, de Paulo Pena, é um livro de leitura urgente, publicado pela Objectiva. Jornalista premiado e investigador do Diário de Notícias, o autor nasceu em Lisboa em 1973, foi editor da revista Visão, e conduziu uma investigação cuidada em que disseca notícias falsas, que são usualmente as mais amplamente difundidas e comentadas nas redes sociais, e denuncia alguns sítios electrónicos que se dedicam à desinformação.
Hoje aquilo que é considerado viral no mundo digital significa que é um êxito, o que não deixa de ser curioso se considerarmos estes tempos estranhos em que é decretada uma pandemia. E o que Paulo Pena faz é justamente demonstrar como as notícias falsas são, também elas, uma epidemia global, capaz de destabilizar sistemas democráticos e alimentar o ódio que engrossa as fileiras da extrema-direita. Essa é aliás uma das prioridades que deveria ser em conta actualmente pelos governos: controlar a desinformação viral, que pode ser fatal, sobre este novo vírus. Até porque fenómenos como o Brexit, a eleição de Trump ou de Bolsonaro são justamente sintomas do efeito da desinformação e das mentiras propagadas como verdades, determinantes para decidir eleições e provocar resultados inimagináveis.
Em Portugal, onde 63% das pessoas afirmam manter-se informadas consultando as notícias disseminadas nas redes sociais, existem mais de 40 sites especialmente destinados a produzir informação falsa, além de também se dedicam a copiar o que outros jornais escrevem. Mas para que as fake news se propaguem e cheguem a um número estimado em 2,5 milhões de utilizadores de redes sociais é preciso que esta informação seja partilhada pelas massas. A publicidade já era a principal fonte de receitas do jornalismo, além do público que paga e subscreve o acesso à informação, mas hoje qualquer anunciante pode recorrer directamente ao Facebook ou à Google para chegar ao público específico que lhe interessa, e por isso, uma mentira eficaz, ou um título inexacto e enganoso numa notícia é o melhor garante para um maior número de clicks que, por conseguinte, se traduzem em mais dinheiro para os autores.
Os nossos dados privados são hoje mercadoria valiosa, uma espécie de novo petróleo. E estão disponíveis online, podendo ser analisados por algoritmos que trabalham num sistema de inteligência artificial que filtram a informação que “sabem” que nos pode interessar, enredando-nos nas malhas desta rede digital: «o negócio somos nós. Ao entregarmos a estas plataformas, gratuitamente, os nossos dados, informação não editada sobre nós e sobre a vida que levamos, permite-lhes oferecer-nos, em troca, os serviços que elas criaram. Pode parecer justo e inconsequente, mas, na verdade, é o equivalente moderno daqueles encontros comerciais entre europeus e nativos americanos no século XVI: um colar de contas de vidro em troca de ouro.» (p. 16) Ver artigo
Se há livro cuja leitura se revelou bastante adequada a estes estranhos tempos que vivemos, não hesito em apontar este livro que é já um clássico. O último livro de Italo Calvino publicado em vida (cuja obra é editada entre nós pela Dom Quixote) parece representar uma indagação filosófica em torno de um sentido para o mundo, para as coisas do mundo, para o sentido de nós próprios no mundo. Com uma estrutura rigorosamente delineada, a narrativa reparte-se em 3 partes, que por sua vez se subdividem em 3 secções ou capítulos, que por conseguinte também se dividem de forma tripartida.
O senhor Palomar é um homem nervoso, tenso e inseguro, ou não vivesse ele num «mundo frenético e congestionado» (p. 15), apesar de tentar manter as suas sensações sob controlo e reduzir ao máximo as suas relações com o mundo exterior. Mas é também no mundo exterior que ele procura um sentido para o mundo – e não é por acaso que tem o nome de um famoso observatório da Califórnia, hoje conhecido como telescópio Hale – a partir da observação dos mais variados elementos: uma onda; a espada de luz solar que cai no mar; um seio feminino (a que ele tenta mostrar indiferença); o eros no choque de carapaças de duas tartarugas; os planetas e estrelas, vistos a olho nu; uma osga ou uma revoada de estorninhos; um prado; banha de ganso; queijos; etc.; etc…
E conforme Palomar procura deter-se apenas na superfície das coisas, observando-as do lado de fora, a sua observação conduz-nos às suas próprias indagações e meditações: «Palomar está distraído, deixou de arrancar as ervas daninhas, já não está a pensar no prado: pensa no universo. Está a tentar aplicar ao universo tudo aquilo que pensou a propósito do prado. O universo como cosmos regular e ordenado ou como proliferação caótica. O universo que talvez seja finito mas que é inumerável, instável nos seus confins, que se abre dentro de si a outros universos. O universo, conjunto de corpos celestes, nebulosas, poeiras, campos de força, interseções de campos, conjunto de conjuntos…» (p. 45)
O senhor Palomar é, muito certamente, o autor Italo Calvino – como se afirma aliás na contracapa do livro –, podendo este livro ser uma espécie de testemunho das suas mais ousadas e prementes inquietações existenciais ou meras reflexões levadas ao sabor do vento. Ver artigo
Gabriel planeia celebrar o octagésimo aniversário da mãe e, para isso, terá de contactar as suas duas irmãs Sonia e Andrea, com o propósito de reunir a família para este evento que deveria ser motivo de celebração e alegria. Depois de tanto tempo, um almoço de aniversário afigura-se a ocasião perfeita para se voltarem a juntar todos. Mas esta não é uma família dessa natureza. Se todas as famílias são felizes à sua maneira, esta sabe foçar particularmente bem na infelicidade e no rancor. Por isso mesmo esta sinopse enganosamente simples não pode dar conta da complexidade e singularidade deste romance.
Luis Landero constrói um poderoso romance polifónico, cuja maioria dos capítulos constitui diálogos, sempre por telefone, em que a conversa telefónica do momento alterna ainda, por vezes de modo sobreposto, com conversas anteriores que estão a ser agora relatadas ou recontadas ao telefone, pois quer Sonia quer Andrea, assim que ficam a par da intenção do irmão, ligam para a cunhada Aurora, a mulher de Gabriel, com quem desabafam as suas mágoas e os seus rancores. E é nesses telefonemas de Sonia, Andrea e, por vezes, até da mãe delas para Aurora, a confidente, sempre atenciosa e atenta, que estas mulheres destilam a peçonha que, décadas depois, continuam a conseguir extrair de velhos episódios familiares, retratados conforme a perspectiva de cada uma: «cada qual com a sua história, horas e horas de histórias intermináveis, quase todas cheias de minúcias mil vezes ouvidas e que elas nunca se cansavam de repetir, com as suas versões contraditórias, onde não havia episódio, por mais pequeno que fosse, que não tivesse variantes, que não rebatessem ou negassem entre elas, que não admitissem os mais prolixos e tortuosos comentários, de modo que Aurora tinha a esgotante impressão de estar imersa num pesadelo de que era impossível despertar.
E assim, ano após ano, todos os dias de todos os meses, a qualquer hora, foi ficando a saber o argumento exato das vidas deles.» (p. 195)
Um só acontecimento origina assim várias versões, relatos antagónicos, sentimentos díspares, conforme é lembrado por cada uma das personagens. A narrativa abre e fecha com Aurora, que pelo seu sorriso bonito e triste, o seu ar terno e melancólico, sempre se revelou uma boa confidente para as histórias dos que com ela convivem. Mas Aurora coloca em risco a sua própria inocência e paz de espírito quando finalmente percebe que não há histórias inocentes, enquanto se deixa enredar nas teias de aranha destas histórias familiares: «(…) todas as versões de todas as histórias acabam por confluir em Aurora. Ela é, na verdade, a única dona absoluta da história, aquela que sabe tudo, o enredo e o avesso do enredo, porque só confiam nela e só falam com ela, com todo o tipo de detalhes, sem vergonha nem reparos, todos e cada um dos implicados nesta história, que começou por ser trivial e até festiva e que acabou em ruína e em desastre, como ela intuiu desde o primeiro momento.» (p. 13)
Uma forte particularidade do romance é o modo como a vida das personagens é sempre tratada como uma história, em que todas elas são autoras das suas próprias narrativas, mesmo quando essa é uma narrativa vazia: «Nunca, nunca, mesmo que não aconteça nada, as pessoas param de contar a sua história e, se o Inferno existir, também nele continuarão a contá-la ao longo de séculos e mais séculos, dando corda uma e outra vez ao brinquedo das palavras, tentando compreender minimamente o mundo apalpando o absurdo da vida em busca talvez de um botão que abra o seu fecho cego, como a gruta de Ali Babá ante o conjuro da palavra mágica, revelando-nos o grande tesouro da razão, da luz, do real sentido das coisas…» (p. 199)
A acção decorre ao longo de seis dias apenas, em que os segredos familiares são desenterrados, até que se desvela uma história particularmente macabra em torno de um homem que tem em casa um museu de brinquedos e que trata a mulher como se fosse a sua criança…
Luis Landero, considerado um dos nomes essenciais da literatura espanhola, nasceu em Badajoz, em 1948. Licenciado em Filologia Hispânica pela Universidad Complutense, lecionou Literatura na Escuela de Arte Dramática de Madrid e foi professor convidado em Yale. Estreou-se na literatura em 1989, com o romance Jogos da Idade Tardia (Prémio da Crítica e Prémio Nacional de Narrativa 1990). Chuva Miúda, agora publicado pela Porto Editora e com tradução de Miguel Filipe Mochila, foi considerado pela crítica o Melhor Romance do Ano em Espanha. Ver artigo
A gripe espanhola matou dezenas de milhões em 1918, possivelmente até cem milhões.
A turberculose, doença que hoje quase esquecemos (se bem que eu e toda a minha família tivemos de fazer um rastreio, quando um familiar foi identificado com tuberculose) mata 1,5 a 2 milhões de pessoas por ano.
Existem actualmente 7000 doenças genéticas. Há 20 anos conheciam-se 5000.
Uma pessoa, em cada 17 pessoas, pode ser portadora de uma das 7000 doenças raras que existem hoje.
A gripe mata, num ano bom, 30.000 a 40.000 pessoas por ano. Em 2017-2018 matou 80.000 pessoas. E isto é porque se fala apenas de um país: os Estados Unidos da América.
Com o que agora se vive, com pessoas e países em quarentena, senti-me impelido a abrir O Corpo – Um guia para ocupantes, de Bill Bryson, publicado pela Bertrand, em alguns capítulos essenciais.
Na linha de êxitos anteriores, como o aclamado Breve História de Quase Tudo, Bill Bryson volta-se para o corpo humano, numa brilhante investigação, em que debita informação científica, dados, estatísticas, e aproveita para contar histórias curiosas, sempre num tom ligeiro, e mantendo o bom humor, conforme explica aos mais leigos como funciona o corpo humano, como se chegou ao conhecimento que hoje se tem sobre o corpo, aquilo que ainda aguarda resposta, como cresce, como se cura e regenera, como se reproduz noutro corpo humano. Contudo, apesar de tudo o que se sabe, «os detalhes são, muitas vezes, surpreendentemente inconstantes» (p. 14).
São precisos 59 elementos para fazer um corpo humano. E apesar de a Humanidade partilhar 99,9 % do mesmo ADN, não há dois seres humanos iguais. Somos o resultado de 3 mil milhões de anos de evolução. E há mais de 8000 coisas que nos podem matar.
Bill Bryson escreve ainda sobre o vírus: «Um vírus bem-sucedido é aquele que não mata demasiado bem e consegue circular com um grande raio de alcance. É isso que torna a gripe uma ameaça constante. Uma gripe típica deixa as pessoas contagiosas cerca de um dia antes de começarem a ter sintomas e durante uma semana ainda depois de recuperarem, o que transforma cada vítima num vetor de contágio.» (p. 397)
E cita um especialista que refere que «não estamos mais bem preparados hoje para um surto grave» (p. 410) do que estávamos há 100 anos com a gripe espanhola. Apenas temos tido sorte. Ver artigo
Paolo Cognetti, nascido em Milão em 1978, é uma das mais recentes descobertas da Dom Quixote. Um dos escritores italianos mais aclamados pela crítica e apreciado pelos leitores, escreveu As Oito Montanhas (2016). Escrito com «o fólego de um clássico», esse livro tem ecos de outros grandes que subiram a montanhas para se tornarem maiores do que a vida, e talvez por isso esteja também dividido em três partes mais ou menos correspondentes às três fases de vida de um homem. Em O rapaz selvagem, o segundo romance do autor, deixa-nos um relato na montanha entre o autobiográfico e o romanceado. Paolo, que nunca se designa, embora narre na primeira pessoa, tem trinta anos e sente-se sem rumo ou esperança quando decide partir para a montanha, inclusive na esperança de voltar a escrever.
Sem nunca chegar ao cimo, de Paolo Cognetti, com o subtítulo Viagem aos Himalaias, é um diário da viagem do autor, no final de 2017, a um planalto no Nepal de onde se propõe subir aos cinco mil metros de altitude, até a um remoto Tibete que permaneceu a salvo do tempo. O autor refere, aliás, que no Nepal «a sensação de estarmos a perder tempo transforma-se na necessidade de nos habituarmos a um ritmo diferente da passagem do tempo.» (p. 19)
Mais à frente, o autor volta aos conceitos de «ganhar e perder», cuja valoração pressupõe uma perspectiva ocidental, que não se coaduna com o modo de vida não só do Nepal ou do Tibete mas de toda a montanha a que o homem, alpinista ou montanhista, se propõe desafiar, onde o que aí importa verdadeiramente é que «altitude e distância são capitais que acumulamos com o nosso esforço, sendo que não nos agrada nada desperdiçar esse investimento» (p. 125).
A viagem durou cerca de um mês e prosseguiu ao longo da fronteira tibetana, mas nós podemos ler o seu registo num único dia. Para Paolo esta viagem é ainda um desafio ao seu insuperável medo das alturas… Assim como uma despedida do que ainda considera ser a sua juventude, agora atingidos os 40 anos de vida, ao partir nesta demanda com mais 2 amigos de longa data: «Eu sabia que na montanha, mesmo quando caminhamos acompanhados, caminhamos sempre sozinhos, mas estava feliz por partilhar a minha solidão com estes companheiros.» (p. 17)
Uma vez mais, este livro de Paolo Cognetti fala-nos do «maldito apelo da montanha», desse chamamento mágico que contraria até o seu próprio instinto de sobrevivência: «Mas que faço eu aqui? Porque é que estou aqui a tremer a cinco mil metros de altitude, nada mais em redor senão gelo e escuridão, com o estômago a contorcer-se?» (p. 114) Ver artigo
Ao fechar este livro a frase que ressoa é: nunca devemos voltar ao lugar onde fomos felizes.
Neste magnífico exercício literário, publicado pela Sextante e com tradução de José Lima, Philippe Besson revela-nos um narrador mentiroso, que facilmente cria histórias e situações em torno das pessoas com que se cruza, pelo que o leitor fica prevenido desde logo para a possibilidade de toda a narrativa ser, também, uma mentira. Mas uma invenção que ainda que falsa nos arrebata completamente, que nos aperta o coração, e cujo final pode provocar lágrimas. Um sentimento de perda tão forte quanto o que o narrador experiencia.
Em França, no ano de 1984, dois jovens de mundos completamente distintos no Liceu acabam por se aproximar, atraídos pela sincronia de olhares fugidios e desencontrados, e apaixonam-se. Vinte e três anos depois, o narrador, agora um conhecido escritor, encontra um jovem que é estranhamente parecido com Thomas, o objecto da sua paixão adolescente.
As mentiras do título parecem adquirir um duplo sentido, conforme prosseguimos a leitura. Se, por um lado, a mãe do narrador, inquieta, o advertia: «deixa-te de mentiras, dizia mentiras em vez de histórias, pois ele sempre gostara de «inventar vidas a desconhecidos» com quem se cruza (p. 9), por outro lado, a mentira pode representar a própria história que alguns homens criam para si próprios, ao seguir os preceitos e expectativas ditados pela família – herdam o seu legado, casam, constituem a sua própria família.
«Penso naqueles com quem me cruzei por ocasião de alguns encontros em livrarias, esses homens que me confessam terem mentido a si próprios durante anos e anos (…).
Aqueles que não deram esse passo, que não procuraram pôr-se de acordo com a sua natureza profunda, não são forçosamente medrosos, serão talvez desamparados, desorientados; perdidos como se está perdido no meio de uma floresta demasiado vasta ou demasiado densa ou demasiado escura.» (p. 155)
Evitando confundir o narrador, também ele escritor, com o autor, Philippe Besson é um romancista francês de renome, nascido em 1967. Este livro, a ser adaptado para o cinema, venceu o Prémio Maison de la Presse, Melhor Livro LGBTQ da Oprah Magazine, Escolha do Editor da New York Times Book Review e Melhor Romance Gay da The Advocate. Ver artigo
O Silêncio das Mulheres, da autoria de Pat Barker, vencedora do Booker Prize, com tradução de Tânia Ganho, foi recentemente publicado pela Quetzal.
Pat Barker dá voz na primeira pessoa a Briseida, rainha de Lirnesso – cidade tomada anos antes de Tróia –, que é reclamada como troféu de guerra por Aquiles, tornando-se sua escrava, e reconta no feminino a Ilíada dos guerreiros gregos e troianos, que conta os feitos e façanhas dos heróis masculinos sobejamente conhecidos, como Aquiles, Pátroclo, Ájax, Odisseu (Ulisses), Páris, Agamémnon, Menelau ou Heitor: «diz-me a experiência que os homens são estranhamente cegos à agressividade nas mulheres. Eles é que são os guerreiros, com os seus elmos e couraças, as suas espadas e lanças, e parecem não ver as nossas batalhas; ou preferem não as ver. Se tomassem consciência de que não somos as criaturas brandas por que nos tomam, talvez isso lhes perturbe a paz de espírito.» (p. 18)
A narrativa flui como se se tratasse de um depoimento prestado por Briseida, em que a interpelam e questionam, e onde não faltam interjeições, como «Ai» e «Oh». Em alguns capítulos, contudo, percebemos que a perspectiva descentra-se de Briseida e centra-se em Aquiles, ainda que a narração seja na terceira pessoa.
A prosa foca-se mais na narração do que na descrição, mas há passagens absolutamente arrebatadoras, mesmo quando se trata de descrever o grotesco da guerra: «Durante uns momentos, os cães arreganhariam os dentes e rosnariam aos pássaros negros, que descreviam círculos no céu,e aos abutres desajeitados e expectantes. De quando em vez, os pássaros erguer-se-iam todos no ar e, depois, pousariam lentamente, assentando como farrapos de tecido queimado, restos carbonizados das sumptuosas tapeçarias que antes forravam as paredes do palácio. Os cães empaturrar-se-iam até vomitarem e, em seguida, escapulir-se-iam da cidade, fugindo dos incêndios a cidade, e então seria a vez dos pássaros.» (p. 30)
Guerra essa que tem tanto de desumano como de entediante, também feita de momentos raros, mesmo quando se arrastam por 10 anos: «Por vezes, em plena batalha, há um momento de acalmia, em que o tempo abranda, os gritos e o clamor esmorecem e uma pessoa vê as veias vermelhas nos olhos de um inimigo e sabe – não é acredita, nem tem esperança – sabe que é impossível falhar. Esses momentos são raros. Nos restantes noventa e cinco por cento do tempo, a guerra não passa de uma labuta entediante e sangrenta, composta em partes iguais de tédio e horror, mas depois surge novamente esse momento brilhante, em que o estridor da batalha se esbate e o corpo se torna uma vara que liga céu e terra.» (p. 234)
O Silêncio das Mulheres reescreve a Guerra de Tróia no feminino. Esta reconstrução de uma das histórias basilares da civilização ocidental, contada a partir da perspectiva da mulher, não é todavia inédita. Tal como fez em As Brumas de Avalon, ao reescrever a lenda do Rei Artur a partir da perspectiva de Morgana, a bruxa, Marion Zimmer Bradley também recontou o mito da guerra de Tróia, em Presságio de Fogo – um romance de grande fôlego, centrando a narrativa em Cassandra, a profetisa, irmã de Páris, o que raptou Helena e desencadeou a guerra dos mil navios, provocando a ruína da cidade de Tróia, que se achava inexpugnável. Ver artigo
Para agradar a um público mais exigente há que ler e conhecer de tudo um pouco, pelo que me aventurei por um género praticamente novo para mim – o romance policial – com Lisboa Reykjavík, da autora islandesa Yrsa Sigurdardóttir – com tradução de Miguel Freitas da Costa. Reeditado pela Quetzal, inicialmente editado com o título O Silêncio do Mar em 2016, é considerado o seu melhor romance – e o mais assustador.
Tudo me cativou no livro: a ambiência misteriosa, a qualidade da prosa, e ter Lisboa como cenário de partida.
O romance reparte-se em 2 planos temporais. Começa pelo fim, quando um iate de luxo chega à marina de Reykjavík sem ninguém a bordo, abalroando a proa contra o pontão, e Thóra, uma advogada, é contratada pelos pais de Ægir, um dos passageiros, a bordo do iate por mero acaso, para tratar da sua apólice de seguro, que é, aliás, bastante avultada. Contudo o valor do seguro é apenas a ponta do icebergue e o interesse de Thóra pelo caso rapidamente ultrapassa o da polícia, enquanto investiga o que aconteceu à tripulação e à família que seguia no Lady K, que zarpou de Lisboa com destino à Islândia com 7 passageiros, mas chega sem um único sobrevivente. Em capítulos alternados, ficamos ainda a conhecer a incrível viagem pela perspectiva de Ægir (na mitologia nórdica, curiosamente, representa o filho dos mares e oceanos).
O policial rapidamente se assemelha a um thriller psicológico ou de terror, conforme, um a um, os passageiros vão aparecendo mortos, e onde não faltam elementos sobrenaturais para desconcertar o leitor, como visões de fantasmas, perfumes fortes no ar, e a criança de dois anos, logo nas primeiras páginas, que ao ver o iate anuncia instintivamente que os pais e as irmãos morreram. A sequência alternada do romance confere-lhe uma natureza cinematográfica, especialmente quando salta certas partes, para surpreender o leitor, ou quando um capítulo da narrativa da investigação de Thóra termina com uma pista que será explicada no capítulo seguinte da narrativa da viagem. Mas vinga a qualidade da prosa, a complexidade das personagens, e uma fina ironia e humor na escrita. Talvez por isso mesmo, o romance foi galardoado com o Prémio Petrona 2015, que distingue literatura policial escandinava (islandesa, norueguesa e sueca). E são mais de 400 páginas de puro deleite e mistério.
Yrsa Sigurdardóttir vive com a família em Reykjavík, diretora de uma das maiores empresas de engenharia da Islândia, e os seus livros estão no topo das listas de bestsellers em todo o mundo, muitos deles adaptados ao cinema e televisão. A Quetzal tem ainda publicados mais 5 romances da autora. Ver artigo
Se já deu por si a olhar uma sala cheia de gente em que subitamente todos estão a olhar para o telemóvel, ou a sentir ansiedade assim que o telefone toca enquanto está no banho, ou a entrar numa torrente de mensagens com uma conversa que se podia resolver com um telefonema de 1 minuto, ou a achar que não precisa de visitar aquele amigo doente ou o bebé recém-nascido de uma amiga, porque afinal estão em contacto nas redes sociais e já viu fotos e deixou um comentário banal, então este pode ser o livro certo para si. Com o selo da Actual (Grupo Almedina), Minimalismo Digital – Viver melhor com menos tecnologia, de Cal Newport, é um estudo que prossegue a senda de Deep Work – A concentração máxima num mundo de distrações, onde o autor faz uma análise premente de como a tecnologia interfere actualmente com o nosso comportamento e interacção social. Baseado em diversa bibliografia, em estudos de caso e numa experiência que o próprio autor orientou enquanto escrevia este livro, em que 1600 pessoas se comprometeram a uma redução ou «desatafulhar digital», Cal Newport apresenta-nos pedaços de informação preocupante ao mesmo tempo que nos deixa algumas práticas de desintoxicação digital. Por exemplo, quando se verificou que a ansiedade cresceu entre os jovens a única variável que o podia explicar era o aumento do número de jovens com smartphone, sendo que a comunicação digital persistente está a perturbar a sua química cerebral. Quando damos por nós a deslizar o polegar ao longo dos ecrãs estamos no fundo a adquirir vícios comportamentais tão nocivos como o uso de substâncias químicas ou a agir como um jogador num casino agarrado a uma slot machine, sempre à espera de mais qualquer coisa, mais um gosto, mais um vídeo, mais uma distracção ou um reforço emocional vazio. O Homem é, por natureza, um animal social (Aristóteles dixit) e evoluiu ao longo dos tempos até conseguir fazer uma leitura atenta da mente do outro, pois os nossos cérebros são capazes de processar «enormes quantidades de informação acerca de pistas analógicas subtis como a linguagem corporal, as expressões faciais e o tom de voz» (p. 126». Paradoxalmente, nunca o Homem esteve tão ligado ao mundo como agora, o que torna impossível difícil viver momentos de solidão com tudo o que ela acarreta de regenerativo.
O objectivo deste livro não é fazê-lo voltar atrás no tempo e viver como um amish mas sim ajudá-lo a tirar o máximo partido do imenso potencial das novas tecnologias sem se deixar governar por estas. Até porque quando olhamos para o ecrã do telefone não o fazemos apenas como resposta reflexa ao tédio, mas também porque temos vindo a ser subtilmente manietados pelos interesses dos conselhos de administração de empresas de um grupo restrito de investidores em tecnologia digital. Ver artigo
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