Vidas Seguintes, de Abdulrazak Gurnah, é o primeiro livro do Prémio Nobel de Literatura 2021, a ser publicado entre nós, pela Cavalo de Ferro, com tradução de Eugénia Antunes. Lançado originalmente, na língua inglesa, em 2020, foi finalista do Orwell Prize for Political Writing 2021 e nomeado para o Walter Scott Prize for Historical Fiction 2021. A Cavalo de Ferro dá, aliás, continuidade à publicação deste autor, lançando agora em maio mais uma obra, Paraíso.
Abdulrazak Gurnah nasceu em 1948 em Zanzibar e foi laureado com o Nobel «pela forma determinada e humana com que aborda e aprofunda as consequências do colonialismo e o destino do refugiado no fosso entre culturas e continentes».
Vidas Seguintes
A ação de Vidas Seguintes desenrola-se no território que é hoje a Tanzânia, num tempo indeterminado, possivelmente os primeiros anos do século XX, por volta de 1907. Adiante, perceberemos como, ainda que os ecos sejam distantes, se aproxima a eclosão da Primeira Guerra.
O romance inicia centrando-se na personagem de Khalifa, como anunciado na frase de abertura deste romance: «Khalifa tinha vinte e seis anos quando conheceu o comerciante Amur Biashara» (p. 7). Todo o primeiro capítulo serve para nos dar a conhecer Khalifa, desde a infância ao casamento. O segundo capítulo centra-se numa nova personagem, recém-chegada. Passamos a conhecer o jovem Ilyas, que rapidamente se tornará amigo de Khalifa, a quem conta a sua própria história; como, «em criança, fugira de casa e deambulara por vários dias até ser raptado na estação de comboios por um askari da Schutztruppe e levado para as montanhas. Aí foi então libertado e mandado para uma escola alemã, a escola de uma missão religiosa.» (p. 28) Quando chega à cidade, a preocupação de Ilyas passa a ser reencontrar a família, mas apenas encontra a irmã mais nova, Afiya.
Anos mais tarde, perante a iminência de uma grande guerra entre Britânicos e Alemães (que estalaria em Tanga, em 1914), Ilyas decide juntar-se a esse exército de mercenários africanos, prometendo à irmã voltar em breve. A promessa fica por cumprir. Muitos anos depois, enquanto o paradeiro desconhecido do irmão continua a ensombrar a vida de Afiya, ela conhece Hamza (personagem que passa a ser o centro da intriga a partir do terceiro capítulo), ele próprio um desertor que conseguiu escapar aos horrores da guerra.
Guerras alheias e colonialismo
Na primeira parte do livro, conforme a Alemanha se prepara para entrar na Primeira Guerra, destaca-se a questão de como os africanos combatem uma guerra que não é a deles. É o caso de Ilyas que integra a Schutztruppe, a feroz «tropa de protecção» da África Oriental Alemã, e de Hamza.
Ressalve-se que usualmente, quando se fala na presença colonial europeia em África, não se considerava o papel da ocupação alemã. Remontando a um período mais tardio, nos finais do século XIX, o império alemão compreendeu colónias na Namíbia, Camarões e parte da Tanzânia e do Quénia. A Namíbia, um dos países mais civilizados de África, representa bem como o domínio alemão foi tão brutal quanto eficaz… Foi também aí que se deu o primeiro genocídio do século passado, em 1904, com a campanha de exterminação das tribos Herero e Nama.
Numa prosa quase sempre contida e desapaixonada, são raras as intervenções que se podem atribuir ao narrador, profundamente irónicas, como na passagem: «Quem é que não quereria sair de Zanzibar? Todas as doenças possíveis e imaginárias podiam encontrar-se em Zanzibar, incluindo o pecado e o desapontamento.» (p. 112)
A crítica ao colonialismo que perpassa o livro é, geralmente, subtil, de uma fina ironia, como acontece aqui: «Os Alemães e os Britânicos e os Franceses e os Belgas e os Portugueses e os Italianos, e quem quer mais que fosse, tinham já feito o seu congresso e desenhado os seus mapas e assinado os seus tratados» (p. 9). O início da narrativa fala-nos justamente do período em que a colonização se enraíza de forma sistematizada, com a política colonial europeia que procurava encorajar os europeus a estabelecer-se na África Oriental Britânica: «As melhores terras foram tomadas à medida que mais colonos alemães chegavam. O regime de trabalho forçado foi alargado para construir estradas e valetas, e fazer avenidas e jardins para lazer dos colonos e em prol do bom nome do Kaiserreich. Os Alemães eram retardatários no que tocava à construção de impérios naquela parte do mundo, mas aplicaram‑se diligentemente com o objectivo de ficar por muito tempo e queriam sentir‑se confortáveis enquanto levavam a cabo essa missão. As suas igrejas, os seus edifícios com colunatas e as suas fortalezas guarnecidas de ameias foram construídas tanto para providenciar uma vida civilizada como para maravilhar os seus súbditos recém‑conquistados e impressionar os seus rivais.» (p. 21)
A primeira parte do livro fala-nos assim de como o «mundo inteiro estava em convulsão» (p. 140). Mas enquanto, além das guerras, uma epidemia de gripe dizima milhares de pessoas pelo mundo, e na Rússia uma revolução dita a morte do czar e da família, naquela terra tudo parece continuar como no princípio dos tempos: «É um lugar sem qualquer importância na história das proezas ou das conquistas humanas. Podíamos arrancar esta página da história do Homem que não faria diferença nenhuma. Compreende-se porque é que as pessoas conseguem viver satisfeitas num lugar como este» (p. 140).
Amor e paz
A história de amor a que a sinopse se refere consiste na segunda metade do livro. Note-se aliás como os casamentos referidos nos capítulos iniciais são absolutamente desapaixonados, tomados de forma puramente convencional e contratual. Há, contudo, de forma mais subliminar, a relação homoerótica do oficial alemão e Hamza, que consiste sobretudo num desejo recalcado ou, melhor dizendo, sublimado na forma como o tenta educar… O romance de Hamza e Afiya coincide ainda com o restabelecimento do país e, perto do final, com o princípio do fim dos impérios europeus.
Entrelaçando história e ficção, é um romance lúcido e trágico sobre África, o legado colonial e as atrocidades da guerra, bem como as infinitas contradições da natureza humana. Vidas Seguintes, no início, parece ressoar a obra de V.S. Naipaul, pelo retrato das personagens deslocalizadas, em errância pelo mundo. Pode causar surpresa ao leitor a forma como a narrativa se descentra igualmente com frequência, nomeadamente na primeira metade, passando de uma personagem para outra, sem que nada aparente uni-las. Ao longo de capítulos inteiros, ficaremos a conhecer personagens que, ainda que essenciais à história, se tornam depois secundárias, pelo que a atenção que o livro lhes concede pode parecer supérflua. A prosa é escorreita, essencialmente descritiva. Estão presentes temas centrais ao autor, como a experiência africana, o colonialismo, o refugiado, e a noção de identidade e do valor humano. Independentemente da colonização, há várias personagens cujas vidas são tratadas como se fossem capital, como o pai que vende o filho para cobrir as suas dívidas… O narrador é quase mudo, deixando as opiniões a cargo da forma como expõe as situações e, principalmente, no discurso das personagens. O final do livro pode parecer um pouco desequilibrado, uma vez que, para poder fechar a narrativa e encerrar algumas pontas soltas, há um salto temporal e a própria escrita perde o tom encantatório de antes, tornando-se mais factual.
Releve-se ainda a centralidade da leitura e do livro, como símbolo de um povo e de um continente que se pretendeu mantido na obscuridade. Quando os tios de Afiya descobrem que ela está a aprender a ler e a escrever, é agredida de tal forma que se arrisca a perder o uso de uma mão. Quando o alemão que tomou Hamza a seu cargo, como uma espécie de patrão, ao mesmo tempo que pretende ser seu tutor, desaparece da sua vida, é justamente um livro que lhe deixa como presente, que segundo alguém era «demasiado valioso para um simples nativo» (p. 142). Isto depois de o oficial alemão ter ensinado quase diariamente ao soldado nativo a língua alemã, para que Hamza um dia fosse capaz de ler Schiller.
Autor e obra
Na década de 1960, Abdulrazak Gurnah foi forçado a sair de Zanzibar, então em revolução. Na altura com 18 anos, chegou como refugiado ao Reino Unido, para poder continuar a estudar. Foi professor de Inglês e Literaturas Pós-coloniais na Universidade de Kent.
Paraíso, a segunda e mais recente obra do autor, publicada por cá este mês, é uma fusão de um romance de formação, ficção histórica e literatura de viagens. Originalmente publicado em 1994, finalista do Booker Prize e do Whitbread Award, foi o romance que projetou Abdulrazak Gurnah para o palco internacional, consagrando-o como um dos grandes escritores da actualidade.
No conjunto da sua obra destacam-se ainda os romances By the Sea (2001), nomeado para o Booker Prize e finalista do Los Angeles Times Book Award, e Desertion (2005), finalista do Commonwealth Writers.
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