Publicado pela Elsinore, em 2015, este pequeno livro de um designer editorial explora de forma irreverente e original a relação do leitor com a literatura, das imagens que podemos formar a partir do pouco ou nada que o livro nos dá, ou de como por vezes o rosto de um actor na adaptação cinematográfica do livro pode ficar indelevelmente gravada na mente do leitor e dificilmente volta a ser suprimida, mesmo quando a actriz escolhida nada tem a ver com a personagem que encorpora.
Num livro que se constrói ele próprio a partir do jogo entre a palavra e a imagem, entre o texto e a mancha gráfica, o autor disserta em torno de diversos tópicos como: Imaginar a «imagem»; Representação; Olhos, Visão ocular & Meio ou Sinestesia.
Mendelsund alega que, tal como na música, as notas e os acordes definem as ideias, assim como o silêncio das pausas, na literatura as personagens são fisicamente vagas, com poucas características pertinentes, que ajudam mais a «aperfeiçoar o significado de uma personagem» do que a imaginar uma pessoa (p. 30). Os bons livros, como Anna Karenina, sugestionam mais do que desenham, pelo que quando um filme nos mostra uma determinada actriz (uma Isabelle Adjani ou uma Keira Knightley, por exemplo), essa é uma forma de roubo, não propriamente da propriedade intelectual do autor mas do direito de o leitor incitar a sua imaginação à cocriação de uma personagem. Porque quem ler o livro atentamente pode lembrar apenas o adjectivo «roliça», ou a sua bolsa vermelha… Como Homero usava epítetos para melhor nos relembrarmos das várias personagens…
Quando uma obra de ficção é adaptada ao grande ecrã, o filme suprime as nossas visões de leitores. E talvez por isso há sempre tantos leitores descontentes com as adaptações fílmicas. Eu, por exemplo, nunca perdoei a Morgana de As Brumas de Avalon representada por Julianna Margulies, embora a adore na série The Good Wife. Conto apenas dois filmes que para mim suplantaram os livros: são eles As Horas e O Senhor dos Anéis. E isto é algo muito pessoal e indefensável, claramente.
Numa era dominada pela imagem, quer na fotografia quer no filme, é possível que os músculos da nossa imaginação estejam a atrofiar, como já aconteceu com a nossa capacidade mnemónica (ou será que ainda há professores por aí que incentivam os alunos a memorizar poemas?). Contudo esta proliferação rápida da imagem não nos afasta totalmente do mundo da escrita e ler ainda pode ser um prazer único: «Os livros permitem-nos algumas liberdades: somos livres para sermos mentalmente activos quando lemos; participamos plenamente na relização (na imaginação) de uma narrativa.» (p. 192)
Alega ainda o autor que quando lemos alguma passagem, mesmo que seja de autores de outros tempos, como Dickens, preenchemos as descrições com o material da nossa própria memória. E eu dou-lhe razão, pois se ler sobre um farol ou uma praia, sei exactamente qual é o farol ou a praia que a minha memória recupera para preencher a ficção como um vislumbre involuntário do nosso passado (p. 300): «As palavras são eficazes não pelo que transportam com elas, mas pelo seu potencial latente de libertar a experiência aculumada do leitor. As palavras «contêm» significados, mas, mais importante, as palavras potenciam o significado…» (p. 302) Até quando lemos, por exemplo, a descrição de um cheiro (lembro-me desse fabuloso e insuperável livro que é O Perfume, cujo cheiro nauseabundo das primeiras páginas quase nos obriga a pousar o livro, sendo que no filme esse efeito é aproximado mediante a sobreposição de imagens…), não sentimos esse cheiro como tal a evolar-se das palavras na página mas sim mediante uma «transformação sinestésica», invocando não tanto uma experiência ou recordação real mas um instantâneo da nossa memória que terá deixado «uma ligeira imagem residual» (p. 342).

print
Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.