Um Preto Muito Português, livro de estreia de Telma Tvon, foi publicado agora pela Quetzal. Telma Tvon, aliás Telma Marlise Escórcio da Silva, nasceu em Luanda em 1980 e imigrou para Lisboa, onde frequentou o ensino secundário. Foi também então que se integrou na cultura Hip Hop. Pertenceu aos grupos Backwordz, Hardcore Click e Lweji (os três compostos por MC’s femininas). Licenciou-se em Estudos Africanos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e concluiu o mestrado em Serviço Social pelo ISCTE.
E fica claro logo nas primeiras linhas deste romance que Telma Tvon tem muito a dizer neste seu “alter-ego” de nome João.
“Perguntam-me várias vezes de onde sou.” (p. 9)
João Moreira Tavares, aliás Budjurra, é o protagonista e o narrador na primeira pessoa de Um Preto Muito Português. A escolha de uma personagem masculina é intencional para não se cair na tentação de confundir João com Telma.
“Ninguém sabe como lidar comigo, não se sabe se sou preto o suficiente ou se ando a tentar passar por branco inconscientemente”.
A prosa é torrentosa, cheia de ironia mordaz, e de um humor cínico, dorido, de alguém que escreve como quem assina um manifesto, e em poucas páginas a autora prende-nos logo nesta história que é a de muitos “Joões”. A história de alguém categorizado, diferenciado e inclusive posto de parte com base na sua cor de pele. Porque mesmo que João seja neto e filho de cabo-verdianos que vivem há muito em Portugal, e ele nunca tenha conhecido outro país senão o seu bairro, a pergunta que lhe colocam invariavelmente é “de onde sou”. Mesmo quando chega a uma entrevista de emprego em que os recursos humanos tiveram acesso prévio ao seu CV, a pergunta inevitavelmente surge. João também é bisneto de holandeses que mal conheceram Portugal e de africanos que muito ouviram falar de Portugal. Também há muitos portugueses cujo sangue é uma mistura de muitas outras nacionalidades, mas por serem brancos a esses ninguém pergunta “de onde és”. E é por isso que um negro, ou um preto – para ser politicamente correcto -, ainda por cima um que não gosta de dançar (ou não sabe), aprende a defender-se, e a vestir a identidade que melhor lhe convém, ora para se camuflar, como a irmã Sandra, que alisou o cabelo, e só se dá com brancos, e faz questão de não falar crioulo, ou, por contraste, o irmão Carlos, que adopta uma postura de soldado atento, anda sempre acompanhado e faz questão de falar crioulo. João não, está demasiado domesticado, mesmo tendo sentido na pele diariamente o mais entranhado racismo, sentindo-se marginal, pois “está à margem de uma sociedade que se quer imaculada e de raízes meramente lusitanas” (p. 29). Sendo que o pior racismo ainda é aquele de que somos inconscientes, por exemplo, quando dizem a um aluno que leia bem – sendo que o único “problema” de leitura é a pronúncia.
“Poema é instrumento, é missão, é compromisso” (p. 134).
Um Preto Muito Português, livro-manifesto, menos ficção do que testemunho ou crónica, dá voz à luta de entender a sua identidade, de perceber o que significa ser negro e português numa cidade como Lisboa.
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